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segunda-feira, julho 01, 2013

Partida da Família Real para o Brasil






Momentos dramáticos marcaram os preparativos de um acontecimento inédito, a transferência em peso de uma casa real europeia, a bordo de 15 navios, para o continente americano. Na madrugada de 25 de Novembro de 1807, quando Don João príncipe regente encerrou a sessão do Conselho de Estado, a decisão estava tomada. A família real deveria embarcar para o Brasil daí a dois dias, antes que as tropas de Napoleão, que já tinham cruzado as fronteiras, alcançassem Lisboa. Chegara enfim a hora de se executar um plano que já se conhecia de cor, e de traçar, rapidamente, o procedimento operacional de uma gigantesca tarefa, mudar da terra para o mar, tudo e todos que significassem a sobrevivência e a sustentação do governo monárquico a ser instalado no Rio de Janeiro. Fazer as malas, zarpar rumo ao Brasil e lá estabelecer um império não era uma ideia nova. A mudança da família real para essa colónia pairava como uma possibilidade acalentada há tempos e sempre ventilada nos momentos em que a realeza portuguesa sentia-se ameaçada na sua soberania. Já em 1580, quando a Espanha invadiu Portugal, o pretendente ao trono português, o prior do Crato Don António (filho ilegítimo do infante Don Luís) foi aconselhado a embarcar para o Brasil. Também o padre Vieira apontou o Brasil como refúgio natural para Don João IV “ali lhe assinaria o lugar para um palácio que gozasse, ao mesmo tempo, as quatro estações do ano, fazendo nele o quinto império (…)”. Em 1738, no reinado de Don João V, o conselho veio de Don Luís da Cunha, que via na mudança possibilidades de um melhor equilíbrio entre a metrópole e a colónia, então abarrotada de ouro. Em 1762, temendo uma invasão franco-espanhola, Pombal, ministro de Don José fez com que o rei tomasse “as medidas necessárias para a sua passagem para o Brasil, e defronte do seu Real Palácio se viram por muito tempo ancoradas as naus destinadas a conduzir com segurança um magnânimo soberano para outra parte de seu Império (…)”. Não é, pois, de estranhar que, no meio da convulsão europeia, os políticos que rodeavam o príncipe Don João trouxessem à tona a velha ideia. Mas o tempo era curto, a viagem longa e cheia de imprevistos. Era a primeira vez que uma casa real cruzava o Atlântico e tentava a sorte afastada do continente europeu. Longe dos tempos dos primeiros descobridores, que atravessaram o oceano para encontrar riqueza e glória em terras americanas, agora era a própria dinastia de Bragança que fugia (na visão de alguns), evitava sua dissolução (na visão de outros), ou empreendia uma política audaciosa, escapando da posição humilhante a que Napoleão vinha relegando as demais monarquias. O plano era mais complexo do que se podia imaginar. Afinal, seguiriam viagem, acompanhando a Família Real, não apenas alguns poucos funcionários seleccionados. Já em relativa prontidão e expectativa, encontravam-se outras inúmeras famílias (as dos conselheiros e ministros de Estado, da nobreza, da corte e dos servidores da Casa Real).

Não eram, porém, indivíduos isolados que fugiam, carregando os seus objectos pessoais, suas indecisões e receios. Era, sim, a sede do Estado português que mudava temporariamente de endereço, com seu aparelho administrativo e burocrático, seu tesouro, suas repartições, secretarias, tribunais, seus arquivos e funcionários. Seguiam junto com a rainha e o príncipe regente tudo e todos que representassem a monarquia. As personagens, os paramentos necessários para as costumeiras dos rituais da corte e cerimoniais religiosos, as instituições, o erário… enfim, o arsenal necessário para sustentar e dar continuidade à dinastia e aos negócios do governo de Portugal. Como disse Joaquim José de Azevedo, futuro visconde do Rio Seco, o que atravessaria os mares era aquela “amplidão que tinha exaurido sete séculos para se organizar em Lisboa”, e todo esse aparato devia tomar o rumo do cais. No cais de Belém, de um momento a outro, acorreram milhares de pessoas, com suas bagagens e caixotes, isso sem esquecer de toda burocracia do Estado e das riquezas que viajavam com o rei. Não havia tempo a perder, e imediatamente deliberou-se que os ministros de Estado e empregados do Paço viajassem com a família real. Outra ordem deixou claro que todos os súbitos que pretendessem seguir viagem estavam livres para tanto e, não havendo lugar nas embarcações, poderiam preparar navios particulares e acompanhar a real esquadra.

