segunda-feira, fevereiro 16, 2015

O Poder Naval Português no Atlântico

Séculos XVI a XVIII



Embora possa parecer desnecessário, importa relembrar que sendo Portugal banhado somente pelo Atlântico, todas as actividades marítimas de Portugal têm obrigatoriamente que navegar nas suas águas, pois é do Reino que partem e chegam a maioria dos meios, tanto de pessoal como materiais, necessários para manter abertas as linhas de comunicação que o uniam às diversas possessões além do reino. Talvez, por essa razão é que o Atlântico, era, desde os inícios do século XVI e até meados do século XVII, a zona de actuação preferida de piratas e corsários e onde se travaram as principais batalhas navais, durante os grandes conflitos europeus, até ao século XIX. 



A Guerra travada no mar

A realidade recente demonstra que as guerras só se ganham em terra, pois só aí é possível conquistar posições, territórios, riqueza e, subsequentemente, o poder que emana destas conquistas. Contrariamente, as vitórias no mar não são tão evidentes, nem o mar pode ser alvo de ocupação permanente, mesmo nos dias de hoje, salvo quando é efectuada uma acção anfíbia. Pode definir-se que um dos grandes objectivos de uma força naval, se não o principal, é a destruição da força inimiga, o que resultará numa vitória. O modo como essa vitória é alcançada, através de uma grande batalha ou através de um bloqueio, por exemplo, pode ser considerado irrelevante, desde que tal resulte no controlo do mar. Para além desse objectivo, por ventura mais imediato, uma vitória naval provoca também um desgaste no adversário, pois reduz os recursos essenciais para que este consiga, por seu lado, obter o controlo naval: capital, tecnologia e homens treinados. No primeiro caso, convém relembrar que um navio de guerra, para além de ser uma das mais complicadas máquinas de todos os tempos, também os custos de construção, apetrechamento e manutenção são elevadíssimos. Em relação ao segundo, numa vitória naval, para além dos navios que resultavam em perda total, por afundamento ou incêndio, muitos outros navios eram capturados, o que resultava que o vencedor podia copiar, para os seus navios, quaisquer inovações que estes possuíssem. Por fim, importa relembrar que a perda, por morte ou incapacidade, resultante de ferimentos ou captura, de homens treinados era, talvez, o mais difícil de substituir a curto prazo. (Relembro, que um navio demorava, em média, um a dois anos a construir e, um homem, vários anos a treinar.) A acrescentar a todas estas perdas, convém não esquecer outras, ainda que não palpáveis, mas é bem real, que são os danos morais, solvência financeira e poder político. Os danos morais aqui mencionados, referem-se ao sentimento de derrota que rapidamente, se apodera daqueles que sobreviveram e que muitas vezes assistiram, impotentes, à morte dos seus camaradas de armas. No segundo caso, e se houver vontade em tentar recuperar a posição dominante perdida, torna-se necessário, pelas razões atrás apontadas, atribuir grandes verbas que, deste modo, não poderão ser empregues noutras áreas mais produtivas. Por fim, um derrota naval, que poderá ter impacto em todas as áreas anteriormente mencionadas, te-lo-à, necessariamente, no poder político dos vencidos. De salientar que, o facto de, normalmente, os combates navais não se realizarem na presença de populações indefesas, estes não provocavam o desgaste politico que ocorre nos combates em terra, quer nos vencidos, como nos vencedores. No entanto, surgem excepções, mesmo na época em estudo, como foi o caso da fragata espanhola Nª Srª de las Mercedes, que se afundou ao largo do Algarve com vários civis a bordo, quando atacada por navios ingleses. Mesmo para a época, esta acção dos navios ingleses foi muito contestada, porque também não existia uma situação de guerra declarada entre os dois reinos. Esta acção é um claro exemplo da doutrina ofensiva que era utilizada pelas forças navais inglesas no combate naval da época da vela e, principalmente, a partir de finais do século XVII até ao século XIX, em oposição de uma mais defensiva, utilizada pelos seus adversários. Este modo de actuação nos finais da navegação à vela era, em tudo semelhante, ao que desde os inícios do século XVI praticavam os portugueses, em especial no Índico e, mais tarde, pelos franceses e ingleses, contra a navegação Ibérica. Na atitude ofensiva, mais utilizada pelos ingleses, conforme já foi referido, estes buscavam e provocavam o combate, sempre que a oportunidade surgia (Convém lembrar que, em especial nos finais do século XVIII, inícios do século seguinte, as forças navais inglesas bloquearam as forças francesas e espanholas nos seus portos, fazendo com que fosse raro que estas se fizessem ao mar e, consequentemente, se travassem combates navais entre forças numerosas, mesmo quando se encontravam em inferioridade numérica. Por esta razão, os seus almirantes empregavam, mais facilmente, tácticas pouco ortodoxas que lhes permitia contrariar a doutrina naval padrão da época - o combate em linha. (Considera-se que esta táctica no combate naval surgiu durante as guerras entre a Inglaterra e a Holanda, meados do século XVII, precisamente numa altura em que se começou a verificar uma certa uniformização dos navios europeus.) - (cortando a linha do inimigo vindo de barlavento, colocando-o, deste modo, entre dois fogos ambos). Esta manobra era muito arriscada, pois posicionava os navios atacantes ao alcance do tiro das baterias dos navios adversários, sem que aqueles pudessem responder (Relembro que os navios desta época levavam a maior parte do seu poder de fogo em ambos os bordos dos navios, por limitações do desenho dos navios e das características das peças da época), até ao momen- to em que cruzava a linha inimiga (Esta situação foi o que ocorreu na célebre batalha naval de Trafalgar, em que os ingleses, comandados por Nel. Nesta altura, os navios ingleses que conseguiam manter um ritmo de fogo muito elevado, metralhavam os navios inimigos até que estes arriassem a sua bandeira, o que indicava a sua rendição. Esse ritmo de fogo elevado, não derivava, somente, do treino das guarnições, mas também, e neste caso á semelhança com o que ocorreu em 1588 na Felicíssima Armada, de tácticas diferentes. Desde os finais do século XVII, e ao contrário da doutrina dos finais do século XVI, que os ingleses só disparavam quando os navios se encontravam muito perto, permitindo deste modo, que os seus disparos fossem muito certeiros e eficazes. Já os franceses e, também em certa medida os espanhóis, abriam fogo com os navios muito afastados, pelo que, quando os navios se encontravam perto, os seus artilheiros já se encontravam cansados, quando comparados com os ingleses. Deste modo, estes conseguiam, naquele momento em particular, um ritmo de fogo superior aos seus adversários. A segunda, que era principalmente utilizada pelos franceses e pelos espanhóis (até porque muitas vezes se encontravam em inferioridade numérica e importava minimizar as perdas de unidades navais) era dos navios se manterem a sotavento. Esta posição, que permitia aos seus navios retirarem-se com maior facilidade tinha, no entanto, diversas implicações ao nível da dou- trina do emprego da artilharia, pois o objectivo passava a ser a imobilização do inimigo. Para alcançar este objectivo, efectuavam um tiro a maior distância, tentando atingir os mastros – o que implicava uma maior pontaria (Nesta época, e mesmo utilizando diversos dispositivos especialmente inventados para provocar danos no aparelho vélico dos navios, era muito difícil fazer-se uma pontaria precisa, não só pelo tipo de peças, mas principalmente, pelos movimentos que os navios efectuavam, em especial no balanço transversal.  e não um maior ritmo de fogo. A própria inclinação dos navios devido ao vento, levava a son, e apesar de se encontrarem em inferioridade numérica, atacaram a força conjunta franco-espanhola. Contudo, o facto do vento estar a soprar muito fraco, colocou os navios ingleses muito tempo sob o fogo da artilharia franco- espanhola, até que estes, finalmente, cruzaram a linha adversária. que um navio de sotavento tivesse maior propensão para disparar contra o velame e mastreação, enquanto que um navio vindo de barlavento, tinha de atirar contra o costado do adversário. Importa no entanto, relembrar que, mesmo no século XVI e, de uma forma mais organizada e institucional, até finais do século XIX, o grande objectivo do combate naval na época não era afundar o navio adversário, mas sim captura-lo. Naturalmente que esse objectivo era mais premente quando o adversário era um navio mercante, com os porões carregados de riquezas várias. Mas, o mesmo se passava com os navios de guerra pois, que num caso como no outro, a sua captura era sinonimo de dinheiro extra, pela venda dos artigos que os navios transportavam e do próprio navio.



