FONTE COEVA - CARTA DO
CRUZADO SOBRE A CONQUISTA DE LISBOA
Carta do Cruzado R. com
base nas traduções referenciadas na lista de fontes. Com a pregação da Segunda Cruzada
por São Bernardo de Claraval, em 1146 na basílica de Vézelay, com intenção de
enviar um grande exército para defesa dos territórios Francos na Palestina
atacados pelos Turcos Seljúcidas, uma parte das forças de Cruzados, que do
Nordeste da Europa se dirigiam por mar para o Médio Oriente, foram aliciados a
ajudarem o mais recente Rei da Cristandade, D. Afonso Henriques, a combater os
infiéis. Este é o relatório que o Cruzado R[aul] mandou a Osb[erto] de
Baldr[eseia] (Bawssey), que é a interpretação mais recente, ou que Osb[erto] de
Baldr[eseia] mandou a R.
Como escreveu Alfredo
Pimenta, «o autor, fosse Osberno ou fosse
R. parece ter sido padre, era inglês ou normando, e entrou com certeza na
conquista de Lisboa. E isso é o que importa acima de tudo.»
(O problema é decidir
qual foi a regra seguida pelo escritor no endereçamento da carta. De acordo com
as regras da epistolografia clássica escrevia-se o remetente em primeiro lugar,
mas com o cristianismo a regra inverteu-se, passando a escrever-se primeiro o
destinatário e só depois o remetente, para provar submissão. A carta, escrita
em latim, começa «Osb. De, Baldr. R.
salutem», e pode ser traduzida: «A
Osb[erto] de Bawdsey, R[aul]. As minhas saudações!», como faz a tradução de
2001, ou «A Osb[erto] de Baldr[esseia] R.
Saúde», como faz a de 1936.)
A Conquista de Lisboa
aos Mouros
[Pensando no seu pai e
no seu sogro, (A Dinastia Ducal Capetíngia da Borgonha foi iniciada), o Rei de
Portugal marchou, o resultado deste acordo político-financeiro-militar verdadeiro
«contrato de prestação de serviços
bélicos», com contrapartida remuneratória adequada (foi a constituição de
um exército com tamanho e eficácia suficiente para conquistar Lisboa)].
A Osberto de Bawdsey,
R.
As minhas saudações!
Assim como temos por certo que será vosso grande
desejo ir sabendo o que se passa connosco, sem sombra de dúvida podeis estar
seguro de dar-se o mesmo entre nós a vosso respeito. Por isso vos
manifestaremos por escrito as venturas ou adversidades desta nossa viagem e bem
assim os feitos, os ditos, ou tudo o que, durante ela, virmos ou ouvirmos e for
digno de relato. [...]
Expedição a Almada
Represálias
Sucedeu (...), que certo dia alguns dos nossos
passaram o Tejo para irem pescar do lado de Almada, (Localidade na margem
esquerda do Tejo, na «outra banda», em frente de Lisboa). Efectivamente, o
areal daquela praia era mais favorável para os pescadores. Caíram sobre eles os
mouros daquela zona, mataram bastantes e levaram com eles, alguns cativos,
cinco dos quais eram bretões. Os nossos ficaram indignados com isso e,
discutido o assunto entre todos, foi decidido que duzentos cavaleiros com
quinhentos peões seriam enviados a Almada para a saquearem. À hora de fazerem a
travessia, os colonienses (Membros do contingente alemão que se concentrou em
Colónia e de lá saiu em Abril de 1147), e os flamengos, por má vontade ou por
receio, ou por outro motivo que não conheço, retiraram os seus do nosso grupo
para não atravessarem. Por essa razão, os normandos, os ingleses e os que se
mantinham connosco e estavam do nosso lado, malogrados na constituição de grupo
que abrangesse a todos, entregaram a expedição prevista a Saério de Archelle
(Saério de Archelles era um dos quatro condestáveis que comandavam o
contingente inglês e normando, sendo encarregue de uma parte dos navios da
frota) com uns trinta cavaleiros e uma centena de peões, para mais. Depois de
terem matado em combate mais de quinhentos mouros, trazendo cerca de duzentos
cativos e mais de oitenta cabeças, o que não deixou de ser motivo de grande
alegria para os nossos e de grande abatimento dos inimigos, regressaram eles
vitoriosos no mesmo dia, tendo perdido um apenas dos nossos.
Quando os mouros, ao olharem das muralhas, avistam as
cabeças espetadas nas lanças, saem ao encontro dos nossos a pedir que lhes
entreguem as cabeças cortadas. Tendo-as recebido, em pranto e clamor
prolongado, levam-nas para dentro das muralhas. Ouviu-se por toda a noite uma
voz de dor e uma lamúria magoada de pranto por quase todas as partes da cidade.
