(Portugal)
Contudo, o escravo nem sempre era uma “coisa” como estava instituído na lei romana, mas sim uma pessoa com direitos e deveres definidos no estatuto do escravo. Na China, já no I milénio A.C. os escravos tornaram-se um importante objecto de trocas comerciais. Por vezes, o valor de um escravo era inferior ao de um cavalo ou de uma junta de bois; cinco escravos custavam tanto como um cavalo; o valor de um escravo equivalia a 20 novelos de seda. No milénio seguinte, eram organizadas expedições aos países dos mares do sul para a captura de escravos, pois o tráfico de escravos ocupava já um importante lugar no comércio externo. Havia um constante mercado de escravos em quase todas as cidades, onde eram negociados como qualquer mercadoria corrente. Eram colocados em cercados juntamente com o gado e aí contados como se tratasse de gado de trabalho. Grupos de escravos acorrentados eram enviados pelos traficantes para centenas de quilómetros de distância.
No I milénio D.C. árabes e beberes entregaram-se a um tráfico de escravos na costa Oriental de África e através do Sara, que perdurou até ao século XIX. Os comerciantes muçulmanos dispunham de grandes mercados de escravos além-fronteiras: na Europa Central e de Leste, na Ásia Central, nas estepes situadas na orla das florestas africanas. Durante os períodos de conquistas, as guerras permitiam a captura de muitos prisioneiros o que facilitava o negócio do tráfico de escravos e o tornava muito lucrativo. O tráfico de escravos prosperou devido à expansão do Islão e do crescimento das relações comerciais. Na Arábia, século XVI, o tráfico de escravos era um negócio importante e florescente. Os escravos eram importados de África e destinados ao trabalho manual pesado como a extracção de pedra e a construção civil, serviços domésticos, etc. Os tributos, que serviam para alimentar as finanças reais, eram pagos com frequência pelo tráfico de escravos. Muitas tribos nómadas desempenharam um papel importante no comércio de escravos a longa distância. Entre as mercadorias negociadas no norte de África por genoveses, venezianos, espanhóis e portugueses contavam-se os escravos. Para os mercadores dos países marítimos da Europa Ocidental o tráfico de escravos tornou-se a mais lucrativa das empresas, que movia muitos interessados, tornando-se difícil o monopólio. A sua captura era em geral tarefa para os chefes africanos. Os proprietários de navios ou os seus fretadores compravam os negros no melhor mercado e transportavam-nos para a América em condições tais que muitos morriam na viagem. Os navios estavam munidos com um equipamento especial para armazenar a carga humana.
(Século
XVIII – XIX)
A necessidade
mão-de-obra para as plantações tropicais americanas principalmente de
cana-de-açúcar e de algodão. O debate sobre a abolição da escravatura que se
instaura em Portugal, na segunda metade do século XVIII até o princípio do
século XIX, teve no teatro um palco privilegiado para a propaganda oficial ao
mesmo tempo que promoveu a personagem do Negro - até lá figura cómica herdada
do teatro vicentino - o verdadeiro protagonista ou pelo menos objecto da acção
teatral. A partir de quatro obras publicadas em Portugal, um
entremez, O contentamento dos pretos por terem a sua
alforria, (1787), dois diálogos, Nova e curiosa relação de hum abuso emendado
ou evidências da razão expostas a favor dos Homens Pretos em hum diálogo entre
hum Letrado e hum Mineiro, (1764), O Preto e o Bugio ambos no mato, discorrendo sobre a arte de ter
dinheiro sem ir ao Brasil (1789), e um drama, obra póstuma de
José Agostinho de Macedo, O Preto sensível (1836), pretendemos
mostrar que o espaço teatral é o espaço
da História.
