sábado, julho 25, 2015

O Leão dos Mares da Ásia-Afonso de Albuquerque (III)


(III) Esteiros do Malabar

No Imbróglio Dos Conflitos Locais


O ‘Santiago’ fazia vela para sul, o ‘Santo Espirito’ e o ‘São Cristóvão’ vogavam na sua esteira. O trajecto de Cananor a Cochim durava quatro dias, o tempo de Afonso de Albuquerque dominar o despeito que sentia, e meditar sobre as noticias preocupantes que lhe transmitira o feitor de Cananor, Gonçalo Gil Barbosa. O Capitão-Mor desesperava-se por ter sido ultrapassado pelos três navios de seu primo Francisco cuja travessia fora rápida. Chegado em 27 de Agosto a Cananor, alcançara Cochim em 2 de Setembro à noite, de tal modo se alarmara com as trágicas notícias. Nos começos de 1503, o soberano de Calecut invadira o território de Cochim. O Rei Goda Varma fora obrigado a fugir da cidade em chamas e a refugiar-se na ilha de Vaipim cujos, os templos protegiam de toda e qualquer violência. Levara com ele alguns portugueses confiados à sua guarda, em vez de os entregar ao vencedor. Assim deviam os Albuquerques dar resposta aos imprevistos que perturbavam completamente as instruções recebidas de Lisboa. O desfasamento devido à extensão dos percursos obrigava os chefes de esquadra a reconstruir um projecto a partir de factos consumados. Mas a iniciativa escapava, doravante, a Afonso de Albuquerque que deixara as margens do Tejo antes dos outros, na esperança de ser o primeiro a consegui-la. A sua amargura era ainda maior porquanto se tratava de montar uma operação guerreira, o que se adequava melhor aos seus gostos e talentos do que a negociação de um carregamento. Navegando ao longo do Malabar, tentava orientar-se em relação às fronteiras dos estados repartidos pela costa. Eram limitados por vastos estuários, ao fundo dos quais os coqueiros encobriam, a montante, o curso dos rios. Também a vegetação dissimulava a profundidade das cidades marítimas às vezes protegidas por um cordão litoral. As costas rochosas do reino de Cananor estendiam-se até ao rio de Tellicherri, que o separava dos territórios submetidos ao rei de Calecut. Esses territórios iam acabar nas margens do rio Periyar, e aí se abrigava o antigo porto de Cranganor, que o rei de Cochim disputava. Este rei dominava a zona dos esteiros até regiões apenas vislumbradas, onde ficava o célebre porto de Coulão. Nos vapores da monção que chegava ao fim, não era possivel ver-se do mar, a cadeia azul dos Gates que seguia a península a todo comprimento algumas léguas apenas da beira-mar. Esta barreira tinha aberturas formadas por algumas passagens e pela trincheira de Palghat que desembocavam no reino de Vijayanagar. Mais de quarenta rios desciam dos cumes, trazendo os comboios de madeira e os barcos de pimenta, a qual crescia em estado selvagem, debaixo das árvores, nos contrafortes dos montes. Ainda mais do que a altitude, as florestas espessas das montanhas tinha isolado os países do Malabar das influências continentais e preservado a originalidade da sua própria civilização. Então, os Portugueses ainda só tinham ideias confusas sobre os costumes das famílias reais, suas alianças e conflitos. Talvez Afonso de Albuquerque já soubesse que a lei dinástica era matrilinear e destinava à soberania o varão mais velho de todos os ramos juntos. Um tal costume não impedia os reis de favorecerem os próprios filhos e de lhes fazerem a doação de províncias inteiras. Estas linhagens paralelas defrontavam-se em conflitos intermináveis. Um outro pomo de discórdia residia na posse de lugares de peregrinação, fonte de prestígio e lucro. Mais rentável ainda era o domínio da rede fluvial que servia a região produtora da pimenta. A guerra endémica que opunha o rei de Calecut e o de Cochim tinha origem em reclamações desta natureza. A actividade de um punhado de portugueses num ilhéu da região era pretexto para se tomarem territórios reivindicados. De tais querelas cujas raízes profundas ignoravam, os Portugueses não iriam reter senão o pânico que julgavam inspirar e a cavaleiresca atitude do rei de Cochim. Exaltando um e outro conseguiram tornar realidade o perigo da sua presença e o valor da sua gratidão. Gonçalo Gil Barbosa não escondera ao Capitão-Mor que a violência desencadeada pelas autoridades de Calecut fora acelerada pelas atitudes de Vasco da Gama que obcecadamente queria fazê-los pagar as humilhações sofridas na sua primeira visita e vingar o massacre dos homens de Cabral. Mal chegou a águas de Cananor, Vasco da Gama apresou um navio armado pelo sultão do Cairo vogando na direcção de Calecut, cheio de moedas de ouro, de mercúrio, cobre e ópio. Seguiam a bordo mais de duzentos homens de armas e peregrinos que regressavam de Meca. O navio foi pilhado e depois incendiado, morrendo os passageiros queimados ou afogados, salvaram-se umas vinte crianças que logo receberam o baptismo. Semanas mais tarde o Capitão respondia ás propostas de paz de Calecut, mas com tanta impaciência que prejudicou o bom termo das negociações. O conflito surgiu quando ele bombardeou a cidade, depois de ter enforcado cerca de trinta muçulmanos nas vergas dos navios, e o escândalo chegou ao ponto mais alto quando infligiu a mesma sorte ao brâmane enviado pelo rei como embaixador. Esta execução foi recebida como sacrilégio, a casta dos sacerdotes tinha o privilégio de ser respeitada tanto por guerreiros como pelos bandidos. O rei de Calecut, teria, talvez, aceitado não passar ao ataque se os homens que Vasco da Gama deixou, não tivessem traído a sua missão. O Capitão encarregara uma pequena frota de proteger as feitorias de Cochim e de Cananor contra todas agressões. Entregaria a chefia da esquadra a seu tio Vicente Sodré que não viu satisfeito o gosto da aventura apenas com algumas pilhagens ao largo do Malabar. Então apesar das súplicas dos portugueses, abandonou a costa à sua guarda para ir fazer o corso na entrada do Mar Vermelho. Desprezando os conselhos dos homens do mar locais, deixou-se prender em tempestades que engoliram o seu navio e o do seu irmão.