O facto é que por tal acto de ousadia tão preclaro, ficámos a ser de extremo
terror para os inimigos pelo tempo fora, enquanto, para os colonienses, para os
flamengos e para os portugueses, isso era factor de honra. Livre ficava a
partir de então o caminho para atravessar até Almada. Entretanto Roberto
Inicia-se a construção
de uma torre móvel
e a escavação de uma mina
(16 de Outubro)
É então que, por sua vez, os nossos se empenham mais
no trabalho e se lançam a escavar um fosso subterrâneo entre a Torre e a Porta
de Ferro, (A Porta de Ferro ficava no actual Largo de Santo António da S. é,
segundo José da Felicidade Alves, Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147, nota
45), com o fim de deitarem abaixo a muralha, (O fosso ficava «na extensão da
Rua da Padaria, entre o Largo de Santo António da Sé e a esquina junto ao arco
da rua das Canastras», segundo José da Felicidade Alves, ob.cit, pág.). Porque
estava demasiado acessível aos inimigos, ao ser descoberta depois de iniciado o
cerco à cidade, foi extremamente danosa para os nossos, tendo-se gasto muitos
dias a defendê-la sem êxito. Além disso, são levantadas pelos nossos duas
balistas: uma, colocada junto à margem do rio era accionada pelos marinheiros,
outra situada frente à Porta de Ferro estava às ordens dos cavaleiros e dos
seus acompanhantes. Estavam todos eles organizados em grupos de cem e, mal se
ouvia o sinal para saírem os primeiros cem, outros cem entravam; de forma que
no espaço de dez horas tinham sido disparadas cinco mil pedras. Acção desta
natureza extenuava extremamente os inimigos. É então a vez de os normandos, os
ingleses e os que com eles se encontravam começarem a fazer uma torre móvel de
83 pés de altura (Segundo outra fonte, A Carta do Cruzado Arnulfo a Milão,
publicada também por José Augusto de Oliveira, na edição de 1936, a torre terá
sido projectada por um engenheiro de Pisa e construída com o apoio do Rei de
Portugal, tendo 25 metros de altura - 83 pés). Os colonienses e os flamengos
recomeçam a escavar novo fosso subterrâneo frente à muralha da parte mais alta
do castelo a fim de a deitarem abaixo; era uma construção de merecer elogios,
com cinco entradas, com um pouco menos de 40 côvados de largura na frente, e
concluíram-na em menos de um mês. Entretanto, a fome e o mau cheiro dos
cadáveres (com efeito, faltava sítio para sepultar dentro da cidade)
angustiavam pateticamente os inimigos. Dava-se até o caso que os restos
lançados dos navios junto das muralhas eram levados pelas águas e eram
recolhidos para comer. Aconteceu com isso algo que provoca riso, como foi o
caso de uns flamengos que montavam vigia no interior das ruínas de umas casas
e, depois de terem comido figos até ficarem saciados, deixaram uma porção deles
naquele sítio; aperceberam-se disso quatro mouros e como aves que se precipitam
para o isco, às escondidas e pé ante pé aproximaram-se; advertindo nisso, os
flamengos (que era para os atraírem que costumavam com bastante frequência
espalhar restos daquela natureza por aqui e por ali), acabaram, no caso, por
estender umas redes nos sítios costumados e apanharam três dos mouros que nelas
se deixaram envolver. O caso foi depois motivo de grande galhofa.
Desmoronamento dum lanço
da muralha
(Avança a torre móvel)
Minada, pois, a muralha e atafulhada com lenha para
arder, nessa mesma noite, ao cantar do galo, um pano das muralhas de cerca de
trinta côvados ruiu por completo (Seria na zona de Alfama, perto das Portas do
Sol, e a muralha teria cerca de 60 metros de extensão. No entanto, já antes, se
tinham ouvido os mouros que estavam de vigia às muralhas gritarem angustiados
que, para porem fim de imediato a um trabalho ininterrupto, estavam dispostos a
partilhar o dia supremo com a morte e que não tinham medo de a enfrentar, mas
seria para eles satisfação máxima se eles se trocassem a si mesmos pelos
nossos. Na realidade, era fatal ir até um ponto de onde era inevitável não
voltar; em boa verdade, se em qualquer parte a vida acabasse bem, não se diria
que ela era breve; de facto, duraria quanto devia, não quanto podia e não seria
contada por quanto tempo tinha durado, mas pelo modo como tinha corrido bem, e
impor-lhe-iam apenas uma cláusula boa. Os mouros, pois, acorrem todos, cada de
sua parte, a defender a brecha da muralha, tapando-a com uma barreira de
cancelas. Foram então os colonienses e os flamengos e tentaram entrar, mas
foram rechaçados. Efectivamente, embora a muralha tivesse ruído, à configuração
do terreno impedia-lhes a entrada pelo simples aterro existente. No entanto,
como não podiam atacá-los de perto, atormentavam-nos com o arremesso de setas
incessantes e violentas, de tal forma que eles, para se defenderem e como que
evitando não ficar feridos, ao manterem-se imobilizados, pareciam ouriços de
espinhos.