Estudaremos em particular as representações espaciais da escravatura em Portugal e no Brasil, a evolução estética e ideológica entre o diálogo de 1764 e o drama de 1836, e a singularidade do diálogo de 1789. A promoção literária da personagem negra é fruto da evolução das mentalidades e da tomada de consciência da injustiça do estatuto de escravo que começa a manifestar-se a partir da segunda metade do século XVIII em Portugal. Esta evolução integra-se no debate que já se instaurara na Europa, incentivado pela filosofia das Luzes. O Estado e a Igreja e os jornais intervieram decisivamente nesta questão polémica. As primeiras medidas a favor da alforria foram tomadas durante o reinado de Dom José. Perante um imenso império, com numerosos escravos tanto nas possessões ultramarinas como na própria metrópole, o Marquês de Pombal é divido entre o seu desejo de inscrever Portugal na lista das nações civilizadas e a necessidade de fazer prosperar os domínios ultramarinos. O primeiro alvará de 1761 tende sobretudo a impedir a chegada de escravos na metrópole que: (..) Fazendo nos meus domínios ultramarinos uma sensível falta para a cultura das terras e das minas, só vêm a este continente ocupar os lugares de moços de servir, que ficando sem cómodo, se entregam à ociosidade. A reiteração das mesmas medidas em 1773 permite imaginar as dificuldades em fazer respeitar tal proibição. Assim o novo alvará denuncia os que continuam a utilizar uma mão de obra escrava em Portugal, explorando a sua descendência, desprezando todo sentimento humanitário e religioso.
O texto lembra que todos os Negros são
também sujeitos da Coroa mantidos numa situação indigna:
(..) a grande
indecência que as ditas escravaturas inferem aos meus vassalos.(..) aqueles
miseráveis que a sua infeliz condição faz incapazes para os ofícios públicos,
para o comércio, para a agricultura. Os imperativos económicos e sociais
são claramente enunciados estabelecendo uma nítida fronteira entre Portugal e o
Brasil. Pois o que se considera injusto e prejudicial na metrópole continua
sendo benéfico e desejável nos trópicos. A Igreja adopta atitudes ainda mais
ambíguas, tentando conciliar, a escravatura com a doutrina cristã. Em 1758, o
Padre Manoel Ribeiro Rocha, residente na Bahia onde exerce a profissão de
advogado, publica em Lisboa um livro intitulado, Ethiope resgatado,
empenhado, sustentado, instruido e libertado. Discurso theologico-juridico em
que se propoem o modo de comerciar, haver, possuir validamente, quanto a hum e
outro foro, os pretos cativos africanos, e as principais obrigações que correm
a quem deles se servir.
Depois de ter
reconhecido que a escravatura é a pior coisa que pode acontecer a um ser
humano, a sua análise toma um rumo mais pragmático. Afirma que o comércio dos
escravos sendo um costume enraizado nos próprios reinos africanos, pode ser
praticado sob certas condições: Assim,
e do mesmo modo os comerciantes da Costa da Mina, Angola e mais partes de
África, licitamente, e sem gravame de consciência, podem trocar pelo tabaco, e
mais géneros que ali conduzem, aqueles escravos, contanto que neste negócio não
façam mais que resgatá-los, adquirindo neles somente um direito de penhor, e
retenção em quanto lhe não pagarem o que no resgate despenderam, e o prémio do
seu trabalho. O autor acrescenta que o próprio dono ganha com isso, pois o
escravo tendo a perspectiva de ser liberto servirá com muito mais zelo. Sem ser
revolucionário, este texto, dirigido aos grandes senhores de engenho, propõe
modificações notáveis no tratamento dos escravos. Ao estabelecer as condições
de acesso à alforria, restringe de facto os direitos de propriedade dos donos,
abole a hereditariedade do estatuto.
Quarenta anos mais tarde, o bispo de Pernambuco,
Joaquim José da Cunha Azeredo Coutinho toma partido contra a abolição da
escravatura, e pede licença para publicar em Portugal sua Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da
costa da África. A Academia Real das Ciências, julgando a
questão polémica e as posições do bispo ofensivas dos sentimentos do público,
nega-lhe a impressão. O livro, traduzido em francês, será publicado em Londres,
em 1798. Na sua análise, o autor, representante da Igreja mas também senhor de
engenho, toma a defesa dos interesses da oligarquia colonial, tentando estabelecer
um debate contraditório com os abolicionistas e os chamados
novos filósofos: Na verdade, confesso que não posso entender a
humanidade deste que se dizem ter horror ao comércio do resgate dos escravos da
África e dos quais se dizem amigos sem com eles ter trato nem comunicação, e
que ao mesmo tempo estão vendo com olhos enxutos os seus pobres concidadãos,
homens brancos e civilizados trabalhando ao sol e a chuva para ganharem o
miserável sustento para aquele dia… Filósofos, que vos dizeis sentimentais,
sede uma vez consequentes: ou não griteis contra o comércio do resgate dos
escravos da Costa da África, ou riscai do código das nações o direito da
propriedade e o de darem leis a si mesmos.