A Fortaleza De Cochim


O ‘Santiago’ apareceu à entrada de Cochim em 15 de Setembro. Foi logo rodeado de pequenas barcas, onde alguns portugueses se destacavam na multidão sombria dos marinheiros. Traziam notícias tranquilizadoras ao Capitão-Mor, em alguns dias apenas, o seu primo conseguira expulsar as forças de Calecut e restabelecer o rei de Cochim no reino e direitos que lhe competiam. Obtivera até licença para construir uma fortaleza, cujos materiais já estavam reunidos. A narração daquelas proezas não era de moldo a regozijar Afonso de Albuquerque, o qual não mostrava pressa em juntar-se aos seus. Observava as esquadrilhas que sulcavam o esteiro, embarcações árabes e sampanas, barcos de pesca de velas vermelhas como as barcaças do Atlântico, lanchões de coberta de palma cuja armada a proa lembrava vagamente as gôndolas de Veneza. Altos mastros surgiam acima da ilha mais próxima coroados pelos cestos da gávea das caravelas. Francisco de Albuquerque dobrara os seus efectivos, graças a sobreviventes portugueses que recolheu ao largo de Cananor, morrendo de fome nos seus navios, António do Campo que perdera a monção do ano anterior e dois Capitães da frota de Sodré que tinham conseguido escapar à tormenta. Dispunha de seis embarcações e seiscentos homens, já sofridos por naufrágios e privações, logo enviados a combate e, de seguida para as obras da fortaleza. No dia seguinte ao da chegada Afonso de Albuquerque recebeu uma mensagem, de Diogo Fernandes Correia, feitor de Cochim e do secretário Lourenço Moreno a pedir insistentemente que viesse ajudar o primo. Acentuavam que tanto um com o outro dos Capitães seriam responsáveis pelas desastrosas consequências que adviriam do diferendo entre eles. Não eram ambos chefes de armada com poderes iguais? Não deviam comportar-se como irmãos? Afonso de Albuquerque cedeu perante a urgência da situação. Acompanhado pelos Capitães, dirigiu-se numa barca para o local da fortaleza, cujos materiais escondiam uma ponte lodosa na foz de um dos rios que ia desaguar nos esteiros. Entre os homens que se afadigavam em redor de pedras e de troncos de madeira, reconhecia alguns Capitães como, Pero de Ataíde, com o cognome de ‘O Inferno’, Diogo Pires e Pero Rafael, que não tinham receado fazer piratearia antes de fugir à companhia dos Sodrés, Nicolau Coelho comandante de uma das caravelas da primeira viagem à Índia e Duarte Pacheco Pereira tão valeroso guerreiro como sábio cosmógrafo. À vista de uma tal equipe já não o surpreendiam as vitórias diárias que, em menos de duas semanas, tinham escorraçado as tropas de Calecut e deram aos Portugueses a grande oportunidade. Mas eles deviam agarrá-la o mais que possivel, o tempo estava-lhes contado. Os ventos obrigavam a deixar o Malabar o mais tardar em Janeiro, e a agora anda era necessário vencer imprevistos que atrasaram a missão que o rei lhes confiara, juntar um carregamento de especiarias e drogas, sem saber ainda onde, por quem e condições da negociação. O rei de Calecut permanecia acampado nos arredores de Cranganor e diariamente desemboscando alguns homens armados que se escondiam em toda a parte, nos palmeirais, dissimulados atrás das paliçadas. É óbvio que nem o extermínio destes homens, nem a construção da fortaleza, havia sido previsto, nas instruções recebidas em Lisboa. Diogo Fernandes Correia e seus companheiros não esconderam aos Albuquerques a recusa de permanecer em Cochim se ficassem expostos a outra agressão e ao facto de não poderem contar com a amizade de um frágil régulo, para se manterem vivos. Tinham constrangido Francisco a prometer-lhes muralhas e guarnição, ameaçando voltar de imediato a Lisboa se não lhes ficasse garantida a segurança. Não esperavam as reticências do rei de Cochim, a quem desorientavam um pouco a rapidez e determinação dos libertadores. O monarca receava a ignorância que manifestavam sobre os valores hindus e não perdoavam Cabral por ter embarcado para Portugal dois secretários da sua casa que banhados de lágrimas se recusaram comer e beber, desde que se viram em pleno mar. Só quando os consolavam e exaltavam a sobreviver, se aperceberam os portugueses da interdição relativa às viagens de longo curso. O incidente não favorecia uma promiscuidade qualquer. O rei opôs-se ao primeiro requerimento de Francisco de Albuquerque que desejava edificar uma casa forte na ilha de Mattancherri no local onde se erguiam o palácio e o templo. Acabou por conceder um terreno na foz do rio que levava a Repelim, talvez para impedir as iniciativas de um vassalo rebelde que era proprietário daquelas terras. Se deu esta marca de confiança aos portugueses, fê-lo com certeza movido pela eficácia da acção militar deles, e mais ainda, pela tenacidade que demonstravam. A perseverança que os levava a enfrentar todos os anos, os perigos de dois oceanos, era um vivo testemunho da vontade de se afixarem na Índia. Porque não lhes aceitar o apoio, em vez de se fiar na inconstante aliança de vassalos que o tinham, na grande maioria, abandonado? As bases da fortaleza foram lançadas a partir de 18 de Setembro. O rei forneceu madeira e mão-de-obra, o que não impediu os Capitães de juntarem aos seus homens e mete-los ao trabalho, cumprindo assim a sua quota-parte. Os Albuquerques haviam formado dois grupos que se encarregaram, cada um deles, de parte do edifício. Em calções carregaram, cada um deles, de parte do edifício. Em calções e camisa, vermelhos bonés de marinheiro, na cabeça, para se proteger do sol, oficiais e peonagem à mistura chafurdavam na lama e carregavam sem descanso madeira e pedra. Na ausência de minerais calcários fez-se cal de chocos e conchas. Em dez dias, a grande obra terminava. Um torreão quadrado, cujas paredes eram feitas de troncos de coqueiro pregados dois a dois e ligados por correntes. O telhado era de folhas de palma. Só o rei mantinha o direito de cobrir a sua residência com placas de cobre. Dois bastiões armados de bombarda dominavam a muralha, defendida a toda a volta por um grande fosso cheio de água. Uma cruz marcava a pequena capela. O rei de Cochim vinha frequentemente observar os progressos da fortaleza. Maravilhava-se com a diligência dos Portugueses, mas não deixavam de o escandalizar esses «homens-faz-tudo», como dizia, que participavam, todos, activamente nas obras, sem preocupações de hierarquia ou especialização. Estas duas noções constituem o fundamento da moral indiana, o seu princípio básico determina a realização individual da função para a qual a pessoa nasceu, sem jamais assumir a de outrem e respeitando a escala de valores em que está integrada. Se um militar fizesse o trabalho de um carpinteiro atrairia sobre ele a fúria tempestuosa da sua casta. A desinteligência dos Albuquerques não cedeu perante a obra comum. Francisco deu o nome de «Castelo Albuquerque» enquanto Afonso queria fazer ouvir o nome o «Castelo Manuel», nome que enfim, ficou. Chamado para fiel das querelas entre ambos, Frei Rodrigo ficou aterrorizado com tal violência. Como seria possivel que homens de honra, ligados pelo sangue, pudessem conduzir-se daquele modo numa terra onde a posição dos Portugueses era ainda tão precária? O rei foi convidado para a inauguração solene. Depois assistiu à procissão ao som das trombetas e à missa cantada, que teve prazer de ouvir. A cerimónia dava aos Portugueses a oportunidade de verem o espectáculo que se desenrolava a seus olhos. Chegado num palanquim, sob a escolta dos carregadores de guarda-sóis o rei viu a procissão de um pavilhão armado de tecidos pintados. Embora arruinado pela guerra, e a tal ponto que Francisco de Albuquerque se viu na obrigação de lhe avançar 10.000 cruzados, trazia uma esplendorosa tiara, constelada de pedras preciosas. Junto seguia o capelão, um brâmane, de quem os Portugueses iriam descobrir mais tarde a importante função politica. De momento, oferecia ao rei uma taça com pedacinhos de bêrele preparados por ele próprio.