Assim se defenderam dos
atacantes até à hora prima do dia, altura em que estes se retiraram para os
seus acampamentos.
Por sua vez, os normandos e os ingleses, que vêm
armados para renderem os seus companheiros, aprestam-se para tomarem em
primeira mão a entrada aos inimigos que já houvessem sido feridos e estivessem
esgotados. No entanto, ainda que impressionados com a vozearia, foram impedidos
de o fazerem pelos comandantes dos flamengos e dos colonienses, os quais
instavam connosco para que intentássemos a entrada, com as nossas máquinas, por
onde quer que fosse possível, pois diziam que aquela abertura fora conseguida
por eles e não por nós. Desta forma, porém, são rechaçados da entrada por todos
os modos durante alguns dias.
Finalmente foi levada a bom termo a nossa máquina de
guerra, envolvida a toda a volta por vimes e couro de boi para evitar que fosse
atingida pelo fogo ou pela violência das pedras. Foi além disso intimado a
todos os dos navios que fizessem mantas de guerra e abrigos entrançados com
varas.
Exortação final e missa
campal
(19 de Outubro)
No domingo seguinte, pois, estando já a postos os
aprestos de defesa, chama-se o arcebispo para dar a bênção ao empreendimento.
Acabada a oração e feita a aspersão da água benta, determinado sacerdote, com a
relíquia do Santo Lenho do Senhor nas mãos, pronunciou o seguinte sermão: (...)
[Que terminou dizendo,]
«O Deus da paz e do amor, que faz de, dois um só e nos
entregou reciprocamente uns aos outros, Ele que levanta da terra o necessitado
e do esterco ergue o pobre, Ele que escolheu a David, seu servo, e o foi buscar
aos rebanhos de ovelhas, embora fosse o mais novo dos filhos de Jessé, Ele que
aos evangelizadores dá a palavra de grande eficácia para aperfeiçoamento da sua
pregação e manifestação da sua obra, mantendo as nossas mãos na sua vontade,
nos dirija e nos receba com glória; Ele mesmo governe quem nos governa para
podermos [ensinar] o seu rebanho com disciplina e não com os instrumentos de um
pastor desorientado. Seja Ele a dar valor e fortaleza ao seu povo, seja Ele a
apresentar a si mesmo um rebanho purificado e resplandecente e em tudo
imaculado e digno dos apriscos celestes, onde há uma morada para os que se
alegram nos esplendores dos santos, de tal modo que no seu templo todos nós,
grei e pastores, cantemos glória a Jesus Cristo, Nosso Senhor, a quem é devida
glória pelos séculos dos séculos. Ámen.»
A grande torre móvel
vai-se aproximando das muralhas
A esta, palavras todos caíram de bruços com gemidos e
lágrimas nos seus rostos. De novo, à ordem do sacerdote, todos se levantaram e
foram abençoados pela veneranda relíquia da Cruz do Senhor, em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo. Assim, rogando em altas vozes o auxílio divino,
aproximaram finalmente a máquina da frente da muralha, a uma distância de uns
quinze côvados. Aí morreu um dos nossos atingidos por uma pedrada de funda
atirada das muralhas. No dia seguinte (20 de Outubro, de novo, a máquina é
deslocada para junto da torre que fica situada num recanto da cidade), frente
ao rio. Os inimigos, porém, levaram igualmente para ali todos os seus aprestos
de defesa. Logo que isso, descobrimos, com facilidade fizemos fracassar os seus
planos, pois os nossos desviaram a máquina para a direita frente ao rio e
ultrapassaram a torre uns vinte côvados junto à muralha perto da Porta Férrea
(devia ser a futuramente conhecida por Porta do Mar, actualmente Arco Escuro, e
não a Porta de Ferro), que está voltada para a torre. Aí os nossos besteiros e
frecheiros repeliram da dita torre os inimigos que não conseguiam aguentar o
ritmo das setas, pois a torre ficava a descoberto pela parte posterior que está
voltada para a cidade.
