sábado, junho 20, 2015

Batalhas e Combates-1504 II

Vau de Cochim
(Maio de 1504)


Desmoralizado com as derrotas sofridas pela sua armada nas três batalhas do passo de Cambalão, o Samorim estava resolvido a desistir da guerra. Mas os «mouros» influentes de Calicut, os Reis seus vassalos e os senhores das terras de Cochim que se tinham passado para o seu lado não o deixaram. Diziam-lhe que era uma vergonha retirar com um exército e uma armada tão poderosos diante de quatro navios minúsculos. E, mais uma vez, venceu a eterna razão de prestígio, responsável pelo prolongamento escusado de tantos conflitos. O Samorim decidiu-se a continuar a guerra. Como não tinha conseguido forçar o passo de Cambalão, foi com o seu exército atravessar o rio num outro passo mais a montante e dirigiu-se rapidamente para a ilha fronteira a Cochim, onde assentou arraiais. Logo que teve conhecimento destes movimentos, Duarte Pacheco, alterou o dispositivo das suas forças. Para impedir que as tropas do Samorim pudessem entrar em Cochim através do vau que na maré baixa, dava passagem com água pelo joelho da ilha onde se encontravam para aquela cidade, mandou reforçar as tropas do Rei, que guarneciam a paliçada, com os soldados da nossa fortaleza, que deixou praticamente vazia. Mandou ainda espetar estacas aguçadas e semear abrolhos de ferro no leito do vau. Para evitar que a armada de Calicut se pudesse aproximar de Cochim, estacionou as duas Caravelas no passo de Palurte, situado no extremo sul da principal via fluvial que do Norte, conduz a esta cidade.



Quanto aos batéis passou a ir com eles para o vau durante a maré baixa e a trazê-los para junto das caravelas durante o resto do tempo em que aquele não dava passagem. E neste vaivém se manteve, sem desfalecer, durante um mês e vinte e três dias, ou seja, desde que deixou o passo de Cambalão até ao fim da guerra! No dia 1 de Maio, logo pela manhã o Samorim lançou o seu primeiro ataque, por mar e por terra, contra Cochim. Ao mesmo tempo que as suas tropas tomavam posição diante do vau, prontas para o atravessar logo que a água descesse o suficiente, a armada de Calicut, na força de duzentos e cinquenta navios, preparava-se para investir contra as caravelas, apoiada pelo tiro de uma bateria que, entretanto tinha sido montada na margem. Duarte Pacheco, apercebendo-se das intenções do inimigo, começou por se dirigir ao vau com dois batéis. Aí, saltando inesperadamente em terra com mais de vinte homens, lançou a confusão na vanguarda do exército de Calicut, que esperava tudo menos ser atacado! Seguidamente dado que faltava ainda um certo tempo para o baixa-mar, voltou para o passo de Palurte, onde se encontravam as caravelas. Como visse que a armada de Calicut se conservava à distância, esperando pelo baixa-mar para atacar ao mesmo tempo que o exército, resolveu provocá-la indo com os batéis ao seu encontro. Atacando resolutamente o primeiro grupo de doze paraus, avariou gravemente dois deles, o que levou o resto da armada inimiga a abandonar a atitude da expectativa em que se tinha conservado até ali e a lançar-se imediatamente ao ataque. Duarte Pacheco foi juntar-se às caravelas, satisfeito por ter conseguido desfasar os ataques da armada e do exército de Calicut, o que lhe permitiria combater separadamente com cada um deles. Como no passo de Paluarte havia mais espaço do que no passo de Cambalão, a vanguarda da armada de Calicut era agora constituída por quarenta paraus, amarrados de braço dado uns aos outros que vinham disparando furiosamente as suas bombardas e espingardas e lançando nuvens de flechas. De novo os portugueses usaram a táctica de deixar o inimigo chegar muito perto e só então abriram fogo com efeitos devastadores. Mas nem por isso os atacantes desistiram. Vinham sempre mais e mais paraus procurando obstinadamente abordar as caravelas e os batéis. No interior deles os portugueses, ensurdecidos pelo ribombar contínuo dos canhões cegos pelo fumo da pólvora, ensopados em suor, de dentes cerrados repetiam mecanicamente os mesmos gestos; carregar, disparar, carregar, disparar, carregar, disparar... Apontar, quase que não era preciso, porque os inimigos eram tão numerosos, vinham tão juntos e estavam tão perto que não se perdia um tiro! E eram já tantos mortos e os feridos e tantos paraus arrombados e incapazes de manobrar, que os que vinham mais atrás se amedrontaram e suspenderam o ataque. Mas o Samorim, que estava observando a batalha da margem, deu ordem para prosseguir e os infelizes paraus não tiveram outro remédio senão voltar à carga para terem o mesmo destino dos que os haviam precedido. No mais aceso da luta chegou um mansageiro do rei de Cochim pedindo a Duarte Pacheco que fosse imediatamente para o vau, porque o exército de Calicut estava prestes a lançar-se ao assalto da cidade. Respondeu-lhe aquele que estivesse tranquilo, porque a altura da água ainda não permitia a travessia. Na realidade, não queria abandonar as caravelas antes de a armada inimiga ter sido derrotada. Por fim, vendo que esta já se encontrava praticamente desbaratada e que a maré já estava muito baixa acorreu com os dois batéis ao vau de Cochim que nesse instante, as tropas do Samorim tinham começado a vedear. Disparando incessantemente os seus canhões e as suas espingardas os batéis fustigaram o flanco da coluna atacante, que aliás progredia com muita por causa das estacas aguçadas enterradas no leito do vau.