As operações navais no Atlântico

A Guerra de Sucessão espanhola introduziu inovações tanto na estratégia do controlo marítimo, como no comércio colonial pois foi, durante este conflito, que os ingleses aplicaram pela primeira vez, com eficácia, o bloqueio marítimo. Este conceito, que já tinha sido empregue no século anterior, embora sem o êxito que alcança no início do século seguinte, foi principalmente empregue no Atlântico, o teatro de operações por excelência das acções navais a partir de meados do século XVII. Este oceano caracteriza-se por possuir zonas climáticas constantes ao longo de todo o ano, embora as condições favoráveis para a navegação à vela ocorram entre os meses de Abril a Setembro. Uma das principais razões para o sucesso deste conceito nesta altura, foi a evolução dos navios de guerra e das próprias organizações navais, em especial a inglesa, que passaram a ter capacidade para operar com sucesso no mar, durante todo o ano. No entanto, para o conseguir, a Grã-Bretanha, teve de capturar várias bases aos seus adversários que, pela sua posição geográfica, lhe permitiam apoiar mais eficazmente, em termos logísticos, as esquadras que mantinha permanentemente no mar. Foi esse o principal objectivo das acções que Inglaterra efectuou com elevado sucesso, principalmente a partir de meados do século XVIII, contra os domínios espanhóis e franceses, no continente americano, no Mediterrâneo e até no Oriente, com a tomada de Manila. A única excepção deu-se com a perda das colónias da América do Norte. 


O poder naval português no Atlântico: Séculos XVI a XVIII

Desde meados do século XVII, que a política externa portuguesa era centrada nos seguintes espaços vitais no Atlântico, para além da sua importância como linha de comunicação que unia as diversas possessões além-mar e o território Continental:

1. O Brasil, que tinha adquirido de colónia principal do reino.

2. A Europa, destino e fonte da economia portuguesa.

3. O Estreito de Gibraltar.

Complementarmente aos objectivos militares destas operações, estas acções ofensivas inglesas contra Espanha, mais ou menos declaradas, também tinham objectivos comerciais, pois também ameaçavam as linhas de comunicação entre a Península e as suas colónias. Do mesmo modo, e aproximadamente no mesmo período, mas mais influenciada não só pelas derrotas infringidas pelos ingleses, como também pela desintegração interna, a França aca- bou também por perder as suas colónias além-mar. No entanto, a Inglaterra só alcançou o controlo do Atlântico, em termos comerciais e políticos (ambos estreitamente interligados), em meados do século XVIII, pois até meados do século, a sua principal preocupação prendia-se com a defesa da Inglaterra. Para além dos ataques aos seus grandes rivais, Espanha e França, os ingleses desenca- dearam diversas acções navais contra as restantes nações marítimas, como, por exemplo a des- truição das forças navais dos pequenos estados, como foi o caso da Dinamarca e de Nápoles. Portugal esteve perto de sofrer o mesmo destino que as marinhas desses reinos, em 1807, mas, a partida da família Real portuguesa, juntamente com a maioria dos navios de guerra nacionais para o Brasil, salvaram os navios lusos da destruição certa.


Por estas razões, considerar que a Inglaterra era o “fiel da balança” do xadrez Europeu e, porque não, mundial da época, é retirar a essa nação o seu estatuto de potência naval e da importância desse mesmo poder naval nos jogos de equilíbrio mundial (As intervenções da Inglaterra no Continente Europeu, não se limitaram ao envio apenas de forças militares, mas também enviaram grandes ajudas financeiras, obtidas através do seu comércio mundial, para apoiar os seus aliados e estabelecer as suas alianças. Mais correcto, será o de considerar a Espanha como o fiel, a partir da Guerra de Sucessão espanhola e, pelo menos, enquanto possuiu territórios ultramarinos e uma das mais importantes marinhas europeias da época. As rotas de escravos, entre África e o Continente Americano, em particular. É neste espaço geográfico atlântico que Portugal, desde o século XV, impôs a sua presença. Mas, será que aí e, à semelhança do que aconteceu no Índico, também foi uma potência naval?



O facto de não haver uma definição de poder naval universalmente aceite, faz com que cada autor interessado no tema, historiador ou não, lhe atribua um significado diferente. O primeiro grande estudo, sobre o assunto, deveu-se a Mahan, oficial da marinha de guerra americana, cujo seu estudo “A influência do Poder Naval” influenciou decisivamente o pensamento estratégico e naval nos inícios do século XX. O facto de ter centrado a sua análise na Marinha Britânica, mais concretamente a partir dos finais do século XVII, deixou para trás cerca de 2 séculos de história protagonizada pelos dois países Ibéricos. No entanto, Mahan não dá nenhuma definição do que seria o poder naval, Os navios do Mar Oceano. Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Centro de estudos da Universidade de Lisboa, 2004. Estudos mais recentes, também sem definirem concretamente o que entendiam por poder naval, alargam o âmbito da sua investigação aos séculos XV e XVI e defendem que Portugal terá sido quem edificou o primeiro “«império do mar» mundial”, ou seja, que foi a primeira potência naval mundial, durante esse período. Esse império, sustentado no número de navios “do Estado”, decorria não só do facto de Portugal exercer o controlo sobre as principais rotas oceânicas, sendo apoiado pelos navios dos mais avançados da época mas, também, de um conjunto de bases navais, feitorias e fortes, espalhados por 4 continentes.


A concorrer para essa situação, e especificamente no Atlântico nos finais do século XVI, Portugal organizava anualmente, as seguintes armadas:

-    Armada de Guarda Costa
-    Armada das Ilhas
-    Armada do Brasil
-    Armada do Estreito