A Casta Guerreira Dos Naires


Os guardas em volta do rei ainda chamavam mais a atenção. Pertenciam todos à casta dos Naires, esses guerreiros que os portugueses viriam a conhecer na posição de companheiros de combate ou como inimigos. Avançavam de tronco nu. Os cabelos apanhados no alto da cabeça, e armados com adaga e espada que nunca largavam. Instruídos desde a mais tenra idade em academias militares, tinham feito juramento de proteger as vacas e os Brâmanes. Sabiam manejar a lança, atirar com o arco e, por vezes usar a espingarda. A proverbial agilidade servia-lhes de couraça. Em tempo de guerra, combatiam a pé, de turbante ruço na cabeça e protegidos algumas vezes por uma cota de seda e um escudo redondo. Poucos se viam fora do Malabar, mas aí contavam-se aos milhares. Os serviços prestados durante séculos, a dedicação total ao rei tinham-lhes valido privilégios que a sua obscura origem não justificaria. Quando o país estava em perigo, alguns deixavam crescer os cabelos e a barba significando por este gesto que iriam combater até à morte. Ao observar-lhes o comportamento, os Portugueses iniciavam-se nos costumes do sistema das castas, sistema aliás particularmente rígido no Malabar, devido aos ascendentes que os brâmanes tinham adquirido sobre toda a sociedade hindu. As pessoas que exerciam tarefas impuras tocando em máculas e na morte, eram incluídos nas categorias mais baixas. Homens e mulheres andavam meio nus não tendo o direito de cobrir o peito. Não só deviam recolher-se em lugares, mas ainda evitar toda e qualquer ligação com membros de castas superiores e manter uma distância ritual, limite a partir do qual a sua presença e até o simples olhar eram fonte de poluição. Os Naires tinham o direito de matar toda a gente que infringisse as regras. Pelo facto de pertencerem a uma religião estrangeira, Cristãos e Muçulmanos estavam dispensados de observar a referida lei. Bastava que se afastassem quando os membros de elevadas castas tomavam as refeições e que abstivessem de lhes tocar. É imprescindível lembrar que os portugueses em geral, não observaram estas normas e costumes, nem os seus chefes se privaram de abraçar o próprio rei de Cochim. Em suma não parece que os Portugueses tenham ficado escandalizados com as tradições familiares dos Naires que vinham ao encontro da moral cristã. A sociedade era matrilinear, e por isso as mulheres tinham completa liberdade de escolher os seus amados, desde que não fossem de casta inferior, e até podiam trocar de eleito à sua vontade. O eleito indicava a sua presença e a natureza das suas ocupações, pendurando o escudo na porta da bem-amada. Ninguém sequer imaginava perturbar a intimidade daqueles casais, nem exprimir ciúmes incongruentes. Muito respeitadas as mulheres Naires eram as próprias a revelar a identidade do pai dos seus filhos, que elas educavam em família. Ai reinavam as mães e as tias. Os rapazes eram destinados ao ofício das armas, mas alguns dedicavam-se à agricultura, em grandes propriedades, nos confins dos esteiros e na floresta do interior. Esta liberdade de costumes não era o quinhão dos portugueses em busca de oportunidades. Ficavam simultaneamente prisioneiros das proibições brâmanes e dos constrangimentos da própria fé. Era pecado mortal frequentar mulheres não baptizadas e as poucas mulheres cristãs de Cochim não conviviam com estrangeiros. As autoridades portuguesas mostravam-se severas com todos os homens surpreendidos em ligação com mulheres pagãs. Afonso de Albuquerque era dos que não hesitavam em enviá-los para a forca.

Combates Nos Esteiros


O momento não era para futilidades, mas de sobrevivência. Tinham de se alimentar e defender ao mesmo tempo. Extenuados pela construção da fortaleza, os homens já não encontravam alimentos na Cochim devastada. Os agentes da feitoria conheciam os recursos do porto de Cananor, especializado havia muito tempo no abastecimento de navios. Nicolau Coelho partiu a carregar o ‘Santa Maria de Faial’ de arroz e trezentos peixes secos que Gonçalo Gil Barbosa conseguira arranjar-lhe. Entretanto a guerra tinha reacendido à volta de Cochim. Era preciso limpar o território da retaguarda de Calecut, que rondava ainda pelos canais do esteiro com o apoio e cumplicidade de alguns senhores rebeldes. Contra eles se desencadeou a fúria dos Capitães que não cessavam de organizar expedições punitivas contra todos aqueles que barrassem os caminhos de água utilizados pelos lanchões da pimenta. Esta preocupação orientou os projectos que se tornaram precisos nos começos de Outubro. Diogo Fernandes Correia já tomara contacto com Cherian Marakkar, chefe de uma associação, familiar de mercadores de especiarias que, depois de muitas reticências aceitara carregar as naus portuguesas. Para tanto era necessário esperar que os produtores das regiões do interior conseguissem trazer os seus barcos que poderiam ser desviados para Calecut. A primeira era colhida nas encostas baixas dos Gates, pelos proprietários de terras, cristãos de São Tomé ou naires, que a levava por água até aos esteiros, ai os Marakkar adquiriam a mercadoria em troca de arroz e têxteis. A 7 de Outubro, por ocasião de um conselho dos capitães e agentes da feitoria, Diogo Fernandes Correia pediu para ser escoltado por duas caravelas armadas, queria ir buscar pimenta com Cherian Marakkar. O tom de voz entre os dois Albuquerques subiu rápido. Afonso recusou de modo formal participar na operação e, assim, foi Duarte Pacheco que se juntou a Francisco para acompanhar o cortejo de navios e desviar a atenção do inimigo através de uma incursão sobre Repelim. Dez dias mais tarde, estavam os Portugueses decididos a terminar com aquele ninho de naires hostis, quando Afonso de Albuquerque resolveu de novo fazer de cavaleiro único. Repartidos em barcas e paraus (as pequenas galeras dos mares do sul que se podiam armar para a guerra), os dois grupos tinham-se embrenhado em plena noite, no labirinto dos rios, a fim de surpreender o inimigo antes de amanhecer. Favorecido pela obscuridade Afonso de Albuquerque conseguiu ganhar avanço relativamente ao primo e foi o primeiro a desembarcar na costa de Repelim e a realizar o ataque inicial. Não conseguiu conter os naires da guarnição que mataram vários dos seus homens e o empurraram até à praia, onde ficou imediatamente cercado. Os que se tinham mantido nos barcos começaram a disparar com a artilharia com intuito de lhe proteger a retirada, quando alertado pelo ruído imenso, Francisco foi em busca do primo. Não o tendo encontrado nas imediações, adivinhou a situação e correu a Repelim com grande forças de remos, seguido de todos os seus. Era tempo. Enquanto Afonso de Albuquerque reembarcava a muito custo, os reforços surgiam dos coqueiros, na bruma rósea da alvorada. Francisco estava em condições favoráveis para o libertar e cair sobre o inimigo, que pôs em debandada com grades tiros de flechas, enquanto Duarte Pacheco apontava as bocas-de-fogo a partir do rio. Mas os Portugueses não puderam continuar aquela avançada porque, cerca de trinta paraus de Calecut desembocavam dos braços do rio que alagavam as terras baixas, aos primeiros raios de sol. Duarte Pacheco, Pero de Ataíde e António do Campo apontaram a artilharia contra os assaltantes e abriram caminho às barcas portuguesas. O impetuoso trio, que não aceitava de modo nenhum uma vitória truncada, arrastou-os para não longe dali, para as terras do Caimal de Cambalão acusado de trair o rei de Cochim. As represálias foram impiedosas, os naires postos em debandada, as casas pilhadas e incendiadas. Sem talvez o saberem os portugueses ultrapassaram as leis da guerra, raptando algumas vacas, destinadas à sua mesa. Tiveram consciência do alcance daquele gesto, sacrilégio máximo, que na Índia, implicava pena de morte e cobria de opróbio a honra dos guerreiros? Voltaram sem vergonha à fortaleza para dormir, seguindo os caminhos de água ponteados de palhotas e paliçadas de troncos presos com cadeias onde secavam redes de pesca. Uma população silenciosa seguia-os, furtiva, ao longo das margens. Podemo-nos interrogar sobre a atitude de Afonso de Albuquerque, tão pouco conforme à personalidade que as suas cartas revelam. Onde as narrativas da época põem a claro um carácter intempestivo e obstinado e não sem alguma mesquinhez, é preciso entender o que fica na sombra. Os documentos da expedição de 1503 são mais favoráveis à personalidade de Francisco, embora este não tenha dado uma conotação negativa à imagem do primo, no relatório que elaborou sobre a estada no Malabar. Sabemos que Afonso se opôs à construção da fortaleza, a qual não estava, aliás incluída nas instruções do Rei D. Manuel. Não restam dúvidas de que, para além da sua reprovação e despeito, ficou irritado com as vistas curtas de Francisco e impaciente por conquistar, através das armas, uma autoridade que tanto desejava exercer. Não tinha ele previsto claramente, desde os primeiros dias a necessidade de inventar uma política adequada à Índia, em vez de reproduzir os esquemas da guerra africana, a que os fidalgos permaneciam agarrados?