Já era meia-noite, mas, apesar do horário avançado, Joaquim José de Azevedo foi chamado ao Palácio da Ajuda e nomeado superintendente geral do embarque. Além dele, foram convocados o marquês de Vagos, chefe da câmara real, e o conde do Redondo, responsável pela usaria (sector equivalente à despensa, onde se abrigavam todos os pertences da casa real, tanto os alimentos, como os utensílios domésticos). Já o almirante Manuel da Cunha Sottomayor, comandante geral da esquadra portuguesa, ficou encarregado de apresentar mapas das disposições dos navios. Em seguida, o superintendente tratou dos procedimentos para a mudança dos tesouros reais do Palácio das Necessidades e o da Igreja Patriarcal. Foi depois para o cais de Belém, onde, munido dos mapas entregues pelo almirante, mandou armar uma barraca “para dali repartir as famílias pelas embarcações, segundo a escala de seus cómodos, assim como para enviar todos os volumes do Tesouro que chegavam. Tal lida continuou até o momento de embarque de Don João”. Havia uma ordem de que ninguém poderia embarcar se não tivesse em mãos uma “guia” fornecida por ele. Quem também não perdeu tempo foi Don António de Araújo e Azevedo, famoso representante do grupo francês. Naquela mesma madrugada, mandou que seu funcionário, Cristiano Müller, encaixotasse os papéis de Estado que estivessem sob seus cuidados e nesse lote incluiu também sua livraria particular 34 grandes caixotes foram acomodados na nau Medusa. Foram eles que embarcaram no lugar da Real Biblioteca, que ficou esquecida no cais. A pressa impedia que os procedimentos se dessem de maneira organizada. As autorizações, licenças, nomeações e ordens de embarque vinham de variadas fontes. Bom exemplo é o caso do mestre de equitação do palácio real, Bernardo José Farto Pacheco que, para poder embarcar, recebeu ordens do estribeiro-mor, do intendente das reais cavalarias e ainda do conde de Belmonte. A despeito do estado de alerta e do fato de que a frota, ou parte dela, estivesse sendo armada desde fins de Agosto o ambiente era caótico. No começo de Novembro, antes da partida da família real, um rico mercador de Lisboa escrevia ao sogro que ainda não conseguira passagem porque muitos queriam partir e eram poucos os navios. Porém, desconfiado, parecia decidido a deixar a capital, pois “os preparativos nos navios continuam a toda pressa e tudo indica que se trate de embarque”. Mesmo assim, nenhum expediente realizado previamente e nem as prontas providências coordenadas por Joaquim José de Azevedo foram suficientes para impedir que o caos se estabelecesse na hora do embarque. Pior é que Lisboa vinha sendo castigada por um forte vento sul, chovia torrencialmente e as ruas e caminhos se transformaram em passarelas de lama, dificultando as idas e vindas até o cais de Belém.