O combate final
Afugentados os inimigos da torre e da muralha, vizinha
da nossa máquina, com a chegada da noite descansámos um pouco, tendo todos
regressado ao acampamento, mas deixando de guarda cem cavaleiros dos nossos e
cem dos franceses, com frecheiros e besteiros e alguns jovens ligeiramente
armados. Ora, na primeira vigília da noite, a maré cheia envolveu a máquina e
impedia que os nossos tivessem caminho para sair ou para entrar. Tendo os
mouros descoberto que a maré nos isolava, a pé, atacaram a máquina com duas
companhias de homens através da dita porta, enquanto outros, em multidão
inacreditável, por cima das muralhas, tendo acarretado materiais de lenha com
pez, estopa e azeite com substâncias incendiárias de toda a espécie, começam a
atirá-los à nossa máquina. Outros ainda lançavam sobre nós uma chuva
insuportável de pedras. Havia, porém, debaixo das asas da máquina, entre ela e
a muralha, um abrigo de vimes que em língua vulgar toma o nome de gato valisco,
(Ou «galês». A Gata era uma máquina que servia para minar na raiz dos muros) em
que se mantinham sete mancebos da província de Ipswich que tinham trazido
sempre esse abrigo atrás da máquina. Ali debaixo, juntamente com os que se
encontravam em andares inferiores, alguns dos nossos procuravam, tanto quanto
lhes era possível desfazer os materiais inflamáveis, mas em vão. Outros, por
seu lado, tendo aberto covas debaixo da máquina e aí permanecendo, dispersavam
as bolas de fogo. Uns, nos andares cimeiros, através de postigos regavam de
cima os couros que se retesavam; aí havia uns renques de vassouras de cauda,
pendentes da parte de fora, que molhavam toda a máquina. Os restantes, porém,
dispostos em linha de batalha, resistiam com ardor aos que tinham avançado
desde a porta.
Foi assim a máquina defendida nessa noite em esforço
digno de admiração, por um punhado dos nossos, sob a ajuda de Deus, sem grandes
feridas, enquanto a maior parte dos mouros, pelo contrário, mais de perto ou
mais de longe, tinham caído mortos.
Ao romper da manhã, (21 de Outubro) a nossa máquina,
com a subida da maré fica novamente isolada. Novamente surgem os mouros ao
nosso encontro, uns, vindos pela porta, abatem-se sobre os nossos (foi neste
embate que o comandante das galés do rei foi ferido e veio a morrer), outros, a
partir das muralhas, atiram sobre, os nossos uma chuvada de pedras, pois que
tinham para aí acarretado as balistas. Além disso sobre as nossas máquinas, que
apenas ficam a uma distância de oito pés das muralhas, lançam baldes repletos
de materiais inflamados em tal quantidade que é mais que difícil dizer quanto
trabalho, suor, golpes e feridas sem número aguentaram na maior parte do dia,
sem terem qualquer apoio dos companheiros.
Até o nosso especialista dos engenhos, (possivelmente
o engenheiro de Pisa que tinha construído a torre) ficou ferido numa perna por
causa de uma pedra e deixou-nos privados de qualquer esperança no seu apoio.
Também os franceses, ao verem-se rodeados de água, e estando ou feridos ou
fazendo-se feridos, uns atirando com as armas, outros ficando com elas, optam
vergonhosamente por fugir e passar um vau, não ficando mais que seis de todos
eles. Finalmente, na baixa-mar, os inimigos, já cansados, abandonam o combate, desiludidos
de qualquer expectativa de futuro. Por sua vez, os nossos cavaleiros e aqueles
que tinham sido escolhidos para guardarem a máquina, uma vez entrados outros
dos seus apoiantes a rendê-los, deixam aquele lugar, depois de terem estado
dois dias e uma noite, sem tirarem as armas, a defender a máquina em angústia
quase insuportável.
A Lisboa mourisca
rende-se aos cristãos
(21 de Outubro, 3.ª
feira. Às 4 horas da tarde de 21 de Outubro, 3.ª feira, Festa das Onze Mil
Virgens)
Cerca, porém, hora décima, na baixa-mar, os nossos
juntam-se na praia para aproximarem a máquina até quatro pés das muralhas e
assim lançarem uma ponte com maior facilidade. A defender esta parte da muralha
chegam os mouros vindos de toda a parte. Ao verem, porém, a ponte já içada uns
dois côvados e nós já prestes a entrar, como se nem a vida viesse a ser deixada
aos vencidos, gritam em grandes brados e, à nossa vista, depõem as armas,
baixam os braços e suplicam tréguas, ao menos até ao dia seguinte.