Os Mercadores de Cochim – Muçulmanos e Judeus


Afonso de Albuquerque manteve-se afastado das operações que se seguiram à lastimável aventura de Repelim, preferindo observar tudo o que devia alimentar a sua experiência. O comércio das especiarias permitiu-lhe descobrir o universo dos mercadores de Índia. Os agentes da feitoria de Cochim tentaram primeiro negociar com mercadores cristãos, mais orientados para a economia do interior. Então eram os Muçulmanos que controlavam as trocas nos canais dos esteiros e reinavam sobre o comércio marítimo. A implantação do islão fora muito intensa no Malabar os seus portos de especiarias eram frequentados pelos viajantes do Médio Oriente havia mais de sete séculos. Os muçulmanos de Cochim descendiam, na grande maioria, de navegadores que, marginalizados pela sociedade hindu, se viram obrigados, para sobreviver, a ligar-se a mulheres de casta inferior, filhas de pescadores e marinheiros as únicas que aceitavam preparar-lhes a comida. Eram chamados Mappillas, para se distinguirem dos muçulmanos nascidos no estrangeiro. Em contínua evolução, a sociedade islâmica opunha-se á rigidez das instituições dos brâmanes. Aberta a todos grupos étnicos, acolhia os rejeitados de toda a espécie que aderiam ao islão. Os laços entre os estrangeiros e os ‘filhos da Índia’, como prática da cabotagem, multiplicavam uniões e pactos que formavam, à escala do oceano, uma rede de informações extremamente activa. Em Cochim, os Mappillas reinavam sobre o mundo dos negócios dominados por um grupo familiar poderoso, cujos membros eram chamados de Marakkar e tinham o privilégio de usar turbante de seda. Cherian Marakkar ia todos os anos ao Ceilão á procura de canela, conseguindo lucros que atingiam por vezes os 300%. Também embarcava elefantes especialmente adestrados para a guerra, revendia-os no Guzarate e na maioria dos portos da costa Oeste. Além disso, geria os interesses de guzarates em Cochim e tomava parte no comércio de Malaca. Alguns dos seus irmãos tinham-se especializado no tráfico do arroz, que iam carregar aos portos de Coromandel e trocar em seguida pela célebre pimenta dos Gates. Uns e outros tinham enriquecido tanto os reis de Cochim que estes não desdenhavam alojar-se na residência deles, quando se deslocavam ao porto. Tal prova de confiança resultava igualmente de um 'modus vivendi' instaurado de longa data. Os Muçulmanos deviam respeitar a ordem-social estabelecida pelas castas abster-se de comer carne bovina e deviam conduzir-se como súbditos, fiés pagando os impostos e participando na defesa do território. Por seu turno o rei comprometia-se a proteger-lhe os bens e os locais de culto. Os Muçulmanos administravam a sua própria justiça, segundo a lei do Corão. A sentença de morte era a única disposição que não podia ser aplicada sem o consentimento do rei. Um pacto idêntico legitimava a presença do gueto instalado sob os muros, do palácio real, como era costume nas outras cidades do Malabar. Os Judeus tinham chegado, em vagas sucessivas, depois do saque de Jerusalém pelo Imperador Romano Tito em 70 D.C. até à recentíssima tomada de Granada pelos reis de Castela e Aragão no ano de 1492. Estavam divididos em dois grupos, os judeus brancos, de pura cepa, e os judeus negros que descendiam de escravos convertidos ao judaísmo. Intrigados outrora em associações corporativas poderosas, já só praticavam o comércio de ferro e dos metais utilitários. As suas companhias estavam na decadência, mas a sinagoga mantinha as placas de cobre a enumerar os antigos privilégios, como ainda se observa. Os Portugueses tiveram de se entender com os mercadores Mappillas que ao princípio, recusaram negociar com os modestos agentes da feitoria, a quem não tinham sido poupados insultos. As vitórias dos Albuquerques levaram os Marakkar a prometer-lhes 4000 bahares (o valor do bahar variava consoante as regiões. Em Cochim e Coulão valia 166,27kg), de pimenta de que só entregaram só uma parte. Em fins de Outubro quando se discutia asperamente sobre a divisão da carga entre as duas frotas. Diogo Fernandes Correia resolveu a favor de Francisco, alegando que a carga em excesso devia ser atribuída ao capitão-mor que chegou em primeiro lugar a Cochim. Reduzido aos seus próprios recursos, Afonso teria de se prover algures. Os seus homens ficaram consternados. Giovani di Napoli lamentavam-se «por terem esgotados os corpos e terem vindo de tão longe para não levarem especiarias…». Em vez de regressar logo a Lisboa, dissidiram ir procurar fortuna mais longe. Foi então que as autoridades de Calecut enviaram um mensageiro de paz oferecendo-se para reparar os prejuízos suportados em 1500 bahares por ocasião do ataque à feitoria portuguesa. O mensageiro propunha um encontro com Cranganor para levantarem alguns fardos de pimenta. Francisco aceitou, acompanhou-o mesmo até à embocadura do Periyar. Depois deixou-o ali, ficando separadas as duas frotas por uma grande tempestade. Afonso de Albuquerque decidira conformar-se à segunda parte das instruções de Dom Manuel e cumprir a missão que viria ser sua. Fez vela para Coulão onde estava certo de encontrar ao mesmo tempo cristãos e especiarias.