A proibição de tal publicação enfatiza o nascer duma
opinião pública em Portugal que começa também a manifestar-se nos jornais, em
particular na Gazeta de Lisboa, (1715-1820)
e no Jornal enciclopédico, (1788-1793). Assim, nos meados do
século XVIII, domina uma posição moderada, tanto da parte do Estado como da Igreja.
Fora de Portugal, o comércio e a prática da escravatura eram aceites nas Costas
da África e no Brasil como necessidades económicas mas a alforria era
recomendada. No fim do século XVIII, opõem-se dois campos antagónicos: o dos
abolicionistas que reivindicam a total supressão do tráfego e do estatuto de
escravo, o dos conservadores que querem mantê-los embora declarem que o escravo
deve ser melhor tratado. O teatro acompanha este debate, passando do
exemplo à polémica, desempenhando uma função didáctica e propagandista. Para
representar melhor uma das questões que agita a sociedade portuguesa, desloca o
espaço cénico da metrópole à colónia. Portugal,
tribunal da liberdade versus Brasil,
teatro de crueldades. Propomos começar esta análise pelo
diálogo Nova e curiosa relação de hum abuso emendado
ou evidências da razão expostas a favor dos Homens Pretos em hum diálogo entre
hum Letrado e hum Mineiro, (1764).
O Mineiro é a figura do português que emigrou para as minas de ouro e voltou
rico à pátria onde passou também a ser chamado Brasileiro
de torna-viagem. Aparece frequentemente no
teatro de cordel do século XVIII, caracteriza-se como pessoa rica mas ridícula,
sempre servido por uma numerosa criadagem composta de escravos negros. No caso
supracitado o Mineiro ignorante expõe um caso de consciência a um Letrado,
representante da lei e detentor da sabedoria. Aquele prometera a alforria ao
seu escravo no prazo de dez anos de bons e leais serviços. Vencido o prazo, não
quer cumprir a promessa, provocando a revolta do escravo que até aí fora um
criado exemplar “começou a esfriar-se do fervor com que me servia; e de sorte
me desagradou, que intentei vendê-lo para o Brasil só para que com rigoroso
castigo acabasse a vida”. Mas o escravo
fez-se sócio duma Irmandade e por privilégio real não pode ser vendido para o
Ultramar. Disposto a
violar a proibição, o Mineiro ainda vacila sob a ameaça de cometer um pecado
mortal. Toda a argumentação do Letrado baseia-se no reconhecimento da condição
humana dos escravos e na tentativa de desenganar o Mineiro dos seus
preconceitos raciais:
Mineiro; Pois se os pretos são tanto como nós,
para que são eles nossos escravos, nós os brancos não o somos deles? Letrado: Já vejo que V.M. está muito longe da razão.
Senhor, os pretos não são nossos escravos porque são pretos. (...) há outras
razões políticas, e permitidas para se reputarem como tais. (...) É um abuso
introduzido entre muitas pessoas, imaginarem que os pretos foram nascidos para
serem escravos; porém a natureza a todos os homens ama sem diferença. O
Mineiro, pasmado, replica com exemplos de tratamento injurioso e cruel que
presenciou tanto nos engenhos da Bahia como do Rio, onde os donos têm poder de
vida e de morte nos seus escravos: Em certo engenho na Bahia vi eu
morrerem em um dia dois negros, estando seu senhor à sua vista mandando-os
açoitar por outros escravos. (...) Que faria, se V.M. visse lá nos Brasis
trabalharem os negros quase continuamente noite, e dia; isto andando nus; e
ordinariamente só lhes dão uma pouca de farinha de pau a comer. Esses
tratamentos são julgados como escandalosos, pecaminosos, criminosos, e injustos
pelo Letrado que exclama com a ênfase do Padre António Vieira : Ah senhor!