Estas Armadas Reais eram financiadas e organizadas pela Coroa, e algumas foram implementadas durante os reinados de Dom Manuel I e Dom João III, tendo a sua constituição variado ao longo dos anos, dependendo, normalmente, dos recursos financeiros e dos navios disponíveis («O diário de bordo das viagens de Francisco de Faria Severim aos Açores em 1598»). A sua criação deveu-se, conforme já foi mencionado, à necessidade de fazer face aos crescentes ataques dos corsários, inicialmente franceses, depois ingleses e holandeses que ocorriam, geralmente, entre os Açores e a costa de Portugal Continental. Assim, estas armadas tinham por missão tanto “limpar” as respectivas áreas de navios corsários, antes da chegada dos navios das carreiras, como de escoltar esses navios em segurança, desde os Açores até Lisboa. No entanto, estas forças navais, não tinham, o objectivo de exercer um controlo naval das áreas onde operavam, mas apenas o de protegerem os interesses portugueses nas áreas, nos períodos considerados necessários. Ainda segundo esses estudos, a actuação de Portugal era, contudo, suficiente para permitir manter abertas, embora com algumas perdas, as rotas comerciais fundamentais para a sobrevivência do reino. Contudo, nos inícios do século XVII, Portugal perdeu a categoria de potência naval para as Províncias Unidas, quando estas começam os ataques directos aos mercados. Comunicações comerciais do Oriente, atacando não só a navegação portuguesa, como os territórios e pontos de apoio no Oriente, mas também no Atlântico – Brasil e Mina, por exemplo. Apesar desses ataques ao império português, que se mantinha com base num comércio internacional (e mesmo apesar da decadência naval que vinha conhecendo desde os finais do século XVI), Portugal continuou a exercer um controlo parcial dos oceanos, cujo expoente máximo teria ocorrido com as reformas do ministro Martinho e Castro, nos finais do século XVIII. No entanto, durante esses trezentos anos de intervalo, teria havido uma contracção do espaço marítimo controlado por Portugal, passando a estar limitado ao Atlântico Sul. Mesmo nessa zona mais restrita, Portugal teve que resistir a inúmeras ameaças e investidas militares e comerciais até aos inícios do século XIX. Essa situação ruiu, não militarmente, mas quando os ingleses foram autorizados a comercializar, directamente, e com grandes privilégios aduaneiros e comerciais, com os portos brasileiros. Importa, contudo, relembrar que estes tratados assinados nos inícios do século XIX, só vieram confirmar o que já acontecia anteriormente na prática - devido à perda de meios navais, ocorrida tanto em Portugal, como a própria Espanha - nos períodos em que era aliada da Inglaterra. Esta falta de navios incapacitava os dois reinos peninsulares escoar os produtos manufacturados nas respectivas metrópoles, bem como para absorver os produtos exportados pelas suas colónias, nas quantidades que estas últimas necessitavam. Esta situação levou a que, apesar dos regimes proteccionistas que ainda vigoravam, a Inglaterra passasse a dominar esse comércio e a ser destinatária e exportadora principal para as colónias desses dois reinos. No caso de Portugal, as exportações inglesas para o Brasil através de Portugal, aumentaram quase 4 vezes, até 1760, chegando quase aos 50% de tudo o que era enviado para essa colónia, enquanto que, no caso da Espanha, os valores passaram de 3% para os 30% do que era exportado para as Américas espanholas Se Portugal, a partir de 1793 e nos 20 anos seguintes, conseguiu manter o fluxo comercial entre a metrópole as suas colónias, no caso da Espanha, o estado de Guerra com a Inglaterra, levaram ao seu descalabro colonial e abrem o Atlântico às actividades comerciais inglesas. Este colapso comercial deve-se, principalmente, ao bloqueio dos portos espanhóis, iniciado em 1797, que, para além de limitar os movimentos da armada espanhola, também reduziu para valores mínimos o tráfego marítimo de Cádis, principal porto de comércio com as Américas. O reconhecimento de que, para Portugal, o que importava eram os aspectos comerciais e não os militares, constata-se, de uma forma inequívoca, numa missiva ao Rei de Portugal Embora não datada, muito provavelmente é de meados do século XVIII, pois ainda refere a necessidade da construção de uma cordoaria, cuja construção só terá início em 1771, em que um tal José Anselmo Correa Henrique, definia deste modo qual o objecto da força marítima, i.e. do poder naval: “O objecto da força marítima é consolidar por meios de uma competente ordem as medi- das que possam conservar em mutua existência a força do Estado com os princípios da defesa das costas e a protecção do comércio nacional em todos os mares obviando os nossos inimigos de todas as pretenções usurpadoras, que possam ter sobre eles naquela determinação que quali- fica a verdadeira independência de uma nação marítima para com os caprichos da outr. ” Contudo, parece-me incorrecto misturar o conceito de poder naval, consequentemente de potência naval, apenas com a capacidade de utilizar o mar para fins comerciais, com mais ou menos segurança. No Oriente, parece-me indiscutível que, desde os inícios do século XVI, Portugal exercia esse poder naval de uma forma eficaz, através da ocupação de posições chave que apoiavam as várias armadas que eram quem, efectivamente, implementavam esse poder naval. Acções essas que permitiam os navios de comércio portugueses ou seus aliados navegarem com relativa segurança. O implementação desse poder naval no Oriente, era facilitado pelo facto das rotas comerciais seguirem, normalmente, rotas junto à costa, o que as tornava mais fáceis de controlar. No Atlântico, espaço aqui e análise, Portugal, desde o século XV, que estabeleceu pontos de apoio ao longo da costa de África e, mais tarde, na costa do Brasil. No entanto, esses pontos foram estabelecidos por razões comerciais e tinham reduzidas capacidades para apoiar os meios navais, mesmo tratando-se de navios relativamente simples. Esta capacidade só mais tarde é que foi criada em Angola mas, principalmente, em alguns locais no Brasil onde, depois, acabaram por ser criados estaleiros que não só efectuavam grandes reparações aos navios, como também os construíam. Apesar de algumas dessas facilidades logísticas já existirem a partir dos finais do século XVI, os países Ibéricos apenas utilizaram o Atlântico como zona de passagem de e para as suas possessões ultramarinas. As forças de protecção que criam para se protegerem dos ataques dos reinos protestantes do Norte da Europa (França e Inglaterra) - Castela com navios de escolta, mas que também carregavam a parte das riquezas do monarca castelhano, e Portugal com meios navais dedicados - não tentam implementar qualquer tipo controlo naval no Atlântico.


Entre  as  dificuldades que  as  marinhas da  época  enfrentavam, destacam-se as  rotas comerciais atlânticas implicavam, na maioria dos casos, a travessia, Leste / Oeste e Norte / Sul do Atlântico, o que dificultava, em muito, quaisquer tipos de acções de controlo naval. Situação idêntica ocorria com os seus inimigos, cujas forças também não tentam estabele- cer qualquer outra forma de presença naval, para além de ameaçarem, preferencialmente, os navios mercantes, mas evitando enfrentar as forças navais peninsulares. O facto de o não faze- rem, fazia com que nunca tivessem tentado alcançar o controlo naval desse espaço marítimo. Conforme já foi mencionado, o instrumento fundamental para alcançar esse poder naval eram os navios de guerra, que tinham a tarefa, para além de fazer frente aos interesses navais das outras nações, de apoiarem e proteger os interesses comerciais dessa nação. Esses meios navais tinham de possuir características próprias e específicas para conseguir desempenhar, com sucesso, as suas missões militares e civis. Até aos meados do século XVII, Portugal possuiu e construiu navios que lhe permitiam cumprir alcançar esse estatuto, contudo, e principalmente a partir dos inícios do século XVIII, qualquer nação com aspirações de ser considerada ao mesmo nível das principais nações maríti- mas, tinha que possuir navios de primeira ordem, ou seja, com 100 ou mais peças de artilharia. Estes navios, equivalentes aos couraçados da segunda Guerra Mundial ou aos actuais porta- aviões nucleares, eram a espinha dorsal de qualquer linha de batalha naval da época. Ora, Portugal, apesar de ter conhecimentos teóricos para os construir, não constrói nenhum navio com essas características. No entanto, Portugal em número de navios nessa época, encontrava-se em quinto lugar, imediatamente a seguir aos Países Baixos, mas com mais navios oceânicos do que os Países Baixos, cujos navios eram de menores dimensões devido às limitações em calado dos seus portos. Em simultâneo, e de modo a apoiar a esquadra, importava que as nações possuíssem uma organização logística capaz de manter os navios por longos períodos no mar. Esta capacidade, só começou a ser praticada no século XVIII, numa altura em que os próprios navios e os conhecimentos médicos Os portugueses conheciam bem o principal problema dos longos períodos no mar, que era o aparecimento do escorbuto, devido à falta de produtos frescos e, consequentemente, de vitaminas, tinham evoluído o suficiente para o permitir. O país que melhor desenvolveu esta capacidade, devido à natureza das suas acções navais foi, naturalmente, a Inglaterra. Portugal, apesar de aliado e de ter enviado diversas forças navais para cooperar com os ingleses, nunca chegou a possuir essa capacidade logística, sendo os navios obrigados a praticar curtas escalas nos portos, não obstante conseguirem permanecer longos períodos no mar, como aconteceu nas operações de bloqueio na qual os navios portugueses participaram no canal da Mancha e no Mediterrâneo, em que os navios portugueses apoiaram-se sempre em terra.
        