Missão Em Coulão


Giovanni de Empoli fora enviado a bordo do ‘Santo Espirito’ em reconhecimento aos príncipes de Coulão como resposta à abertura que estes deram aos Portugueses logo em 1500. As paragens da cidade não lhes eram desconhecidas. Dois navios de Vasco da Gama tinham sido carregados no ano anterior pelo mercador cristão Matias, num porto vizinho. Agora era preciso alcançar a grande cidade a mesma que fora sede episcopado latino de Jourdain de Séverac. Dizia-se que o interior transbordava de especiarias, escapando aos circuitos de distribuição árabes, porque se integravam nas redes da Indochina Ocidental. Precedendo a capitânia o ‘Santo Espirito’ ancorava ao largo de Coulão num fim de tarde nos começos de Novembro. À meia-noite, desencadeou-se um tufão arrancando quatro âncoras à nau, mas esta resistiu, mantendo-se apenas com uma, durante cinco dias. Logo que a tempestade amainou, Giovanni de Empoli e a sua escolta meteram-se numa chalupa para irem a terra. Esperava-os na praia uma multidão que estimou em cerca de quatrocentas pessoas. Giovanni de Empoli declarou-se cristão logo á chegado e teve a feliz supressa de se ver rodeado de correligionários que se diziam «Nazarenos». Homens e mulheres conduziram-no de imediato à sua igreja, que pareceu bem modesta ao florentino. Dedicada à Virgem Maria, abrigava imagens de santos e algumas cruzes de ouro e prata. Logo então, que a comunidade cristã havia cerca de mil fogos e três mil almas, mas em vão procurou os sinais de prosperidade evocados pelos viajantes de outrora. Acabara-se o tempo em que mercadores cristãos dirigiam uma das associações mais poderosas da Índia meridional. A sua decadência era resultado de estratégia dos negociantes muçulmanos que haviam conseguido atrair Calecut uma parte da respectiva clientela. Os seus privilégios esboroavam-se pouco a pouco. Já não tinham direito a exercer justiça e acabavam de perder a guarda do selo e do peso da cidade. O prestígio acumulado ia-se desmoronando. Giovanni de Empoli observou que já só eram considerados «como os judeus entre nós». Foi, no entanto, por intermédio deles, que o jovem florentino pôde ser admitido a uma audiência real, pedindo para carregar três naus, o que lhe foi logo concedido. O ‘Santiago’ e o ‘São Cristovão’ chegavam entretanto e grande foi júbilo a bordo. Quando Afonso de Albuquerque solicitou um encontro com o rei, responderam-lhe que ele estava em guerra nas fronteiras de Vijayanagar e que um outro rei teria de o receber. Esta linguagem revelava estruturas dinásticas próprias a certos reinos da India do Sul, onde o poder era partilhado entre os príncipes de uma única família e usando todos os títulos de Rajá. As audiências reais concedidas aos estrangeiros tinham lugar fora do palácio em pavilhões construídos à beira-mar. Por sua vez, os capitães portugueses tinham ordem para não irem a terra, com medo de capturarem e tomarem logo reféns a bordo quando lhes acontecia terem de desembarcar. Foi pedido aos oficiais e às tripulações que preparassem o encontro com fausto e tirassem das malas os fatos de aparato. Poliu-se a artilharia, os escudos foram pendurados e as bandeiras içadas em seis barcos, que se desligaram dos outros em boa ordem, param para se disporem ao longo da praia. Albuquerque violentara os seus hábitos espartanos para representar com honra e brilho o rei de Portugal. Sentado na popa de uma barca coberta por um dossel de veludo, vestiria uma longa túnica de brocado à moda de Veneza realçada por jóias e correntes de ouro. Nos outros barcos, cada um ostentava os calções com meias e gibões que tinham sobrevivido às tripulações da viagem. Uma hora passou antes que surgisse o cortejo real acompanhado por multidões sem fim. Era a primeira vez que os Portugueses comtemplavam semelhante espectáculo junto do qual a pompa do rei de Cochim teria parecido miserável. Precedendo o rajá e agrupada segundo as castas a alta sociedade hindu desfilava em ordem de parada, os Naires por grupos, uns levando a adarga, outros a rodela, depois os archeiros e os ginastas reluzentes de óleo de palmas. Seguiam-se os ourives, os artesãos, os cambistas, que também faziam comércio de pedras e metais preciosos. Com pequenos turbantes sobre a longa cabeleira estes últimos pertenciam à casta Chatins e caminhavam precedidos de trombetas de ouro. Eram tidos por grandes encantadores que «falavam todos os dias com o diabo». Os Brâmanes fechavam o cortejo. Ainda que fossem sacerdotes pareciam aos olhos dos Portugueses condes e marqueses, tanta a deferência que lhes prestava. Quatro deles levavam o palanquim real, segurando em pegas de marfim. O principe vinha sentado, vestido fato de saia e casaco (é exactamente esta a expressão de Giovanni de Empoli), envolto em seda e musselina, o tronco repleto de pérolas e diamantes, a cabeça coberta por uma tiara de veludo carmesim, bordada de rios de pedraria. Aquela brilhante aparição enquadrava-se na mancha sombria dos elefantes seguida esta por um esquadrão de cavalaria de cavalos persas, numa algazarra de tambores, conchas e cíbalos que as salvas de honra da artilharia portuguesa mal conseguiam abafar. No preciso momento em que Albuquerque se preparava, parar desembarcar, levado em ombros pelos marinheiros o rajá desceu do palanquim e veio a pé até ao mar, onde entrou num deslumbramento de água, sol e gemas. O Capitão-Mor beijou a mão do rajá e iniciaram as conversações. É lícito pensar que Gonçalo Madeira, de Tânger, serviu de intérprete, embora apenas conhecesse o árabe. Naqueles primeiros anos, era preciso recorrer aos serviços de um segundo intérprete que traduzia do árabe pra o tâmil. Imaginam-se os males entendidos que podiam surgir desta linguagem cruzada. O principe de Coulão mostrou-se bem-disposto em relação aos Portugueses e concedeu-lhes o terreno para uma casa junta com um entreposto. Comprometia-se a mandar ali entregar todos os anos uma quantidade de especiarias estabelecida entre eles, e aos preços fixados em Cochim por Vasco da Gama, no ano anterior. Foi mais reticente quando lhe pediram para tratar o feitor