Intervindo Fernão Cativo (Fernão Cativo era o Alferes-mor
do Rei), por parte do rei, e Hervey de Glanville, (Hervey de Glanville era
outro dos quatro condestáveis que comandavam os cruzados ingleses e normandos,
especificamente encarregue da direcção dos homens de Norfolk, sendo provavelmente
familiar do autor da carta), pela nossa, foram concedidas tréguas e recebidos
logo de seguida cinco reféns, tendo sido acordado em como durante a noite não
atacariam as nossas máquinas ou como eles, entretanto, não procederiam a
qualquer reparação que revertesse em nosso prejuízo; além disso, durante a
noite, deviam deliberar como é que nos entregariam a cidade no dia seguinte; se
é que era assim que queriam decidir entre eles, pois, caso contrário, o resto
ficaria sujeito à sorte das armas.
Ferrão Cativo e Hervey de Glanville, por sua parte,
sendo já quase a primeira vigília da noite, recebem reféns e entregam-nos ao
rei. Foi isso motivo de grande discórdia, pelo facto de não os terem entregues
aos nossos, pois consideravam que através deles se prepararia uma traição por
parte do rei, admitindo que era hábito seu assim proceder, e por isso
mostravam-se indignados contra Fernão Cativo e Hervey de Glanville.
Conferência sobre o modo
de rendição
(22 de Outubro)
De madrugada, pois, convocando os colonienses e os
flamengos, os nossos condestáveis juntamente com os anciãos, dirigem-se ao
acampamento do rei, para ouvirem o que aqueles embusteiros teriam deliberado.
Interrogados, são favoráveis a entregarem a cidade ao rei e a deixarem o ouro,
a prata e outros haveres dos habitantes da cidade nas nossas mãos. Para darem a
isto uma resposta, os nossos saem fora.
Treme então, até definhar, o antigo inimigo, ao sentir
que finalmente vai ficar despojado do velho direito. Contra todos e através de
todos, excita os vasos da iniquidade, a tal ponto se encarniça o vírus da
maldade que dificilmente ou irremediavelmente alguém chega algum dia a
concordar com o outro, ficando em ruptura mútua. De facto, ao chegarem já perto
da entrada das portas, se não fosse o nosso Deus contrapor a sua dextra de
propiciação, a boa harmonia ter-se-ia rompido. Efectivamente usou sempre Ele
para connosco de clemência da sua bondade desde o início da nossa associação, a
tal ponto que, quando já os nossos chefes abandonavam o leme da governação por
múltiplas e desesperadas causas de divisão, era então que a brisa do Espírito
Santo, trazendo a sua inspiração e como que fazendo reverberar as nuvens
caliginosas do temporal com a vibração de um raio de sol do meio-dia, tornava
mais agradáveis, os laços da concórdia que regressava.
Foi o caso que, quando estávamos em assembleia para
darmos a nossa resposta, os nossos marinheiros, com outros tresloucados a eles
semelhantes, se juntam na praia em conspiração montada por um certo sacerdote
de Bristol, homem sacrílego; efectivamente, tratava-se de alguém de costumes
mais que reprováveis, como algum tempo depois tivemos conhecimento por ter sido
apanhado a roubar. Começaram eles paulatinamente a incitar à revolta, desde
simples falas até chegarem a vociferar, para declararem que era indigno que
tantos e tão grandes homens, ilustres na sua terra e nos feitos militares, se
sujeitassem a estar a mando de uns poucos reunidos em assembleia, aos quais,
nas circunstâncias presentes, não seria propriamente necessário conselho, mas
valentia. Na realidade, os que tinham até ali chegado, trazidos pelo Espírito
Santo fosse o que fosse que tivessem. Feito tinham agido de modo excelente, sob
a sua inspiração. Ora, entre os seus magnates não se registava assembleia ou empreendimento
que alguma vez não tivessem sido em vão. Efectivamente, sem eles, tinha sido
tomado o arrabalde, sem eles saberem tinha sido submetida Almada; se, como
convinha, se tivessem deixado levar pelo seu entusiasmo, já há muito, diziam,
teriam tomado conta da cidade ou teriam tido alguma vantagem maior.