E quantas insolências se cometem com os miseráveis escravos nos Brasis! Mas
quem as usa! Gente avarenta! Gente pouca temente a Deus! Gente, que tem coração
de fera! Tantos recursos argumentativos parecem incapazes de convencer o
Mineiro que se conserva indeciso deixando o leitor na expectativa sobre o
destino do escravo. O contentamento dos Pretos por terem a sua alforria, (1787)
em que assistimos a teatralização dum acto de alforria, da parte dum rico
negociante lisboeta, homem magnânimo, e instruído, perfeita antítese do Mineiro
egoísta e ignorante. Este acto é justificado pelos méritos dos dois escravos,
Caterina e Sebastião, compêndio de virtudes. Os seus comportamentos são
julgados excepcionais pelo próprio dono que se alegra por não ter tido,
escravos ladrões, bebedores, jogadores, defeitos próprios da raça segundo
afirma. Claro que não se trata de outorgar a alforria de maneira sistemática
mas conforme os méritos. No entanto, face aos argumentos contrários da esposa, o
negociante desenvolve um discurso humanista, sublinhando a infâmia do estatuto
de escravo, “este ferrete escandaloso que os ingratos têm na face”, o valor
supremo da liberdade, “ainda não conheceram o dom da liberdade, quero
alegrá-los, quero que vejam a diferença do estado em que estão para o que
passam”. Os escravos, cheios de alegria, pedem autorização para casar e
declaram o seu desejo de ficar a servir como criados, não podem abandonar tão
bons amos. Eis dois
belos exemplos do papel da literatura em geral e do teatro em particular na
educação à cidadania e na divulgação da ideologia oficial, aliás explicitamente
indicada no título do diálogo “abuso emendado”, “evidências da razão”, “a favor
dos homens pretos”. O entremez é ainda mais exemplar da relação entre teatro e
poder, perfeita aplicação dos alvarás pombalinos. Ele propõe um modelo de
generosidade e de paternalismo aos proprietários de escravos, a alforria é uma
maneira de mostrar a grandeza da sua alma.
O Brasil é claramente censurado, a voz da razão vem de
Portugal e advoga a favor da alforria. O Mineiro é de certa maneira uma
metonímia dos colonos brasileiros ao passo que o rico negociante representa a
faixa mais progressista da sociedade portuguesa. Esta dicotomia entre Portugal
e o Brasil, acentua-se, no século XIX, com as grandes campanhas abolicionistas
levadas pela Inglaterra. Em 1836, ano em que Portugal assina o decreto abolindo
definitivamente o tráfego de escravos, é publicado o drama O Preto sensível.
A origem da peça merece alguns esclarecimentos. De facto descobrimos que se tratava da tradução ou melhor dito da adaptação duma peça espanhola, El Negro sensível, melodrama de L.F. Comella, publicado em 1798 e representado em Madrid no mesmo ano. A confrontação dos dois textos é particularmente instrutiva quanto à utilização do teatro na elaboração da historiografia oficial e como órgão de propaganda. Da América, no contexto espanhol, a acção teatral desloca-se no espaço brasileiro. Um escravo negro Catul, deitado debaixo de uma árvore lamenta a sua triste sorte, apertando o seu filho nos seus braços, é bruscamente interrompido pelos gritos ásperos do seu amo Marçal, que o manda para o canavial. Entretanto, chega ao engenho, uma rica senhora portuguesa, Ignacia, acompanhada pelo seu filho ainda criança. Indigna-se perante a crueldade de Marçal e quer comprar o filho de Catul para criá-lo juntamente com o dela. De volta da roça, Catul desesperado pela venda do seu filho, prepara a sua vingança projectando matar o filho da rica senhora. Após o suspense criado pelos intentos de Catul, a generosidade desta é reconhecida. Ela liberta os pais da criança, e toda a família decide embarcar para Portugal.
Ao Branco é grato o sol, ao Negro infausto! O sol o
chama ao bárbaro trabalho (…) Deixa de
existir meu filho! Poupa-te a imensa dor de ser escravo! Mas a diferença
essencial entre os dois textos assenta no papel dado a Portugal na campanha
abolicionista. No desenlace do drama, o escravo da peça espanhola elogia a
Europa e promete converter-se à sua religião: Yo tenia aversion al
europeo; miraba con horror su culto santo, porque no conocia su grandeza su generosidade,
sus nobles rasgos; pero ahora que por vos é conocido con toda fuerza mi fatal
engaño, venero al europeu, lo bendigo y protesto seguir sus ritos santos. Ora este
episódio transforma-se na peça portuguesa num elogio enfático à Portugal,
redentor dos erros cometidos por outros países europeus: Apaga Portugal da Europa as manchas, Do crime cometido
a Europa absolve, em seus ferros serei livre, e tranquilo (..) E o Tejo que
produz alma tão grandes, Correrá sempre ao mar livre, e seguro. A missão civilizadora de Portugal na Europa,
enaltecida nos Lusíadas por
Luís de Camões é reiterada aqui nos mesmos moldes para fazer deste país o
campeão dos direitos humanos na Europa. Além da repetida condenação do Brasil
que já se tornara independente, o autor desvia todos os méritos da campanha
anti escravatura para Portugal.