        
E não era tarefa simples reunir, distribuir e embarcar os ilustres viajantes, dividir os marinheiros e oficiais da Marinha e ainda abastecer os porões dos navios com uma quantidade suficiente de víveres e água potável. No registo de uma testemunha, “arregimentou-se muita gente para dar a 17 navios de guerra um bastante número de marujos e finalmente procurou-se pôr neles os mantimentos necessários, que contudo alguns navios não puderam haver como precisavam na confusão causada pela urgência do caso”. Os casos e incidentes se multiplicavam. Foi durante esses dias de corre-corre, ainda antes do embarque, que o núncio apostólico de Lisboa, Don Lourenço de Caleppi, compareceu no palácio da Ajuda, em visita de solidariedade. Frequentador da Corte, foi convidado por Don João a acompanhá-lo na viagem. Apesar de seus 67 anos, o núncio aceitou a proposta e, conforme as instruções recebidas, foi imediatamente procurar o ministro da Marinha, visconde de Anadia, que lhe destinou a nau Martim de Freitas, ou a Medusa, onde, junto com seu secretário, Camilo Luis Rossi, teria lugar garantido. Mas a confusão era tamanha que de nada adiantaram as referências de Caleppi, que não conseguiu lugar. O tenente irlandês Thomas Neill, que estava em um dos navios da esquadra inglesa, consultou a descrição feita a ele por um oficial a serviço de Don João. Ainda que evidentemente exagerado, o relato não deixa de passar uma ideia do ambiente naqueles dias, quando o “pânico e o desespero tomaram conta da população e muitos homens, mulheres e crianças tentaram embarcar nas galeotas até algum navio”. Foi o irlandês quem registou que “muitas senhoras de distinção meteram-se na água, na esperança de alcançar algum bote, pagando algumas com a própria vida”. Agravando ainda mais a situação, famílias de camponeses, assustadas com as notícias de que os franceses estariam se aproximando, haviam abandonado tudo “o trigo nos celeiros, o milho um nas eiras, outro nas terras, a fruta nas árvores, a uva nas vinhas, o gado disperso (…) e cheias de aflição se refugiaram na capital, onde se acham receando não terem com que subsistir. Mas neste caso o remédio é recorrer aos amigos; estes são os Santos, e mais que todos o Santo dos Santos, Jesus Cristo. (…)” Nas praias e cais do Tejo, até Belém, espalhavam-se pacotes, caixas e baús largados na última hora. No meio da confusão e por descuido, a pratearia da Igreja Patriarcal, trazida por 14 carros, foi esquecida na beira do rio e só alguns dias depois voltou para a igreja. Carros de luxo foram deixados, muitos sem terem sido descarregados. Alguns até optaram por largar a mala, embarcando de mãos vazias, apenas com a roupa do corpo. O marquês de Vagos percebeu um pouco tarde que as carruagens e arreios da casa real tinham sido esquecidos, e ali mesmo, do convés do navio onde se acomodara e que já partia, teve tempo de expedir um aviso, “em linguagem rude”, para que fretassem um “iate” para transportar todo aquele equipamento para o Brasil. O tom geral era de nervosismo e destempero. “A desgraça, a desordem e o espanto existiam por toda a parte em Lisboa, quer em terra quer no mar (…). Copiosas e tristes algumas lágrimas derramaram-se por esta ocasião, uns choravam a separação de pais, maridos, filhos e mais pessoas queridas, outros a criticar posição da pátria invadida por exército inimigo e ao recordarem-se dos males que iriam sofrer ficando sem protectores e no meio dos terríveis franceses.” De fato, a reacção dos lisboetas oscilava do espanto à revolta. Joaquim José de Azevedo, que, como vimos, tinha armado uma barraca no cais para organizar o embarque, assim interpretou o sentimento do povo: “vagando pelas praças e ruas, sem acreditar no que via, desafogava em lágrimas a opressão dolorosa que lhe abafava na arca do peito, o coração inchado de suspiros, tudo para ele era horror, tudo mágoa, tudo saudade, e aquele nobre carácter de sofrimento, em que tanto tem realçado acima de outros povos, quase degenerava em desesperação”

As descrições de época sobre o embarque de Don João são em geral tão dramáticas quanto contraditórias. Numa das versões, ele teria chegado ao cais vestido de mulher, em outra teria partido durante a noite a fim de evitar maior reacção popular. Em outra, ainda, teria entrado no porto acompanhado apenas por seu sobrinho e ninguém o aguardava. Dois cabos de polícia que estavam ali por acaso, ajudados por gente do povo e debaixo de forte chuva, colocaram algumas tábuas sobre a lama para que pudessem caminhar até o coche e de lá tirar Don João, que foi acomodado na galeota que o conduziria ao navio Príncipe Real, atracado na barra do Tejo. Outros relatos, ainda, insistem na insensatez do embarque, ridicularizando a atitude da família com a única frase lúcida emitida pela rainha, a esta altura, demente: “Não corram tanto ou pensarão que estamos fugindo.” Não é o caso de multiplicar as narrativas desse momento, carregadas de adjectivações e muita imaginação. No entanto, em tempos de total quebra do absolutismo real, a representação parecia anunciar o fim de uma era, foi com muita discrição e sem nenhuma pompa que o príncipe regente deixou Portugal e embarcou rumo ao Brasil. Concluídos os trâmites para a partida e com todos a bordo, só faltava o tempo melhorar para que se desse a ordem de zarpar. O dia 29 amanheceu claro e a esquadra saiu do Tejo, alcançando o mar. Nas portas do oceano, os navios ingleses estavam de prontidão. O encontro das frotas foi anunciado, reciprocamente, por uma salva de vinte e um tiros, como que a selar o pacto pacientemente aguardado pela Grã-Bretanha. Enquanto isso, o almirante inglês Sidney Smith destacou as quatro naus que acompanhariam a esquadra portuguesa até o Rio de Janeiro. Em seguida, foi a bordo da nau Príncipe Real cumprimentar o regente e recebeu, do vice-almirante português, a lista das 15 embarcações que compunham a real esquadra: oito naus de linha, quatro fragatas, dois brigues e uma escuna. Este número varia nos registos das testemunhas e também em estudos posteriores, mas a diferença não altera a visão de conjunto. Além da frota real, havia um número expressivo de navios mercantes particulares que saíram do Tejo. Seriam cerca de 30, mas podem ter sido muitos mais. O navio inglês Hibernia avistou 56 navios, ao anoitecer do primeiro dia de viagem. O próprio comandante Smith mal fez as contas, o que ele via era “uma multidão de grandes navios mercantes armados”.