Assim, e se aparentemente Portugal tinha todas as capacidades técnicas para se tornar uma potência naval, na minha opinião, tal nunca aconteceu. O porquê da escolha dessa linha de actuação, adoptada, por exemplo, pelo seu vizinho peninsular, na minha opinião, prende-se com o facto de, ao contrário da Espanha, Portugal nunca ter tido peso político terratenente na arena internacional da época e, como esteve sempre apoiado no mar pelo seu velho aliado, a Inglaterra, nunca sentiu essa necessidade ou, os ingleses nunca lhe deixaram ter... Assim, os dirigentes portugueses preferiram centrar os recursos económicos do reino, sempre escassos, na construção de navios, em número e tipo mais adequados para proteger as linhas de comunicação entre a metrópole e as colónias, fundamentais para a sobrevivência do reino, do que para o combate entre forças navais de grandes dimensões. No século XVIII e inícios do XIX, essas funções eram principalmente atribuídas aos navios de 74 peças, apoiados por navios mais ligeiros, como era o caso das fragatas. O único momento em que Portugal desempenhou um papel mais activo no teatro internacional, para além do período dualista - mas aí arrastado pelas políticas dos monarcas espanhóis, foi a partir dos finais do século XVIII, em que Portugal participou activamente, não só nas acções contra os corsários franceses, em particular, como também nas acções de bloqueio naval que os ingleses realizavam aos portos franceses e, mais tarde, aos espanhóis. Contudo, esse expoente máximo foi de curta duração, pois após a partida da corte para o Brasil, em 1807, o declínio da Armada foi muito acentuado, sendo a responsabilidade, quase exclusiva, não da acção dos inimigos de Portugal, mas antes da incúria dos governantes. Foi também o resultado da nossa politica de aliança com Inglaterra que face à sua superioridade nos mares, também não necessitava dos nossos navios e terá canalizado todo a nossa economia para financiar o exército português, esse sim, fundamental para as operações inglesas na Península Ibérica. No entanto, no Atlântico, embora numa zona muito confinada, ideal para a actuação dos meios navais da época, Portugal exerceu um eficaz controlo marítimo. A Armada e a Europa, A zona do estreito de Gibraltar, através da Armada do Estreito, que foi criada nos inícios do século XVI, e que tinha como objectivo principal, fazer frente à ameaça que representavam os piratas e corsários do Norte de África. Esta armada, apoiada no porto de Ceuta e pela região do Algarve, exercia um verdadeiro controlo naval na área do Estreito de Gibraltar, tentado conter as acções dos corsários muçulmanos contra a navegação comercial lusa e, simultaneamente, apoiar as acções de corso pratica- das pelos portugueses, de modo a impedir os movimentos comerciais muçulmanos «Os portugueses em Marrocos e a guerra no mar no princípio do século XVI». Esse controlo era mais ou menos efectivo dependendo do apoio que essa força naval recebia dos monarcas portugueses, e apesar das diversas dificuldades com que se debateu, esta armada manteve-se mais ou menos sem interrupções até ao século XIX, apesar dos piratas e corsários do Norte de África se terem mantido sempre activos, ameaçando tanto a navegação da área, como fazendo assaltos a terra, chegando mesmo a atacar os Açores e a Madeira.


Aproveitando o apogeu da marinha de guerra portuguesa, a partir do último quartel do século XVIII, Portugal desencadeou diversas acções contra os piratas muçulmanos que continuavam a infestar a zona do Estreito, pilhando e capturando reféns, conseguindo, desse modo, até meados do século seguinte, que fossem assinadas tréguas entre esses e Portugal. Estas tréguas, que colocaram a salvo a navegação portuguesa, mantiveram a navegação de outras nações sob a ameaça permanente dos corsários e, agora sem o apoio da Esquadra do Estreito, outras nações ocidentais foram obrigadas a enviar meios para a área. No caso dos Estados Unidos da América, estes foram obrigados a criar, formalmente, a sua marinha. Esse controlo, foi conseguido através de diversos estratagemas, uns militares, outros políticos. Por estas razões, considerar que Portugal, porque reunia as condições necessárias e porque utilizava as rotas comerciais, mais ou menos livremente, fosse uma potência marítima no Atlântico, parece-me incorrecto. A única excepção foi na zona do Estreito de Gibraltar onde, aí, apoiado por pontos de apoio naval de ambos os lados do Estreito, Portugal tentou evitar que os seus adversários utilizassem esse ponto estratégico, quer para fins militares, como para fins comerciais.

domingo, fevereiro 15, 2015

Portugueses na África Séculos XV-XIX




África Portuguesa

A colonização portuguesa de África foi o resultado dos descobrimentos e começou com a ocupação das Ilhas Canárias ainda no princípio do século XIV. A primeira ocupação violenta dos portugueses na África foi a conquista de Ceuta em 1415. Mas a verdadeira "descoberta" de África iniciou-se um pouco mais tarde, mas ainda no século XV. Em 1460, Diogo Gomes descobre Cabo Verde e segue-se a ocupação das ilhas ainda no século XV, povoamento este que se prolongou até ao século XIX, mas isso foi em 1458. Durante a segunda metade do século XV os portugueses foram estabelecendo feitorias nos portos do litoral oeste africano.



No virar do século, Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança, abrindo as portas para a colonização da costa oriental da África pelos europeus. A partir de meados do século XVI, os ingleses, os franceses e os holandeses expulsam os portugueses das melhores zonas costeiras para o comércio de escravos. Portugal e Espanha conservam antigas colónias. Os portugueses continuam com Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.

África Ocidental Portuguesa


Angola (também conhecida como África Ocidental Portuguesa, Angola Portuguesa) é o nome comum pelo qual a colónia portuguesa, no sudoeste da África era conhecida em diferentes épocas. Nas suas fronteiras actuais, a colónia de Angola só existiu meio século, a partir de meados dos anos 1920. É certo que os portugueses estiveram presentes no litoral deste território a partir do fim do século XV, estabelecendo sucessivamente (essencialmente para fins de tráfego de escravos e outro tipo de comércio) postos comerciais e, sobre tudo, as praças-fortes de Luanda e de Benguela cujas áreas circundantes foram ocupados. Uma penetração e conquista do interior começou apenas no século XIX. No fim deste século a "colónia de Angola" estava constituída, mas uma delimitação definitiva e "ocupação efectiva" do território não foi alcançada antes de 1926.


África Oriental Portuguesa


Moçambique ou África Oriental Portuguesa (oficialmente Estado da África Oriental, Província de Moçambique). A África Oriental Portuguesa foi uma colónia e, posteriormente, uma província ultramarina de Portugal no exterior, ao longo da costa do Sudeste Africano, território que agora forma a República de Moçambique. Postos de comércio e, mais tarde, colónias portuguesas foram formadas ao longo do litoral em 1498, quando Vasco da Gama atingiu a costa moçambicana. Lourenço Marques explorou a área que hoje é a Baía de Maputo em 1544. Ele se estabeleceu definitivamente no atual Moçambique, onde passou a maior parte de sua vida e seu trabalho foi seguido por outros exploradores, marinheiros e comerciantes portugueses. Moçambique, de acordo com a política oficial, não era uma colónia, mas antes uma parte da "nação pluricontinental e multirracial" portuguesa. Em Moçambique, assim como fez em todas as suas colónias, Portugal tentou europeizar a população local e assimilá-la à cultura portuguesa.