Foi uma verdadeira chacina. Os mortos e os feridos eram tantos que a água ficou tinta de sangue! Apesar disso, os Malabares não se atemorizaram e investiram corajosamente contra os batéis em massas compactas. As flechas e as balas batendo nos paveses que os protegiam pareciam granizo. Os homens que estavam dentro deles, apertados uns contra os outros como sardinhas em lata, não podiam fazer mais do que aquilo que tinham feito durante toda a manhã; carregar e disparar o mais depresa possível, pois disso dependia exclusivamente a salvação das suas vidas e de Cochim. Com o descer da maré, os batéis acabaram por ficar em seco, o que animou ainda mais os soldados do Samorim nas suas tentativas para os tomarem. Mas em vão. Todos os que se aproximavam eram invariavelmente despedaçados pelos pelouros dos berços ou mortalmente feridos pelas balas das espingardas. O que é facto é que o combate com batéis distraiu as tropas que estavam no vau da sua missão principal, que era o assalto à paliçada. Durou esta batalha desesperada cerca de uma hora. Logo que a maré começou a subir, os batéis principiaram a flutuar, puderam afastar-se um pouco e disparar mais à vontade. Por seu lado, os soldados de Calicut já com a água a dar-lhes pelo peito, viram-se obrigados a bater em retirada. Mas mesmo na ilha donde tinham partido continuavam a ser vítimas do bombardeamento dos dois diabólicos batéis, o que levou o Samorim a ordenar que o exército retirasse para o interior! Ao mesmo tempo, desveirado por mais esta derrota, responsabilizava os seus Capitães, acusando-os de cobardes. E para demonstrar que só por culpa deles é que os portugueses não tinham sido vencidos, resolveu repetir o assalto seis dias depois, a 7 de Maio, assumindo directamente o comando das tropas. Desta vez Duarte Pacheco não se aproximou tanto do vau com os batéis para não dar com eles em seco. Mas isso permitiu que os soldados do Samorim atingissem em grande número, a ilha de Cochim, onde começaram a desfazer a paliçada à machadada. Vendo-se confrontados com uma multidão de inimigos, os naires encarregados da sua defesa debandaram, deixando sozinhos os portugueses que nela se encontravam e que seriam pouco mais de trinta. Apercebendo-se do que estava a passar, Duarte Pacheco viu-se forçado a ir com os batéis em aixílio dos defensores da paliçada, acabando por ficar novamente em seco. Subitamente a situação tornou-se crítica!



Animados com a presença do Samorim os soldados de Calicut avançavam corajosamente sem se impressionar com os que tombavam, procurando por um lado, abrir uma brecha na paliçada e por outro tomar aqueles dois batéis que tantos amargos de boca lhes haviam causado. Em relação a estes, conseguiram chegar tão perto que lhes começaram a puxar pelos remos tendo que  ser expulsos à lançada. As arrombadas estavam completamente desfeitas. Os paveses começavam a aluir em vários pontos. pior que tudo, a pólvora, as balas e os pelouros começavam a faltar. Felizmente, a enchente veio savar a situação. Logo que os batéis recomeçaram a nadar, chegou uma embarcação, enviada pelas caravelas, com um suplemento de munições e Duarte Pacheco pôde continuar a massacrar as tropas de Calicut que, não tendo podido tomar de assalto a paliçada e vendo-se na iminência de ficar com a retirada cortada pela maré, se apressavam a regressar ao ponto de partida. Vencido e envergonhado por não ter sido capaz de fazer melhor do que os seus Capitães que acusara de cobardes, retirava o Samorim ao longo da margem quando ao passar pelo local onde estavam as caravelas, foi reconhecido por estas. Aproveitando a oportunidade, a que estava mais próxima disparou contra ele um tiro de «camelo» (canhão de grosso calibre) que o falhou por pouco mas que matou treze pessoas do seu séquito, de cujo sangue o Samorim ficou salpicado. Aterrado com o sucedido, fugiu para dentro de um palmar. E assim ficou a saber também da borda-d'Água! No conjunto das duas batalhas do vau de Cochim a armada e o exército do Samorim tiveram milhares de mortos e feridos. Dos portugueses, não morreu nenhum, embora vários tivessem ficado feridos.



Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.