e seus homens segundo a Lei dos Cristãos Malabares, quando precisamente estes acabavam de ser despojados de exercer o direito de justiça. Albuquerque adiou uma discussão que lhe era tão cara para não comprometer as vantagens conquistadas. O principe separou-se logo, deixando a beira-mar em festa e os Naires fazendo malabarismo e lutas acrobáticas. Os festejos e regozijo terminaram na igreja onde três sacerdotes da frota rezaram missa segundo o rito romano, diante de grande multidão de cristãos e hindus que os portugueses se compraziam a olhar como catecúmenos. Os termos do acordo tinham sido gravados em placas de prata e não havia mais nada para retardar a construção da feitoria. Ao cair da noite, atirou-se arroz sobre as fundições, segundo costume Malabar. Dias depois, Albuquerque instalava o feitor António de Sá, que já tinha passado vários meses em Cochim e cerca de vinte homens, entre os quais Frei Rodrigo e Gonçalo Madeira, o intérprete. Nada parecia contrariar o bom encaminhamento dos negócios portugueses até porque Coulão não era frequentada pelos Muçulmanos. Dizia-se no entanto que um irmão de Cherian Marakkar chegara recentemente e manobrava na sombra. Albuquerque ficou mais dois meses em Coulão. Não tinha pressa de voltar a Cochim e deixava ao primo a tarefa de realizar negociações com a cidade de Calecut. Pressentia que os resultados viriam a ser negativos. Por seu lado não parava de perseguir as velas «mouras» que passavam ao largo e do incendiar sem fazer mercê àqueles que fugiam a nado. Ia, ao mesmo tempo firmando alianças, com a poderosa comunidade cristã que sabia existir forte, para além dos esteiros. Esforçava-se por melhorar o estatuto local dessas gentes, insistindo junto do rajá, até ao enfadado, para que o direito de justiça fosse restituído. Era junto dos Cristãos que aprendia as leis da sociedade indiana, onde todos passam ao lado uns dos outros sem, no entanto, jamais se misturarem. Albuquerque ia aprofundando os seus precários conhecimentos geopolíticos, até então limitados à franja costeira. E assim, descobria que o território de Coulão era tão-só uma parte do reino do Vênâd, que se estendia ao extremo sul da península e se abria a levante sobre o mar de Bengala. Os rajás que governavam as províncias do reino provinham de uma família venerável dominada pela rainha-mãe viúva. Os recursos pareciam prometedores. A pimenta crescia em, barda, na montanha, agarrado como a vinha aos ramos baixos das árvores. As pesqueiras de pérolas animavam toda a costa em frente da ilha vizinha de Ceilão, donde chegavam elefantes, canela e pedras preciosas. Os portos abriam-se aos juncos da indochina ocidental, que traziam, benjoim, laca, almíscar, prata e rubis. É natural que os europeus da época se tenham mostrado mais inclinados a descrever as riquezas da Ásia que a deterem-se sobre imagens de pobreza, de facto estas não eram senão uma réplica do que viam, dia a dia, no Ocidente. As suas descrições não permitem negar a existência da miséria na India, pois com efeito vamos apercebê-la claramente alguns anos mais tarde, tanto nos arquivos das instituições portuguesas de ajuda social como nas referências às esmolas distribuídas pelos príncipes muçulmanos. Tal como na Europa, a pobreza endémica grassava devido às guerras e às desordens da natureza. Foi em Coulão que Afonso de Albuquerque se apercebeu da existência muito próxima do Império Vijayanagar, cujo poder não era devido apenas à força das armas mas também à posse dos arrozais imensos que formavam quadriculas nos deltas dos rios. Os povos do Malabar (que os chineses julgavam demasiado indolentes para cultivar o arroz), viviam em dependência económica, então reavivada pela ameaça de guerra que o Imperador Narasimbra deixava em suspenso, quanto à soberania dos seus reis. Mesmo só pronunciar o nome do imperador fazia evocar a carga dos seus elefantes, com as presas eriçadas de lanças e dos cavalos, arremetendo às centenas. Ousando enfrentar as forças de Vijayanagar, os príncipes do Vênâd eram excepção. E o facto é que podiam manter as suas posições, porque se tratava de uma frente secundária para o império, o grosso do exército estava voltado para os sultanatos do Norte. Longe de abraçar as querelas do Vênâd, Albuquerque via um aliado naquele soberano pagão, que votava ódio mortal ao Islão. Assim, preparava-se para enviar em segredo o franciscano Luis do Salvador à corte de Vijayanagar, com a missão de mostrar ao rei a beleza da religião cristã. Ao mesmo tempo que sentia prometedoras tais perspectivas, Albuquerque mantinha-se atento a qualquer trama que impedisse os Portugueses de continuarem os seus projectos. Os espiões de Calecut estavam por todo lado e os respectivos agentes compravam grandes quantidades de pimenta no interior para rarefazer as chegadas de mercadoria ao mercado de Coulão. Não conseguiram limitar o carregamento das naus portuguesas cujos porões trasbordavam de especiarias de todo género. Quando Albuquerque se quis despedir da família real foi-lhe respondido que o monarca reinante ainda não tinha voltado da guerra e nada podia decidir sem ele. Acabou por conseguir que a justiça civil e criminal fosse devolvida aos Cristãos e assim, os Portugueses poderiam ter um estatuto conforme às instituições locais. Sentia que os príncipes se mantinham agora a distância, perturbados sem dúvida, pelo incentivo à desconfiança, que lhes dirigia o rei de Calecut. Apesar das súplicas dos Nazarenos, Albuquerque absteve-se de reclamar, naquele momento, a devolução dos outros privilégios. Em 12 de Janeiro de 1504, a frota aparelhou para Cochim. A missão do capitão-mor estava concluída as naus carregadas, a feitoria estava concluída no meio de uma comunidade cristã revigorada. No entanto Albuquerque, não deixava Coulão, sem preocupações. A instabilidade das alianças e o esquecimento das promessas não faziam parte do destino dos navegadores no decorrer do tempo? Menos de dois anos mais tarde, António de Sá e os seus companheiros iriam perecer no incêndio da capela onde tinham procurado refúgio contra os agressores.