Ilha de Moçambique


A Ilha de Moçambique é uma cidade insular situada na província de Nampula, na região norte de Moçambique, que deu o nome ao país do qual foi a primeira capital. O seu nome, que muitos nativos dizem ser Muipiti, parece ser derivado de Mussa Ben-Bique, ou Mussa Bin-Bique, ou ainda Mussa Al-Mbique (Moisés filho de Mbique), personagem sobre quem se sabe muito pouco. A Ilha tem cerca de 3 km de comprimento e 300-400 m de largura e está orientada no sentido nordeste-sudoeste à entrada da Baía de Mossuril, a uma latitude aproximada de 15º02’ S e longitude de 40º44’ E. A costa oriental da Ilha estabelece com as ilhas irmãs de Goa e de Sena (também conhecida por Ilha das Cobras) a Baía de Moçambique. Estas ilhas, assim como a costa próxima, são de origem coralina. Quando Vasco da Gama chegou, em 1498, a Ilha de Moçambique tornara-se uma povoação suaíli de árabes e negros com seu xeque, subordinado ao sultão de Zanzibar e continuava a ser frequentada por árabes que prosseguiam o seu comércio de séculos com o Mar Vermelho, a Pérsia, a Índia e as ilhas do Índico. A ilha de Moçambique ganhou uma importância estratégica como escala de navegação da carreira da Índia que ligava Lisboa a Goa, tornando-se um dos pontos de encontro das embarcações eventualmente desgarradas na viagem de ida, assim como porto de ancoragem das que eventualmente se atrasassem e perdessem a monção. Onde na Ilha é hoje o Palácio dos Capitães-Generais, fizeram os portugueses a Torre de São Gabriel no ano de 1507, data em que ocuparam a Ilha, construindo a pequena fortificação que tinha 15 homens a proteger a feitoria nela instalada. A Capela de Nossa Senhora do Baluarte, construída em 1522 na extremidade norte da ilha, a mais próxima da Ilha de Goa, é o único exemplar de arquitectura manuelina em Moçambique. Em 1558 principiou a construção da Fortaleza de S. Sebastião, totalmente com pedras que constituíam o balastro dos navios (algumas das quais ainda se vêem na praia próxima), que só terminou em 1620 e é a maior da África Austral.



Esta fortaleza era muito importante, porque a Ilha tinha-se tornado o entre posto da permuta de panos e missangas da Índia por ouro, escravos, marfim e pau-preto de África, e era da Ilha que partiam todas as viagens comerciais para Quelimane, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques e os árabes não queriam perder os privilégios comerciais que tinham adquirido ao longo dos séculos. Para além dos portugueses outros concorrentes europeus apareceram na corrida pelo controlo das rotas comerciais. Os franceses conseguiram assumir o papel de intermediários do negócio da escravatura para as ilhas do Índico, os ingleses começavam a controlar as rotas de navegação nesta região e os holandeses tentaram a ocupação da Ilha em 1607-1608 e, não o conseguindo, devastaram-na pelo fogo. A reconstrução da vila foi difícil, uma vez que o governo colonial não existia senão para cobrar impostos e estava muito mais interessado nas terras de Sofala (na Zambézia tinham-se institucionalizado os Prazos da Coroa, e o desenvolvimento do comércio do ouro naquela região leva a que a Ilha perca a sua primazia). Então, os cristãos decidiram fundar na Ilha uma Santa Casa da Misericórdia que funcionaria como Câmara Municipal, para a defesa dos cidadãos e da terra, até 19 de Janeiro de 1763, ano em que a povoação passou a Vila. Esta viragem resultou da decisão do governo colonial em separar a colónia africana do Estado da Índia e criar uma Capitania Geral do Estado de Moçambique baseada na Ilha, a 19 de Abril de 1752. A vila voltou a prosperar e a 17 de Novembro de 1818 é elevada a cidade. A exportação de escravos era o principal comércio da ilha, tal como a do Ibo mas a Independência do Brasil em 1822, que era o principal destino deste comércio, voltou a deixar a ilha no marasmo.



terça-feira, fevereiro 10, 2015

O Comercio de Escravos em Portugal - XV-XVIII


Historia, sobre o tráfico de escravos-comercio negreiro
(Portugal)

O tráfico de escravos era uma das formas de comércio, altamente lucrativa, já exercida pelos mercadores fenícios. Nas sociedades mediterrâneas grega e romana, os escravos constituíam um importante “artigo comercial". Os indivíduos eram capturados em incursões noutros territórios, nas guerras ou vendidos pela aristocracia tribal. Os seres humanos, incluindo crianças, eram negociados nos mercados como animais ou qualquer outra mercadoria. Em alguns centros de comércio havia mercados especiais de escravos. Alguns senhores feudais costumavam pagar parte dos seus impostos anuais através da oferta de escravos e tinham igualmente o hábito de os utilizar como ofertas ao soberano ou aos governadores provinciais.


Contudo, o escravo nem sempre era uma “coisa” como estava instituído na lei romana, mas sim uma pessoa com direitos e deveres definidos no estatuto do escravo. Na China, já no I milénio A.C. os escravos tornaram-se um importante objecto de trocas comerciais. Por vezes, o valor de um escravo era inferior ao de um cavalo ou de uma junta de bois; cinco escravos custavam tanto como um cavalo; o valor de um escravo equivalia a 20 novelos de seda. No milénio seguinte, eram organizadas expedições aos países dos mares do sul para a captura de escravos, pois o tráfico de escravos ocupava já um importante lugar no comércio externo. Havia um constante mercado de escravos em quase todas as cidades, onde eram negociados como qualquer mercadoria corrente. Eram colocados em cercados juntamente com o gado e aí contados como se tratasse de gado de trabalho. Grupos de escravos acorrentados eram enviados pelos traficantes para centenas de quilómetros de distância.


No I milénio D.C. árabes e beberes entregaram-se a um tráfico de escravos na costa Oriental de África e através do Sara, que perdurou até ao século XIX. Os comerciantes muçulmanos dispunham de grandes mercados de escravos além-fronteiras: na Europa Central e de Leste, na Ásia Central, nas estepes situadas na orla das florestas africanas. Durante os períodos de conquistas, as guerras permitiam a captura de muitos prisioneiros o que facilitava o negócio do tráfico de escravos e o tornava muito lucrativo. O tráfico de escravos prosperou devido à expansão do Islão e do crescimento das relações comerciais. Na Arábia, século XVI, o tráfico de escravos era um negócio importante e florescente. Os escravos eram importados de África e destinados ao trabalho manual pesado como a extracção de pedra e a construção civil, serviços domésticos, etc. Os tributos, que serviam para alimentar as finanças reais, eram pagos com frequência pelo tráfico de escravos. Muitas tribos nómadas desempenharam um papel importante no comércio de escravos a longa distância. Entre as mercadorias negociadas no norte de África por genoveses, venezianos, espanhóis e portugueses contavam-se os escravos. Para os mercadores dos países marítimos da Europa Ocidental o tráfico de escravos tornou-se a mais lucrativa das empresas, que movia muitos interessados, tornando-se difícil o monopólio. A sua captura era em geral tarefa para os chefes africanos. Os proprietários de navios ou os seus fretadores compravam os negros no melhor mercado e transportavam-nos para a América em condições tais que muitos morriam na viagem. Os navios estavam munidos com um equipamento especial para armazenar a carga humana.


As feitorias, espalhadas pela África Ocidental, serviam de pontos de contacto que permitiam uma rotação mais rápida das frotas, pois os carregamentos de negros já aguardavam aí a chegada dos navios. O comércio de escravos concentrou-se nos grandes portos, particularmente nos que eram considerados livres. A escravatura praticava-se em África muito antes de 1500. O tráfico de escravos era praticado paralelamente com uma contínua escravatura interna. Entre os africanos havia escravos de “família “ ou de “guerra”, variando de região para região o modo como eram explorados. Após esse ano, o tráfico de escravos é agravado por uma nova dimensão intercontinental: o transporte para as Américas com a sua impressionante história e consequências ainda não completamente avaliadas. O tráfico era quase sempre organizado através de “contractos” entre parceiros comerciais europeus e africanos. O recrutamento era confiado a “contratadores”, que adquiriam este direito mediante o pagamento de licenças. Os europeus não se envolviam directamente na caça aos escravos e preferiam comprá-los aos africanos que se encarregavam de os capturar. Os mercadores europeus permaneciam junto à costa onde os seus parceiros comerciais acorriam para a entrega de escravos capturados em guerras ou em ataques organizados, em troca dos mais variados objectos, em geral de pouco valor. O grande desenvolvimento do tráfico de escravos negros, na segunda metade do século XVI, foi impelido pelas grandes fazendas de cana de assucar, café, cacau, algodão etc.