Reflexões
Mas que havemos de dizer de homens que injuriam desta
maneira, senão que há uma certa capacidade naturalmente implantada nos maus
comportamentos de tal modo que o crime de uns poucos deslustra a inocência de
muitos e que, em contrapartida, a escassez dos bons, ainda que queira, não
consegue desculpar os crimes de muitos? Todavia, quem não se irritará ao ver
que a virtude sincera fica manchada pela alegação de vícios, quando não
conseguem discernir o que querem ou deixam de querer nem o que lhes agrada nas
coisas boas ou o que lhes desagrada nas coisas más? Se vêem uma pessoa humilde,
chamam-lhe abjecto; se anda de cabeça levantada, pensam que é por soberba; se é
menos instruído, consideram que deve ser posto a ridículo devido à sua falta de
conhecimentos; se tem alguma ciência, dizem-no inchado por causa do saber; se é
severo, têm-lhe horror porque é cruel; se é indulgente, culpam-no por
facilitar; se é simples, desprezam-no como se fosse estúpido; se é áspero,
evitam-no como a um malicioso; se é diligente, consideram-no escrupuloso; se é
vagaroso, julgam-no negligente; se é perspicaz, têm-no por ambicioso; se é
sossegado, chamam-lhe preguiçoso; se é parco, clamam que é avaro; se, quando
come, fica saciado, condenam-no por comilão; se faz jejum na comida, falam dele
como dissimulado; ao que anda em liberdade condenam-no como criminoso; ao
modesto, como homem rude; aos que são pessoas de rigor por causa da austeridade
não os estimam; os mansos por afabilidade para eles são pessoas vis. Se alguém
vive de outra maneira, ainda que os seus comportamentos sejam sempre de boa
qualidade, ao serem espicaçados pelas línguas dos maldizentes, ficarão
dependurados de anzóis de duas pontas.
Apaziguamento de tensões
entre cruzados
O alvoroço deste tumulto é, pois, dirigido contra
Hervey de Glanville, que tinha entregue os reféns ao rei e não a eles e tinha
bem assim deixado alguns deles fora da atribuição dos dinheiros da cidade, como
se eles fossem de outra raça. Mais de quatrocentos correm para fora dos
acampamentos e, de armas na mão, procuram-no por todo o lado, ainda mesmo onde
sabem que ele não está, clamando em altas vozes: "fora o ímpio,
castigue-se o traidor"!
Tendo tomado conhecimento disto, quando estávamos no
acampamento do rei, alguns dos nossos anciãos tomaram a iniciativa de lhes ir
ao encontro para reprimirem estes assomos de violência. Logo que eles voltaram,
reunimo-nos para respondermos ao que anteriormente estava em causa.
Os reféns, por sua parte, tendo-se dado conta de que
os nossos tinham entrado em disputas, dissimulam e intentam retractar-se das
palavras da primeira proposta. Ao rei e aos seus homens diziam que pretendiam
guardar a sua palavra e manter todas as promessas que anteriormente nos tinham
afiançado; aos nossos, nem com a morte algo fariam, pois tinham-se apercebido
que éramos corruptos, desleais, sem piedade, cruéis, que nem os nossos próprios
senhores poupávamos. Tudo isto deixou os nossos prostrados na maior vergonha.
De novo se voltou a conselho com o rei; passou-se
nisso a maior parte do dia e ao fim anuíram os reféns no seguinte: o alcaide,
com um genro seu, ficaria de posse de todos os seus bens em liberdade e todo e
cada um dos homens da cidade ficaria com o que tinham para comer e a cidade
render-se-ia; de contrário, tentariam a sorte das armas.
Acordo de actuação em
concertação com o Rei Português
Os normandos e bem assim os ingleses, para quem os
incidentes de guerra tinham sido particularmente gravosos, cansados do longo
cerco, diziam que seria razoável aceder e que não seria honesto antepor o
dinheiro ou os víveres à honra de tomar a cidade.
Os colonienses e os flamengos, por sua parte, com a
sua inata cupidez de deitar a mão, lembravam o desgaste de uma longa viagem e a
perda dos seus bens como o longo caminho a percorrer ainda, argumentavam que
não era admissível deixar alguma coisa aos inimigos. Chegados a este ponto de
discussão, por último, acediam a que todos os haveres e mantimentos do alcaide
lhe fossem concedidos, com excepção de uma égua árabe que o Conde de Aerschot (O conde Arnaldo de Aerschot, da Flandres, comandante
das forças de cruzados vindos do Império germânico, ou romano como se dizia na
época, era sobrinho do duque Godofredo I da Baixa-Lotaríngia), cobiçava para si e se propunha tirar-lhe sob
que pretexto fosse. Finalmente, a este respeito, a opinião deles tornou-se
inabalável, os nossos suportavam-na com grande indignação.
A noite põe termo à reunião, os reféns mantêm a sua opinião,
os francos dispõem-se a qualquer das alternativas, à paz ou à guerra.
No dia seguinte, porém, decidiram tentar a entrada na
cidade à força das armas e voltaram todos ao acampamento. Entretanto os
colonienses e os flamengos mostram-se indignados, porque parecia que o rei era
benevolente para com os reféns, e saem armados dos acampamentos para, à força,
roubarem os reféns ao acampamento do rei e se vingarem neles. Gera-se confusão
e embate de armas por todo o lado.