Jogo Duplo Dos Príncipes De Calecut


Francisco de Albuquerque saíra de Cochim para Calecut quando o primo lançou âncora à entrada do esteiro. Afonso foi recebido por Diogo Fernandes Correia, recentemente nomeado comandante da fortaleza, e que lhe fez presente do edifício chamado ‘Castelo Manuel’. O capitão-mor apressou-se a demitir os homens cuja lealdade lhe parecia suspeita. Não tencionava demorar em Cochim, mas ficou o tempo necessário para ouvir a crónica dos dois meses passados, de tal modo os assuntos de Calecut lhe pareciam importantes. E eram-no com efeito, e iriam comprometer o futuro por muito tempo. Quando chegaram à Índia, os Albuquerques não tinham dado seguimento às propostas transmitidas por Calecut, a Gonçalo Gil Barbosa, feitor de Cananor. Aquela personagem conquistara de imediato a confiança dos Malabares. Ao longo de dois anos passados em Cochim, iniciara-se nos costumes e na língua da região, que o seu jovem sobrinho Duarte falava já correctamente. Tais aptidões valeram aos Barbosas tornarem-se os intermediários das negociações mais subtis. O interlocutor era quase sempre o mappila Koyya Pakki, favorável aos Portugueses e chefe dos muçulmanos nativos de Calecut que ansiavam por arrebatar o mercado das especiarias aos muçulmanos do mundo árabe. As autoridades de Calecut preferiam-no a qualquer outro. As autoridades de Calecut preferiam-no a qualquer outro intermediário, pois era vital ter a confiança dos Portugueses para conduzir a bom termo as negociações que se propunham encetar. Se os Albuquerques não viam utilidade em responder àquelas ofertas era porque à desconfiança se juntava a certeza de que os mercadores de Cochim proveriam às necessidades deles. Dissipada esta ilusão Francisco resolveu dar ouvidos às sereis de Calecut. Diogo Fernandes Correia ousara mesmo dirigir-se ao local no sentido de preparar os termos de um acordo. Ao mesmo tempo, Calecut dava execução a uma estratégia que englobava a rede dos esteiros de Cranganor a Coulão, onde Albuquerque lhe sentira os efeitos, não somente as especiarias eram compradas na origem, mas nos meios políticos e mercantis desenvolvia-se ainda uma campanha de alerta contra os recém-chegados. A finalidade destas manobras era criar obstáculos ao carregamento das naus para dissuadir os portugueses de voltarem à Índia. Uma tal esperança, baseava-se em informações vindas da Europa. Dois emissários originários de Cananor acabavam de chegar a Lisboa, onde através de negociantes venezianos, haviam tomado conhecimento das restrições feitas pelo Conselho real ao projecto indiano de Dom Manuel. O rei de Calecut recebera ecos de tais divergências confirmadas mais tarde por dois lapidários de Milão, que subiram a bordo dos navios portugueses para a compra de pedras preciosas. Tendo passado para o inimigo, quando da invasão de Cochim, Piero António e Giovanni Maria revelaram-se fundidores de canhões. Seriam agentes de Veneza? A suspeita que tanto pesou, mais tarde, sobre eles não parece ter tido fundamento a Sereníssima não estava ainda alarmado com os feitos dos portugueses e bastava-lhe então espalhar que não teriam Futuro. Os Portugueses não podiam desvendar as intenções das autoridades de Calecut, oferecer por um lado e tirar pelo outro, tal era a posição da grande cidade. Tratar-se-ia de atrair a pimenta ao mercado de Calecut para obrigar os Albuquerques a abandonarem Cochim e Coulão? Não haveria a intenção de os exasperar através da alternância (recusa) esperança, ou retê-los na India com o pretexto das negociações, para deixar a monção fechar os portos e apanhá-los na armadilha? Também é possivel que um diferendo haja oposto o rei de Calecut aos mercadores do Mar Vermelho e que ele tenha pensado favorecer os Portugueses para baixar a arrogância dos tradicionais comerciantes. O rei usava o título de «Samorim», quer dizer «Senhor do Oceano», mas a partilha do poder no seio da família limitava-lhe as iniciativas. Os estrangeiros não podiam suspeitar da autoridade, ainda bem firme, que a rainha-mãe-viúva continuava a exercer, mantendo-se escondida nos jardins do palácio. De conivência com os Brâmanes e os adivinhos, podia coagir o Samorim a retira-se do mundo e levar um dos seus irmãos ao trono. Veremos mais tarde como Albuquerque iria saber utilizar aquelas intrigas de corte, onde sempre aparecia um pretendente a conspirar às escondidas para derrubar o irmão. De momento era o principe Nambiadari que pelo menos vagamente, se mostrava a favor de uma aliança com os Portugueses. Seja como for podemos afirmar que, se não estavam de acordo quanto aos meios a por em prática, os dirigentes do, pais coincidiam no projecto de salvaguardar os dirigentes do pais, e de salvaguardar a paz nas zonas costeiras. A segurança das águas de Calecut fizera a sua fortuna e garanti-la era ponto de honra dos Samorins. Assim, estavam prontos a tudo para evitar actos de violência. E deste modo se deviam preparar, no maior sigilo de um tratado de paz. Com base em Cranganor Rodrigo Reinel deslocava-se durante a noite, para submeter as condições do tratado de uma parte e à outra. O assunto foi orientado de forma bem rápida e o acordo assinado antes do Natal. Francisco Albuquerque apresentou-se ai como único chefe da armada, apesar dos vivos protestos de Diogo Fernandes Correia, insistindo em que Afonso de Albuquerque devia assinar também. O feitor abandonava a sua primeira inclinação, que o levara a tomar partido de Francisco, de quem temia agora a credulidade obstinada. Enviara uma longa missiva a Afonso, logo em 25 de Dezembro: «o que muito rreleva, he tornar a tornar a Vossa Mercee […] [que] despois da sua yda (Vicente Sodré) a costa ficou despagada de nossas naos d’Armada, el Rei de Calicut veyo aqui e fez o que já sabeis.». Ao anunciar o principe inspirador de toda a estratégia naval portuguesa afirmava que a sorte de dominar a Índia viria a pertencer a quem dominasse o mar. Punha Afonso de Albuquerque de sobreaviso contra a paz de Calecut: «Vossa Mercee há-de saber que […] parecendo aos de Calecut que aqui nom aviam de ficar nanaos, pelo quall as del Rei nosso senhor as nom podem aver». E pedia a Afonso que deixasse o ‘São Cristóvão’ em Cochim e persuadisse o primo a afectar a nau de Duarte Pacheco e as duas pequenas caravelas à guarda dos esteiros com a finalidade de impedir que a pimenta saísse de lá. Pessoalmente, Diogo Fernandes Correia, tornava-se mais premente, comentando os termos de um tratado que sabia estar já insidiosamente violada e desconfiando das concessões feitas pelo Samorim, algumas das quais pareciam demasiado importantes para serem reais. Era bem plausível que as autoridades de Calecut cumprissem a proposta de entregar 1500 bahares de pimenta com indemnização da pilhagem à feitoria portuguesa três anos antes. De igual modo, a autorização de novo concedida para se instalarem em Calecut só conferia aos Portugueses o estatuto comum dos mercadores estrangeiros. Mas a compra de especiarias aos preços afixados por Vasco da Gama constituía um precedente que podia ser posto em causa. Mais extraordinárias ainda eram a promessa de renunciar ao grande mercado do Mar Vermelho e a liberdade concedida aos Portugueses de afundarem os navios prevenientes das suas costas. Como era possivel acreditar que as autoridades da cidade estavam prontas a sacrificar um comércio quatro vezes secular, a expulsar dos seus portos comunidades islâmicas que tinham obtido grande êxito substituindo por um reduzido punhado de desconhecidos, cuja possibilidade de voltar nem sequer estava garantida? Não é de excluir que factores irracionais tenham influenciado um tal volte-face. Os dizeres dos astrólogos e adivinhos não eram contestados na corte. Pois não invocavam eles uma profecia antiga segundo a qual o Malabar seria um dia submetido a homens de pele clara. Diogo Fernandes Correia tinha conhecimento de que o Samorim já lamentava a promessa de entregar os dois lapidários milaneses que tinha metido a ferros, no momento da assinatura do tratado. Mal foram soltos, Giovani Maria e Piero António souberam fazer os seus talentos e convencer os príncipes a não se privarem deles sob pretexto algum. Albuquerque respondeu à angústia do feitor completando o equipamento da fortaleza. A guarnição não chegava a uma centena de homens, tomados do contingente de cada frota. Tinham sido desembarcadas dezassete peças de fogo, alguns tonéis de pólvora, espingardas, lanças e piques, arcos e flechas. Afonso de Albuquerque prometeu entender-se com o primo para deixarem uma defesa naval no Malabar mas tomou para si o ‘São Cristóvão’ e a preciosa carga do navio. Deixava Cochim ainda mais preocupado do que quando saíra de Coulão. Não ignorava que os Naires de Calecut recomeçavam a infiltrar-se na margem sul do Periyar. Deprimidos pelas doenças que dizimavam as suas fileiras os homens não escondiam forte pessimismo. Receavam os longos meses de isolamento que se abriam diante deles. Não iriam ficar prisioneiros, entre um oceano em breve dos esteiros? Atrás das florestas das montanhas estendia-se a Índia imensa com os seus animais selvagens e deuses. Da popa do ‘Santiago’ Albuquerque contemplava a pequena fortaleza de cruz erguida para o céu e a enxárcia de uma caravela misturada com palmas de coqueiros. A imagem tranquilizadora, a tal ponto o casco estava carunchoso e as velas esfarrapadas. Entretanto era tempo de organizar o regresso e voltar a Cananor para abastecer os navios com mantimentos. Afonso de Albuquerque teve uma avaria diante de Calecut, onde Francisco lançara âncora, agarrando-se à última esperança de salvar um acordo cujos protocolos soçobravam, uns após outros, e desesperando já de encher os porões. Cherian Marakkar entregara apenas 1500 bahares dos 4000 que tinha prometido, a pequena feitoria aberta em Cranganor só funcionara algumas semanas, o tempo de carregar 200 bahares, dos 1500 devidos por Calecut. O feitor Rodrigo Reinel encontrava-se agora prisioneiro no entreposto. Francisco tinha renunciado a obter a sua libertação, tal era a impenetrável indolência que os dirigentes de Calecut davam como resposta aos veementes protestos do capitão português. Afonso conseguiu dissuadi-lo a envolver-se numa situação perigosa. A carta que esperava os dois primos em Cananor viria a dar razão a Afonso, Rodrigo Reinel anunciava que o Samorim já só esperava a partida das velas portuguesas par arremeter de novo sobre Cochim. Os Albuquerques despacharam para lá Duarte Pacheco com a sua nau, acompanhada pela caravela de Pero Rafael. Janeiro chegara ao fim. Era urgente atravessar o Oceano antes de se levantarem ventos contrários. Provisões e material naval foram carregados à pressa, água e lenha para o aquecimento, arroz e peixe seco, azeite para as candeias, breu, mastros e cordames. Enquanto Francisco se demorava no Malabar, Afonso ordenou que se aparelhasse para Lisboa e largou ao mar em 27 de Janeiro de 1504.