A abolição da escravatura e o teatro português
(Século XVIII – XIX)

A necessidade mão-de-obra para as plantações tropicais americanas principalmente de cana-de-açúcar e de algodão. O debate sobre a abolição da escravatura que se instaura em Portugal, na segunda metade do século XVIII até o princípio do século XIX, teve no teatro um palco privilegiado para a propaganda oficial ao mesmo tempo que promoveu a personagem do Negro - até lá figura cómica herdada do teatro vicentino - o verdadeiro protagonista ou pelo menos objecto da acção teatral. A partir de quatro obras publicadas em Portugal, um entremez, O contentamento dos pretos por terem a sua alforria, (1787), dois diálogos, Nova e curiosa relação de hum abuso emendado ou evidências da razão expostas a favor dos Homens Pretos em hum diálogo entre hum Letrado e hum Mineiro, (1764), O Preto e o Bugio ambos no mato, discorrendo sobre a arte de ter dinheiro sem ir ao Brasil (1789), e um drama, obra póstuma de José Agostinho de Macedo, O Preto sensível (1836), pretendemos mostrar que o espaço teatral é o espaço da História.


Estudaremos em particular as representações espaciais da escravatura em Portugal e no Brasil, a evolução estética e ideológica entre o diálogo de 1764 e o drama de 1836, e a singularidade do diálogo de 1789. A promoção literária da personagem negra é fruto da evolução das mentalidades e da tomada de consciência da injustiça do estatuto de escravo que começa a manifestar-se a partir da segunda metade do século XVIII em Portugal. Esta evolução integra-se no debate que já se instaurara na Europa, incentivado pela filosofia das Luzes. O Estado e a Igreja e os jornais intervieram decisivamente nesta questão polémica. As primeiras medidas a favor da alforria foram tomadas durante o reinado de Dom José. Perante um imenso império, com numerosos escravos tanto nas possessões ultramarinas como na própria metrópole, o Marquês de Pombal é divido entre o seu desejo de inscrever Portugal na lista das nações civilizadas e a necessidade de fazer prosperar os domínios ultramarinos. O primeiro alvará de 1761 tende sobretudo a impedir a chegada de escravos na metrópole que: (..) Fazendo nos meus domínios ultramarinos uma sensível falta para a cultura das terras e das minas, só vêm a este continente ocupar os lugares de moços de servir, que ficando sem cómodo, se entregam à ociosidade. A reiteração das mesmas medidas em 1773 permite imaginar as dificuldades em fazer respeitar tal proibição. Assim o novo alvará denuncia os que continuam a utilizar uma mão de obra escrava em Portugal, explorando a sua descendência, desprezando todo sentimento humanitário e religioso.

        
O texto lembra que todos os Negros são também sujeitos da Coroa mantidos numa situação indigna:

(..) a grande indecência que as ditas escravaturas inferem aos meus vassalos.(..) aqueles miseráveis que a sua infeliz condição faz incapazes para os ofícios públicos, para o comércio, para a agricultura. Os imperativos económicos e sociais são claramente enunciados estabelecendo uma nítida fronteira entre Portugal e o Brasil. Pois o que se considera injusto e prejudicial na metrópole continua sendo benéfico e desejável nos trópicos. A Igreja adopta atitudes ainda mais ambíguas, tentando conciliar, a escravatura com a doutrina cristã. Em 1758, o Padre Manoel Ribeiro Rocha, residente na Bahia onde exerce a profissão de advogado, publica em Lisboa um livro intitulado, Ethiope resgatado, empenhado, sustentado, instruido e libertado. Discurso theologico-juridico em que se propoem o modo de comerciar, haver, possuir validamente, quanto a hum e outro foro, os pretos cativos africanos, e as principais obrigações que correm a quem deles se servir.


Depois de ter reconhecido que a escravatura é a pior coisa que pode acontecer a um ser humano, a sua análise toma um rumo mais pragmático. Afirma que o comércio dos escravos sendo um costume enraizado nos próprios reinos africanos, pode ser praticado sob certas condições: Assim, e do mesmo modo os comerciantes da Costa da Mina, Angola e mais partes de África, licitamente, e sem gravame de consciência, podem trocar pelo tabaco, e mais géneros que ali conduzem, aqueles escravos, contanto que neste negócio não façam mais que resgatá-los, adquirindo neles somente um direito de penhor, e retenção em quanto lhe não pagarem o que no resgate despenderam, e o prémio do seu trabalho. O autor acrescenta que o próprio dono ganha com isso, pois o escravo tendo a perspectiva de ser liberto servirá com muito mais zelo. Sem ser revolucionário, este texto, dirigido aos grandes senhores de engenho, propõe modificações notáveis no tratamento dos escravos. Ao estabelecer as condições de acesso à alforria, restringe de facto os direitos de propriedade dos donos, abole a hereditariedade do estatuto.



Quarenta anos mais tarde, o bispo de Pernambuco, Joaquim José da Cunha Azeredo Coutinho toma partido contra a abolição da escravatura, e pede licença para publicar em Portugal sua Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da costa da África. A Academia Real das Ciências, julgando a questão polémica e as posições do bispo ofensivas dos sentimentos do público, nega-lhe a impressão. O livro, traduzido em francês, será publicado em Londres, em 1798. Na sua análise, o autor, representante da Igreja mas também senhor de engenho, toma a defesa dos interesses da oligarquia colonial, tentando estabelecer um debate contraditório com os abolicionistas e os chamados novos filósofos: Na verdade, confesso que não posso entender a humanidade deste que se dizem ter horror ao comércio do resgate dos escravos da África e dos quais se dizem amigos sem com eles ter trato nem comunicação, e que ao mesmo tempo estão vendo com olhos enxutos os seus pobres concidadãos, homens brancos e civilizados trabalhando ao sol e a chuva para ganharem o miserável sustento para aquele dia… Filósofos, que vos dizeis sentimentais, sede uma vez consequentes: ou não griteis contra o comércio do resgate dos escravos da Costa da África, ou riscai do código das nações o direito da propriedade e o de darem leis a si mesmos.