Nós, pela nossa parte, estando no meio, entre o rei e
os acampamentos dos outros, e esperançados em que se voltasse a parlamentar,
fizemos saber ao rei o que se preparava. Porém, o Duque de Flandres e o conde
de Aerschot, dando-se conta do motim, armam-se também e a custo travam o
levantamento dos seus.
O Rei fica descontente
Apaziguado o motim, seguidamente, vão ter com o rei
para uma conciliação em favor dos seus, declarando que estavam completamente
fora do acontecido. Garantida que foi por parte deles a sua segurança, o rei,
uma vez serenado o ânimo, manda que os seus deponham as armas, assegurando
firmemente que deixaria para o dia seguinte o cerco, mas não posporia a sua
dignidade à tomada da cidade; antes, pelo contrário, dizia, tudo consideraria
de menos se ficasse sem ela; no entanto, que se sentia atingido por aquelas
injúrias, e nada mais queria em comum com homens corruptos, sem contenção, e
dispostos a tudo.
Tendo a custo serenado finalmente o ânimo, anuiu a que
se deliberasse sobre o que pretendia para o dia seguinte. Deliberou-se, pois,
que no dia seguinte todos os nossos chefes, de uma parte e de outra, por si e
pelos seus, prometessem manter fidelidade ao rei enquanto permanecessem na sua
terra.
Confirmado isto por ambas as partes, anuiu-se ao que
no dia anterior os mouros tinham pedido relativamente à rendição da cidade.
Decidiu-se, pois, entre nós, que 140 homens de armas dos nossos e 160 dos
clunienses e flamengos entrariam antes dos outros na cidade e que ocupariam
pacificamente a fortaleza do castelo superior, para que os inimigos pudessem
trazer os dinheiros e todos os seus haveres, comprovados, sob juramento,
perante os nossos; feita assim a recolha, a cidade seria depois inspeccionada
pelos nossos: se algo mais do que o alegado fosse encontrado com alguém, o dono
em cuja casa fosse achado pagaria com a vida. Deste modo, depois de espoliados,
todos seriam mandados em paz para fora da cidade.
Entrada solene na cidade
(25 de Outubro)
Aberta, pois, a porta e dada autorização de entrarem,
os colonienses e os flamengos, concebendo um astucioso ardil, solicitam aos
nossos que seja deles a honra de serem os primeiros a entrar. Dada, pois, a
anuência para tal efeito e chegada a ocasião, fazem entrada mais de duzentos
com os que anteriormente haviam sido designados, fora outros que se tinham
intrometido pela brecha da muralha que ficava à sua mercê da parte em que se
encontravam, enquanto ninguém dos nossos, que não fosse dos designados, presumira
proceder à entrada.
À frente, pois, ia o arcebispo e os outros bispos com
a bandeira da Cruz do Senhor e a seguir entram os nossos chefes juntamente com
o rei e os que para este efeito tinham sido escolhidos.
Oh! Quanta não foi a alegria de todos! Oh! Quanta não
foi a honra especial que todos sentiam! Oh! Quantas não foram as lágrimas que afluíam
em testemunho de alegria e de piedade, quando todos viram colocar no mais alto
da fortaleza o estandarte da Cruz salvífica em sinal de sujeição da cidade,
para louvor e glória de Deus e da santíssima Virgem Maria. O arcebispo e os
bispos com o clero e todos os outros, não sem lágrimas de júbilo, cantavam o Te
Deum laudamus com o Asperges me e orações de devoção.
Entretanto, o Rei dá a
volta a pé pelas muralhas do castelo cimeiro.
(Desmandos de alguns
cruzados)
Os colonienses e os flamengos, ao lobrigarem na cidade
tantas oportunidades de se saciarem não respeitam qualquer observância de
juramento ou de palavra dada. Correm por aqui e por ali, saqueiam, arrombam
portas, espreitam pelos interiores de qualquer casa, assustam os habitantes e,
contra o direito divino e humano, infligem-lhes injúrias, dispersam vasilhames
e roupas, actuam sem respeito contra as donzelas, põem no mesmo prato da
balança o lícito e o ilícito, às escondidas tudo subtraem, mesmo o que deveria
ficar em comum para todos. Ao bispo da cidade, um ancião de muitos anos,
cortam-lhe o pescoço, contra o direito divino e humano. Aprisionam o próprio
alcaide da cidade, depois de lhe terem tirado tudo de casa. A pequena égua, de
que falámos acima, o próprio conde de Aerschot a arrebatou com as suas mãos.