Regresso A Lisboa


A alegria de voltarem sãos e salvos em navios transbordando de especiarias em breve seria moderada pelos duros perigos do Oceano. Ir à Índia era menos arriscado do que regressar, tanto mais que Albuquerque decidira obliquar para sul, pelo arquipélago das Laquedivas. Fora contratado um piloto muçulmano para fazer a rota, mas não conseguiu evitar as correntes que lançaram o ‘Santo Espirito’ para os atóis donde saiu a grande custo. Uma condução mais prudente evitou aos três navios os baixios de Moçambique onde tinham ficado tantas embarcações portuguesas. A mastreação delas emergia ainda na maré baixa! Um tal espectáculo de desolação não era de natureza a reconfortar os marinheiros que se dirigiam agora para o cabo da Boa Esperança, dobrado no primeiro dia de Maio. A armada conseguiu escapar aos perigos do Cabo, mas logo teve de suportar outros. Ficou prisioneira das calmarias da Guiné, onde permaneceu durante dois meses. A miséria, a fome, o escorbuto e as febres, devastaram as tripulações. Só no ‘Santo Espirito’ foram atiradas ao mar setenta e seis cadáveres em cinco dias de tal modo que já se contavam apenas nove homens a bordo. O sol e o sal tinham queimado as velas, e os cascos já só se mantinham a flutuar, porque a carga fora aliviada na cidade de Teredo. Giovani de Empoli contava-se entre os sobreviventes que «não tinham outra salvação senão esperar a ajuda de Deus, e bem preciso era que ela chegasse depressa …». Vinham-se aproximando velas que não eram miragens, uma nau portuguesa dirigia-se para a Guiné. Desviou a sua rota para guiar os navios sinistrados até á ilha de Santiago de Cabo Verde onde aqueles homens esgotados encontraram algum reconforto e a ajuda de escravos negros que foram embarcados para a manobra. Renunciando à última escala dos Açores, Albuquerque aproou a Lisboa. E já à vista dos rochedos de Sintra, uma última provação o aguardava, o mar enfureceu-se e atirou as naus para um lado e para o outro do estuário do Tejo, com um vento tão frio que se tornou fatal para os escravos africanos. A 16 de Setembro a armada da Índia içava as suas bandeiras e subia o rio em grande alegria. Glória e miséria a bordo, riqueza nos porões, tal era o balanço do regresso. O inventário do carregamento perdeu-se, mas informações de origem veneziana referem cerca de 515 toneladas de pimenta, canela, gengibre, cravo-da-índia e noz-moscada, cubebas, laca, cânfora, e outras drogas avaliando-se o conjunto em um pouco mais de 600 toneladas para as três naus. As contas da expedição seguinte, felizmente chegaram até hoje. Precisam que cada um dos navegantes recebeu a sua quota-parte dos proveitos. Para além do soldo a que tinham direito e de uma gratificação em mantimentos cada um beneficiava de uma «quintalada» isto é, de uma licença de importação que permitia fazer entrar em Portugal certa quantidade de pimenta (e, mais raramente, de outras especiarias), posteriormente revendida em proveito próprio. O sistema fora elaborado para compensar o monopólio real da pimenta, criando uma associação entre o rei e os súbditos. Na volta, os funcionários reais entregavam a cada um o que lhe era devido, depois de cobradas as taxas diversas em benefício da Coroa, de 30% a 50%. Tinha-se encarregado um procurador de gerir os bens dos defuntos e de os remeter às famílias. Os marinheiros mais humildes por vezes até escravos embarcados, beneficiavam de uma «quintalada», mas na grande maioria eram demasiado pobres para tirar proveito dos favores que o rei julgava ter-lhes concedido e revendiam os seus direitos aos companheiros. Semanas e meses passaram. Dos sete navios armados para a Índia na Primavera de 1503, apenas três haviam regressado. O navio de Catarina Dias afundou-se na passagem do Cabo, a nau de Duarte Pacheco defendia Cochim. Nicolau Coelho e Francisco de Albuquerque perderam-se no mar. O destino decidira. Afonso era enfim o primeiro e o único.


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