A proibição de tal publicação enfatiza o nascer duma opinião pública em Portugal que começa também a manifestar-se nos jornais, em particular na Gazeta de Lisboa, (1715-1820) e no Jornal enciclopédico, (1788-1793). Assim, nos meados do século XVIII, domina uma posição moderada, tanto da parte do Estado como da Igreja. Fora de Portugal, o comércio e a prática da escravatura eram aceites nas Costas da África e no Brasil como necessidades económicas mas a alforria era recomendada. No fim do século XVIII, opõem-se dois campos antagónicos: o dos abolicionistas que reivindicam a total supressão do tráfego e do estatuto de escravo, o dos conservadores que querem mantê-los embora declarem que o escravo deve ser melhor tratado. O teatro acompanha este debate, passando do exemplo à polémica, desempenhando uma função didáctica e propagandista. Para representar melhor uma das questões que agita a sociedade portuguesa, desloca o espaço cénico da metrópole à colónia. Portugal, tribunal da liberdade versus Brasil, teatro de crueldades. Propomos começar esta análise pelo diálogo Nova e curiosa relação de hum abuso emendado ou evidências da razão expostas a favor dos Homens Pretos em hum diálogo entre hum Letrado e hum Mineiro, (1764). O Mineiro é a figura do português que emigrou para as minas de ouro e voltou rico à pátria onde passou também a ser chamado Brasileiro de torna-viagem. Aparece frequentemente no teatro de cordel do século XVIII, caracteriza-se como pessoa rica mas ridícula, sempre servido por uma numerosa criadagem composta de escravos negros. No caso supracitado o Mineiro ignorante expõe um caso de consciência a um Letrado, representante da lei e detentor da sabedoria. Aquele prometera a alforria ao seu escravo no prazo de dez anos de bons e leais serviços. Vencido o prazo, não quer cumprir a promessa, provocando a revolta do escravo que até aí fora um criado exemplar “começou a esfriar-se do fervor com que me servia; e de sorte me desagradou, que intentei vendê-lo para o Brasil só para que com rigoroso castigo acabasse a vida”. Mas o escravo fez-se sócio duma Irmandade e por privilégio real não pode ser vendido para o Ultramar. Disposto a violar a proibição, o Mineiro ainda vacila sob a ameaça de cometer um pecado mortal. Toda a argumentação do Letrado baseia-se no reconhecimento da condição humana dos escravos e na tentativa de desenganar o Mineiro dos seus preconceitos raciais:


Mineiro; Pois se os pretos são tanto como nós, para que são eles nossos escravos, nós os brancos não o somos deles? Letrado: Já vejo que V.M. está muito longe da razão. Senhor, os pretos não são nossos escravos porque são pretos. (...) há outras razões políticas, e permitidas para se reputarem como tais. (...) É um abuso introduzido entre muitas pessoas, imaginarem que os pretos foram nascidos para serem escravos; porém a natureza a todos os homens ama sem diferença. O Mineiro, pasmado, replica com exemplos de tratamento injurioso e cruel que presenciou tanto nos engenhos da Bahia como do Rio, onde os donos têm poder de vida e de morte nos seus escravos: Em certo engenho na Bahia vi eu morrerem em um dia dois negros, estando seu senhor à sua vista mandando-os açoitar por outros escravos. (...) Que faria, se V.M. visse lá nos Brasis trabalharem os negros quase continuamente noite, e dia; isto andando nus; e ordinariamente só lhes dão uma pouca de farinha de pau a comer. Esses tratamentos são julgados como escandalosos, pecaminosos, criminosos, e injustos pelo Letrado que exclama com a ênfase do Padre António Vieira : Ah senhor! E quantas insolências se cometem com os miseráveis escravos nos Brasis! Mas quem as usa! Gente avarenta! Gente pouca temente a Deus! Gente, que tem coração de fera! Tantos recursos argumentativos parecem incapazes de convencer o Mineiro que se conserva indeciso deixando o leitor na expectativa sobre o destino do escravo. O contentamento dos Pretos por terem a sua alforria, (1787) em que assistimos a teatralização dum acto de alforria, da parte dum rico negociante lisboeta, homem magnânimo, e instruído, perfeita antítese do Mineiro egoísta e ignorante. Este acto é justificado pelos méritos dos dois escravos, Caterina e Sebastião, compêndio de virtudes. Os seus comportamentos são julgados excepcionais pelo próprio dono que se alegra por não ter tido, escravos ladrões, bebedores, jogadores, defeitos próprios da raça segundo afirma. Claro que não se trata de outorgar a alforria de maneira sistemática mas conforme os méritos. No entanto, face aos argumentos contrários da esposa, o negociante desenvolve um discurso humanista, sublinhando a infâmia do estatuto de escravo, “este ferrete escandaloso que os ingratos têm na face”, o valor supremo da liberdade, “ainda não conheceram o dom da liberdade, quero alegrá-los, quero que vejam a diferença do estado em que estão para o que passam”. Os escravos, cheios de alegria, pedem autorização para casar e declaram o seu desejo de ficar a servir como criados, não podem abandonar tão bons amos. Eis dois belos exemplos do papel da literatura em geral e do teatro em particular na educação à cidadania e na divulgação da ideologia oficial, aliás explicitamente indicada no título do diálogo “abuso emendado”, “evidências da razão”, “a favor dos homens pretos”. O entremez é ainda mais exemplar da relação entre teatro e poder, perfeita aplicação dos alvarás pombalinos. Ele propõe um modelo de generosidade e de paternalismo aos proprietários de escravos, a alforria é uma maneira de mostrar a grandeza da sua alma.


O Brasil é claramente censurado, a voz da razão vem de Portugal e advoga a favor da alforria. O Mineiro é de certa maneira uma metonímia dos colonos brasileiros ao passo que o rico negociante representa a faixa mais progressista da sociedade portuguesa. Esta dicotomia entre Portugal e o Brasil, acentua-se, no século XIX, com as grandes campanhas abolicionistas levadas pela Inglaterra. Em 1836, ano em que Portugal assina o decreto abolindo definitivamente o tráfego de escravos, é publicado o drama O Preto sensível.


A origem da peça merece alguns esclarecimentos. De facto descobrimos que se tratava da tradução ou melhor dito da adaptação duma peça espanhola, El Negro sensível, melodrama de L.F. Comella, publicado em 1798 e representado em Madrid no mesmo ano. A confrontação dos dois textos é particularmente instrutiva quanto à utilização do teatro na elaboração da historiografia oficial e como órgão de propaganda. Da América, no contexto espanhol, a acção teatral desloca-se no espaço brasileiro. Um escravo negro Catul, deitado debaixo de uma árvore lamenta a sua triste sorte, apertando o seu filho nos seus braços, é bruscamente interrompido pelos gritos ásperos do seu amo Marçal, que o manda para o canavial. Entretanto, chega ao engenho, uma rica senhora portuguesa, Ignacia, acompanhada pelo seu filho ainda criança. Indigna-se perante a crueldade de Marçal e quer comprar o filho de Catul para criá-lo juntamente com o dela. De volta da roça, Catul desesperado pela venda do seu filho, prepara a sua vingança projectando matar o filho da rica senhora. Após o suspense criado pelos intentos de Catul, a generosidade desta é reconhecida. Ela liberta os pais da criança, e toda a família decide embarcar para Portugal.


Além da extrema crueldade dos donos em ambos textos, é de notar o tratamento estético da personagem negra que constitui uma verdadeira promoção literária. Catul, expressa a sua revolta perante a injustiça da sua condição com acentos patéticos, num português clássico:
         
Ao Branco é grato o sol, ao Negro infausto! O sol o chama ao bárbaro trabalho (…) Deixa de existir meu filho! Poupa-te a imensa dor de ser escravo! Mas a diferença essencial entre os dois textos assenta no papel dado a Portugal na campanha abolicionista. No desenlace do drama, o escravo da peça espanhola elogia a Europa e promete converter-se à sua religião: Yo tenia aversion al europeo; miraba con horror su culto santo, porque no conocia su grandeza su generosidade, sus nobles rasgos; pero ahora que por vos é conocido con toda fuerza mi fatal engaño, venero al europeu, lo bendigo y protesto seguir sus ritos santos. Ora este episódio transforma-se na peça portuguesa num elogio enfático à Portugal, redentor dos erros cometidos por outros países europeus: Apaga Portugal da Europa as manchas, Do crime cometido a Europa absolve, em seus ferros serei livre, e tranquilo (..) E o Tejo que produz alma tão grandes, Correrá sempre ao mar livre, e seguro. A missão civilizadora de Portugal na Europa, enaltecida nos Lusíadas por Luís de Camões é reiterada aqui nos mesmos moldes para fazer deste país o campeão dos direitos humanos na Europa. Além da repetida condenação do Brasil que já se tornara independente, o autor desvia todos os méritos da campanha anti escravatura para Portugal.