De toda a forma, a esquadra real compunha uma respeitável unidade de combate. Os oito navios de guerra eram equipados com baterias de canhões que variavam entre 64 e 84 peças, a maioria com calibre 24. As fragatas estavam armadas, cada uma, com 32 ou 44 canhões, os brigues tinham 22 peças cada um e a charrua, que transportava mantimentos, 26 canhões. A família real (Dona Maria I, o príncipe regente e sua mulher, seus oito filhos, a irmã da rainha, a viúva do irmão mais velho de Don João e um sobrinho espanhol de Dona Carlota Joaquina) foi distribuída pelos navios de maior calibre. Na nau Príncipe Real estavam a rainha Dona Maria I, com 73 anos, o príncipe regente Don João, com seus 40 anos, o príncipe da Beira, infante Don Pedro, de 9 anos, seu irmão infante Don Miguel, com 5 anos, e o sobrinho Don Pedro Carlos. Na nau Afonso de Albuquerque ia a princesa, mulher do regente, dona Carlota Joaquina, 32 anos, com suas filhas, a princesa da Beira Maria Teresa, 14 anos, e as infantas Maria Isabel, Maria Assunção e Ana de Jesus Maria, de 10, 2, e 1 ano, respectivamente. Na nau Rainha de Portugal viajavam a viúva do irmão mais velho do regente, dona Maria Benedita, com 61 anos, a irmã da rainha, dona Maria Ana, de 71, e ainda as outras filhas de Don João e Dona Carlota Joaquina, as infantas Maria Francisca de Assis e Isabel Maria, de 7 e 6 anos. Há muitas dúvidas sobre o número de embarcados. O secretário do bispo Caleppi, que a tudo assistiu de perto, avaliou que 10 mil pessoas faziam parte da esquadra real. Já Pereira da Silva incluiu em seus cálculos os muitos negociantes e proprietários que haviam fretado navios para seguir a esquadra e não demonstrou dúvidas: “cerca de quinze mil pessoas, de todos os sexos e idades, abandonaram neste dia as terras de Portugal”. Uma minuciosa listagem relaciona, nominalmente, cerca de 536 passageiros (nobres, ministros de estado, conselheiros e oficiais maiores e menores, médicos, padres, desembargadores). Isso sem contar os termos imprecisos que surgiam ao lado do nome dos passageiros, tais como: “visconde de Barbacena com sua família”, “o conde de Belmonte, sua mulher e o conde seu filho com criados e criadas”, “José Egídio Alves de Almeida com sua mulher e família”, “e mais sessenta pessoas, entre homens e mulheres, sem contar as famílias que os acompanhavam” ou mesmo o indefinido “e outros”. Para se ter uma ideia, junto com o duque de Cadaval embarcaram a mulher francesa, quatro filhos, um irmão, e mais onze criados, incluindo um “homem pardo criado para varrer” e algumas famílias aditadas à mesma casa. O marquês de Belas levou um séquito de 24 pessoas. O mesmo documento listou os oficiais da casa real, que não eram poucos. Apenas a usaria empregava 23 “moços”, sendo que cada um deles vinha acompanhado de sua família, o mesmo se dando com os 14 moços da cozinha real. Um outro documento, redigido no calor da hora, pretendia registar todos os passageiros, mas depois de relacionar alguns dos mais conhecidos nomes da nobreza, a escrita foi encerrada bruscamente com uma informação taxativa, “E mais 5.000 pessoas”. Se levarmos em conta a população dos navios mercantes, a figura será ainda outra, pois o número de marinheiros e oficiais era elevado. Uma série de manuscritos existentes na Biblioteca Nacional Brasileira revela que ao atingir o litoral brasileiro, em Janeiro de 1808, alguns dos capitães elaboraram uma listagem informando ao conde dos Arcos, vice-rei do Brasil, a situação de suas