Tendo ele sido intimado pelo rei e por todos os nossos a entregá-la, reteve-a
com tanta obstinação que o próprio alcaide disse que a sua pequena égua ao
urinar sangue tinha perdido um potro, exprimindo de maneira astuta a fealdade
de uma acção obscena.
O êxodo dos habitantes
Os normandos e os ingleses, que tinham em máximo
apreço a palavra dada e o respeito divino, observavam onde poderia levar uma
actuação destas e permaneciam quietos no lugar que lhes fora determinado,
preferindo manter as mãos limpas de qualquer roubo a violarem os princípios de
solidariedade firmada por um juramento de fidelidade.
A atitude tomada deixou grandemente cobertos de
opróbrio o Conde de Aerschot e Cristiano com os seus nobres, cuja cupidez
ficava à vista de todos, sem equívocos, depois de terem com toda a evidência
atirado para trás das costas o seu juramento.
No entanto, voltando finalmente a si, com pedidos
insistentes, suplicaram junto dos nossos que fossem os nossos, juntamente com
os seus, a congregar as restantes partes da cidade para uma partilha pacífica,
de tal forma que, depois de aceites as respectivas partilhas, debatessem em paz
as injúrias e as subtracções de todos, estando eles dispostos a emendarem o que
indevidamente se tinham antecipado a retirar.
Espoliados, pois, os inimigos na cidade, foram vistos
sair, sem despegar, pelas três portas, desde o início da manhã de sábado até à
quarta-feira subsequente, em tão grande multidão de gente que era como se nela
tivesse confluído a Espanha inteira.
Verificou-se seguidamente um prodígio que causou muita
admiração: os alimentos dos inimigos que antes da conquista da cidade e ao
longo de quinze dias se haviam revelado intragáveis por cheiro insuportável,
pudemos saboreá-los pouco depois, já que tanto para nós como para eles se
apresentavam bons e agradáveis.
Saqueada, pois, a cidade, foram encontradas em fossas
cerca de oito mil cargas de trigo e de cevada, enquanto as de azeite eram de
uns doze mil sextários.
Relativamente às observâncias da sua religião, logo
depois vimos com os olhos o que acima tínhamos referido. Efectivamente, no seu
templo, que se levanta em sete ordens de colunas com outras tantas abóbadas,
foram encontrados uns duzentos cadáveres dos que ali tinham morrido, fora mais
oitocentos doentes que aí haviam ficado no meio daquela imundície e na sua
fealdade.
Restauração da diocese
de Lisboa, com novo Bispo
(Purificação da
mesquita)
(1 de Novembro)
Tomada, pois, a cidade, após dezassete semanas de
cerco, os habitantes de Sintra fizeram oferta da guarnição do seu castelo e
entregaram-se ao rei. Por sua vez, o castelo de Palmela foi abandonado pela sua
guarnição e foi tomado pelo rei já sem ninguém. Rendidas, pois, todas as
fortalezas que nas redondezas estavam ligadas à cidade, foi celebrado o nome
dos francos por todas as terras de Espanha e abateu-se o terror sobre os mouros
aos quais ia chegando a notícia destes acontecimentos.
Seguidamente, foi eleito para a sede episcopal um dos
nossos, Gilberto de Hastings, tendo dado o seu assentimento para a eleição o
rei, o arcebispo, os bispos, o clero e todos os leigos. No dia em que se
celebrava a Festa de Todos os Santos, em louvor e honra do nome de Cristo e da
Sua Santíssima Mãe, foi feita a purificação do templo pelo arcebispo e por mais
quatro bispos sufragâneos e restaurada a diocese como sede do episcopado, com
os seguintes castelos e terras: para além do Tejo, o castelo de Alcácer, o
castelo de Palmela, a zona de Almada; aquém do Tejo, o castelo de Sintra, o
castelo de Santarém, o castelo de Leiria. Os limites vão do castelo de Alcácer
até ao castelo de Leiria e do mar, a ocidente, até à cidade de Évora.
A situação miserável dos
mouros
Sobreveio seguidamente uma peste tão grande entre os
mouros que pelas vastidões dos ermos, pelas vinhas e pelas aldeias e praças,
bem como pelas casas em ruínas jaziam inúmeros milhares de cadáveres à mercê
das feras e das aves; os que ainda tinham vida, semelhantes a fantasmas que
andassem errantes à face da terra, abraçavam-se ao sinal da cruz e beijavam-no,
confessavam que Maria, cheia de bondade, é a bem-aventurada Mãe de Deus, de tal
modo que em tudo o que fazem ou dizem, mesmo nos momentos extremos, misturam
invocações a Maria boa, boa Maria e lhe dirigem apelos angustiados.
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