A evolução das mentalidades acerca da condição escrava em Portugal manifesta-se no teatro pela representação contrastada de dois espaços: um Brasil escravocrata e um Portugal libertador da humanidade.


O paraíso da floresta brasileira, versus o inferno do engenho e das minas


No entanto, esta imagem do Brasil como um teatro de crueldades sofre uma notável excepção com o diálogo O Preto e o Bugio ambos no mato, discorrendo sobre a arte de ganhar dinheiro sem ir ao Brasil / Diálogo em que o Bugio com evidentes razões, convence ao Preto sobre a verdade desta proposição, (1789). Opondo-se ao estereótipo do Brasil cruel das grandes plantações, e das minas de ouro, desenha-se outra imagem, a da floresta virgem. Este imenso domínio transforma-se num paradigma da natureza primitiva onde todos os seres gozam da liberdade e vivem em perfeita harmonia. No prefácio, o editor indica que o manuscrito foi achado na biblioteca de um americano sábio, e sublinha “a importância da argumentação, a propriedade da linguagem, e a formosura com que exprime a natureza”. Tal prefácio é sobretudo um estratagema editorial para aguçar o interesse do leitor, impaciente por descobrir um texto de origem misteriosa e com um título bastante inesperado. O lugar de achamento, a biblioteca, a autoridade moral do proprietário, americano sábio, compensa a fantasia e garantem a sua qualidade.


A originalidade deste diálogo reside tanto na personalidade dos dois interlocutores, um Negro fugitivo e um macaco sábio, como no carácter insólito do espaço para praticar a arte da conversa, a floresta brasileira. Estamos pois num contexto completamente imaginário, afastando-se da verosimilhança das peças anteriores. Longe dos donos, o Negro alegra-se por ter escapado à roça e à mina, expressa-se na tradicional “língua de preto” como o fazem a maioria dos negros no teatro de cordel. A sua surpresa é imensa ao descobrir um ser parecido com ele, embora distinto, a inverosimilhança de tal ignorância faz parte da convenção que rege o diálogo entre um sábio e um ignorante. O bugio apresenta-se como o porta-voz do seu antigo dono, espírito esclarecido: Aprendi muito dele, porque a minha curiosidade me incitava a escutar todas as conversações que ele tinha com outros homens de letras. Esta figura do bugio como sábio é excepcional no contexto português do século XVIII. A sua presença na floresta brasileira é a etapa final dum percurso iniciático que o levou do seu espaço natural, a floresta africana ao meio civilizado na companhia dos humanos para afinal voltar ao seu estado primitivo no seio da selva brasileira. O seu discurso é altamente qualificado pela sua própria experiência, conheceu o cativeiro como animal de estimação em casa de um americano sábio no Rio de Janeiro onde “sofria da falta de liberdade, sem a qual as iguarias mais gostosas são sempre amargas”. Declara ser o próprio representante da natureza: A Natureza, que me distinguiu na discrição entre outros animais, e que aperfeiçoei na conversação de meu amo, e de outros sábios, que com ele se juntavam, é a que te fala. O bugio faz uma apologia da natureza, da vida simples, livre de contingências, paraíso original de onde os homens se afastaram por ambição e orgulho. Explica ao Negro que só na natureza se pode realizar o ideal da liberdade, dom supremo que ultrapassa os valores reconhecidos pela sociedade, a riqueza, as iguarias, até o saber: Usando da minha liberdade, sou mais feliz que os reis mais abafados com montes de negócios. (..) a minha casa tu a vês, são estes matos: a telha que me cobre, cobre todo o mundo: são os azulados céus, obra do primeiro Entre, os tectos das nossas casas: tive pais da minha raça que não vi mais depois que pude nutrir-me do sustento, que em toda a parte me oferece a Natureza por estes bosques.


Além disso a natureza que ama todos os homens não pode sofrer a escravatura: A Natureza, senhora de todo o mundo não deu império algum aos homens para despojar da liberdade aos seus semelhantes e eu vejo-vos despojado deste bem. O Negro que fez um percurso semelhante é exactamente a figura antitética do macaco, tanto pelas condições do cativeiro como pelos ensinamentos que lhe deram o seu amo e os padres da Igreja. Recebeu deles todos os seus preconceitos, o que lhe impede de imaginar outra ordem social. No entanto a sua fuga é um primeiro passo para a revolta: Se vozo non sá riabo, ao menos sá pla mim huns coisa novo. Diga vozo, plo ventura recoie-se nos casa como nozo, e tem Sioro, que governa sore toro os família, e que fá trabaiá toro o ria nos mina, nos roça, e nos engenha pala fazé clecer sua dinheiro, e ser hum Siora glande?

(…) E vozo que dá a dente, e mete pala banduio, si polaqui non vejo mio, e feijão, nem trabaia pleto? Mi estar smaraviaro de ouvi-la vozo, non sendo vozo Blanco, nem Pleto: Non tem-ia vozo mandinga! Jesu me vaia! Não seia ere o riabo em figula de vozo! O seu encontro com o bugio é decisivo, permite-lhe imaginar outra maneira de viver. Mas não pode deixar de se interrogar sobre a possibilidade de passar a vida a descansar à sombra das árvores como o bugio e coloca a questão do trabalho. O bugio propõe então outro modelo de sociedade, onde o trabalho não seria mais um pesadelo e onde todos receberiam conforme as suas necessidades, “seguindo o seu génio, cultivando os talentos de que o adornou a Natureza e evitando os excessos da prodigalidade e da avareza”.

A floresta brasileira transformada num salão de filosofia, perde todo carácter exótico, revela-se como o paraíso perdido desde que os homens se afastaram da natureza. Só os animais continuam a gozar esse privilégio, os homens não têm outro remédio a não ser ficar no mundo civilizado que criaram, inventando outras leis. A primeira seria, respeitar a liberdade para todos, a segunda, ficar na sua terra natal em vez de tentar a fortuna do outro lado do mar:

Tu imaginas que os Brancos para possuírem os cabedais que tu dizes, lhes seria preciso abandonar o amor da pátria, dos pais, dos filhos, dos parentes, e amigos; enrostar a morte por cima dos mares; afrontar imensos perigos, reconhecer novos astros, penetrar novos climas, e degradar-se da humanidade, sendo tiranos, e cruéis não só convosco, mas consigo mesmos. Ah! A Natureza a todos liberaliza os meios de viverem felizes, sem se aventurarem aos excessos da ambição. Podemos ver neste diálogo um libelo contra a escravatura mas também uma severa crítica da colonização do Brasil e dos excessos provocados pelo apelo do Eldorado. Talvez seja motivada pela vontade política de limitar a hemorragia provocada pela emigração ao Ultramar. O subterfúgio do bugio permite uma liberdade de tom, abre perspectivas mais atrevidas e utópicas do que nas peças estudadas anteriormente. A voz discordante do sábio americano soa como um eco da voz do velho do Restelo condenando a vã cobiça Luís de Camões, Os LusíadasNesta viagem no tempo e no espaço luso-brasileiro, tentámos seguir as redes de relações que teceram ao longo dos anos, teatro e História. Parece-nos que a primeira função do espaço teatral, foi a de servir de campo experimental para resolver as contradições duma sociedade escravocrata, e aplicar modelos de conduta exemplar.


Mais tarde, no século XIX, o teatro funcionou como caixa-de-ressonância do debate abolicionista. Nos dois espaços representados, realizava-se o confronto de interesses opostos, em que Portugal se outorgava o papel de defensor da razão e da liberdade enquanto ao Brasil colonial cabia o papel de opressor, réu acusado de todos os males. No entanto a pequena clareira aberta na floresta brasileiro pelo diálogo do Negro e do macaco rompe com esta divisão convencional e esquemática dos espaços históricos, esboçando um terceiro espaço, o da utopia para que se realize o sonho doutra humanidade.