guarnições. O comandante da nau Martins Freitas, além de fazer um mapa minucioso da tripulação, relatou que também estavam a bordo as famílias pertencentes aos oficiais da guarnição e parte da família do duque de Cadaval. O fato é que cada navio carregava uma pequena multidão. A acreditar-se que parte significativa dos oficiais e de suas famílias teriam permanecido na colónia  não estranharia chegar-se a mais de 10 mil emigrados. A cifra, porém, continua e continuará controversa. De toda maneira, o número de embarcados era bem elevado e, com certeza, superior às primeiras estimativas e provisões. Esse era o drama da fragata Minerva, que não havia sido preparada com antecedência e apresentou problemas na hora do embarque. Conta o capitão que, até o dia 26 de Novembro, esta fragata esteve “de banda por não ser possível aprontar-se”. Apesar de só ter a bordo “algum biscoito e aguada” e das “tristes circunstâncias em que se achava o Real Arsenal da Marinha, pela confusão e falta de expediente nas diferentes repartições”, o capitão não perdeu tempo para atender ao príncipe e partir no dia 29. Quando atracou em 10 de Janeiro de 1808, a Minerva acabou a sua tarefa e foi desmantelada na doca da marinha na Bahia. A viagem não seria fácil, ainda que não se tenha notícia de acidentes graves ou algum óbito. Famílias desmembradas e alojadas em diferentes navios, bagagens desviadas ou largadas no cais, racionamento de comida e água, excesso de passageiros e falta de higiene (que obrigou as mulheres a cortar os cabelos para evitar a acção dos piolhos) foram alguns dos problemas decorrentes da emergência do embarque. E pela frente, cerca de dois meses de viagem. Para complicar, uma tormenta se armou logo no início da jornada, e outra, em meados de Dezembro, lá pela altura da Ilha da Madeira, provocando a dispersão de alguns navios e uma mudança de planos. Apesar de uma parte da frota já ter tomado a direcção do Rio de Janeiro, o Príncipe Real e as embarcações que o acompanhavam alteraram o rumo, em direcção à Bahia. Excluindo esses momentos mais inseguros, a viagem correu tranquila, no que diz respeito aos humores da natureza e à estrutura das embarcações, que, apesar das avarias, alcançaram seu objectivo. O cronista Luis Edmundo descreve os transtornos que se deram pelo excesso de passageiros: “muitos sem cama onde dormir, cadeira, banco para sentar, deitando-se ao relento, sobre as tábuas nuas dos conveses, sem prato certo onde comer, disputando em sórdidas gamelas, nas cozinhas, o alimento frugal”. E a travessia arrastava-se monótona. Além de acompanhar a evolução dos navios da frota, cantava-se ao som da viola ao poente e, nas noites de luar, jogava-se cartas, o faraó, o espenifre, o pacau e o chincalhão. Depois de 54 dias no mar, em 22 de Janeiro de 1808, o Príncipe Real atracou em São Salvador da Bahia (onde ficaria um mês, seguindo depois para o Rio de Janeiro). Atrás dele e aos poucos, foram chegando os outros navios. A situação era inesperada, assim como imprevisível era a novidade de uma corte migrada e aportada em sua colónia  Mas a história não é mesmo um exercício do certo. Ainda em alto-mar, Don João o Príncipe Regente recebeu um belo presente do governador de Pernambuco, o brigue Três Corações foi ao seu encontro, carregado de mantimentos e muitas frutas tropicais. Entre cajus e pitangas, a colónia americana abria as portas para, receber o seu príncipe português.







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