A evolução
das mentalidades acerca da condição escrava em Portugal manifesta-se no teatro
pela representação contrastada de dois espaços: um Brasil escravocrata e um
Portugal libertador da humanidade.
No entanto,
esta imagem do Brasil como um teatro de crueldades sofre uma notável excepção
com o diálogo O Preto e o Bugio ambos no mato, discorrendo
sobre a arte de ganhar dinheiro sem ir ao Brasil / Diálogo em que o Bugio com
evidentes razões, convence ao Preto sobre a verdade desta proposição, (1789).
Opondo-se ao estereótipo do Brasil cruel das grandes plantações, e das minas de
ouro, desenha-se outra imagem, a da floresta virgem. Este imenso domínio
transforma-se num paradigma da natureza primitiva onde todos os seres gozam da
liberdade e vivem em perfeita harmonia. No prefácio,
o editor indica que o manuscrito foi achado na biblioteca de um americano
sábio, e sublinha “a importância da argumentação, a propriedade da linguagem, e
a formosura com que exprime a natureza”. Tal prefácio é sobretudo um estratagema
editorial para aguçar o interesse do leitor, impaciente por descobrir um texto
de origem misteriosa e com um título bastante inesperado. O lugar de achamento,
a biblioteca, a autoridade moral do proprietário, americano sábio, compensa a
fantasia e garantem a sua qualidade.
A
originalidade deste diálogo reside tanto na personalidade dos dois
interlocutores, um Negro fugitivo e um macaco sábio, como no carácter insólito
do espaço para praticar a arte da conversa, a floresta brasileira. Estamos pois
num contexto completamente imaginário, afastando-se da verosimilhança das peças
anteriores. Longe dos donos, o Negro alegra-se por ter escapado à roça e à
mina, expressa-se na tradicional “língua
de preto” como o fazem a
maioria dos negros no teatro de cordel. A sua surpresa é imensa ao descobrir um
ser parecido com ele, embora distinto, a inverosimilhança de tal ignorância faz
parte da convenção que rege o diálogo entre um sábio e um ignorante. O
bugio apresenta-se como o porta-voz do seu antigo dono, espírito esclarecido:
Aprendi muito dele, porque a minha curiosidade me incitava a escutar todas as
conversações que ele tinha com outros homens de letras. Esta figura do
bugio como sábio é excepcional no contexto português do século XVIII. A sua
presença na floresta brasileira é a etapa final dum percurso iniciático que o
levou do seu espaço natural, a floresta africana ao meio civilizado na
companhia dos humanos para afinal voltar ao seu estado primitivo no seio da
selva brasileira. O seu discurso é altamente qualificado pela sua própria
experiência, conheceu o cativeiro como animal de estimação em casa de um
americano sábio no Rio de Janeiro onde “sofria
da falta de liberdade, sem a qual as iguarias mais gostosas são sempre amargas”.
Declara ser o próprio representante da natureza: A Natureza, que me
distinguiu na discrição entre outros animais, e que aperfeiçoei na conversação
de meu amo, e de outros sábios, que com ele se juntavam, é a que te fala. O bugio faz
uma apologia da natureza, da vida simples, livre de contingências, paraíso
original de onde os homens se afastaram por ambição e orgulho. Explica ao Negro
que só na natureza se pode realizar o ideal da liberdade, dom supremo que
ultrapassa os valores reconhecidos pela sociedade, a riqueza, as iguarias, até
o saber: Usando da minha liberdade, sou mais feliz que os reis mais
abafados com montes de negócios. (..) a minha casa tu a vês, são estes matos: a
telha que me cobre, cobre todo o mundo: são os azulados céus, obra do primeiro
Entre, os tectos das nossas casas: tive pais da minha raça que não vi mais
depois que pude nutrir-me do sustento, que em toda a parte me oferece a
Natureza por estes bosques.
Além disso a
natureza que ama todos os homens não pode sofrer a escravatura: A
Natureza, senhora de todo o mundo não deu império algum aos homens para
despojar da liberdade aos seus semelhantes e eu vejo-vos despojado
deste bem. O Negro que fez um percurso semelhante é exactamente a figura
antitética do macaco, tanto pelas condições do cativeiro como pelos
ensinamentos que lhe deram o seu amo e os padres da Igreja. Recebeu deles todos
os seus preconceitos, o que lhe impede de imaginar outra ordem social. No
entanto a sua fuga é um primeiro passo para a revolta: Se vozo non sá riabo,
ao menos sá pla mim huns coisa novo. Diga vozo, plo ventura recoie-se nos casa
como nozo, e tem Sioro, que governa sore toro os família, e que fá trabaiá toro
o ria nos mina, nos roça, e nos engenha pala fazé clecer sua dinheiro, e ser
hum Siora glande?
(…) E vozo que dá a dente, e mete pala banduio, si polaqui non vejo mio, e feijão, nem trabaia pleto? Mi estar smaraviaro de ouvi-la vozo, non sendo vozo Blanco, nem Pleto: Non tem-ia vozo mandinga! Jesu me vaia! Não seia ere o riabo em figula de vozo! O seu encontro com o bugio é decisivo, permite-lhe imaginar outra maneira de viver. Mas não pode deixar de se interrogar sobre a possibilidade de passar a vida a descansar à sombra das árvores como o bugio e coloca a questão do trabalho. O bugio propõe então outro modelo de sociedade, onde o trabalho não seria mais um pesadelo e onde todos receberiam conforme as suas necessidades, “seguindo o seu génio, cultivando os talentos de que o adornou a Natureza e evitando os excessos da prodigalidade e da avareza”.
A floresta
brasileira transformada num salão de filosofia, perde todo carácter exótico,
revela-se como o paraíso perdido desde que os homens se afastaram da natureza.
Só os animais continuam a gozar esse privilégio, os homens não têm outro
remédio a não ser ficar no mundo civilizado que criaram, inventando outras
leis. A primeira seria, respeitar a liberdade para todos, a segunda, ficar na
sua terra natal em vez de tentar a fortuna do outro lado do mar:
Tu imaginas que os Brancos para possuírem os cabedais
que tu dizes, lhes seria preciso abandonar o amor da pátria, dos pais, dos
filhos, dos parentes, e amigos; enrostar a morte por cima dos mares; afrontar
imensos perigos, reconhecer novos astros, penetrar novos climas, e degradar-se
da humanidade, sendo tiranos, e cruéis não só convosco, mas consigo mesmos. Ah!
A Natureza a todos liberaliza os meios de viverem felizes, sem se aventurarem
aos excessos da ambição. Podemos ver neste diálogo um libelo contra a
escravatura mas também uma severa crítica da colonização do Brasil e dos
excessos provocados pelo apelo do Eldorado. Talvez seja motivada pela vontade
política de limitar a hemorragia provocada pela emigração ao Ultramar. O
subterfúgio do bugio permite uma liberdade de tom, abre perspectivas mais
atrevidas e utópicas do que nas peças estudadas anteriormente. A voz
discordante do sábio americano soa como um eco da voz do velho do Restelo
condenando a vã cobiça Luís de Camões, Os Lusíadas. Nesta viagem
no tempo e no espaço luso-brasileiro, tentámos seguir as redes de relações que
teceram ao longo dos anos, teatro e História. Parece-nos que a primeira função
do espaço teatral, foi a de servir de campo experimental para resolver as
contradições duma sociedade escravocrata, e aplicar modelos de
conduta exemplar.
Mais tarde, no século XIX, o teatro
funcionou como caixa-de-ressonância do debate abolicionista. Nos dois espaços
representados, realizava-se o confronto de interesses opostos, em que Portugal
se outorgava o papel de defensor da razão e da liberdade enquanto ao Brasil
colonial cabia o papel de opressor, réu acusado de todos os males. No
entanto a pequena clareira aberta na floresta brasileiro pelo diálogo do Negro
e do macaco rompe com esta divisão convencional e esquemática dos espaços históricos,
esboçando um terceiro espaço, o da utopia para que se realize o sonho
doutra humanidade.
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