segunda-feira, novembro 23, 2015

FONTE COEVA

FONTE COEVA - CARTA DO CRUZADO SOBRE A CONQUISTA DE LISBOA


Carta do Cruzado R. com base nas traduções referenciadas na lista de fontes. Com a pregação da Segunda Cruzada por São Bernardo de Claraval, em 1146 na basílica de Vézelay, com intenção de enviar um grande exército para defesa dos territórios Francos na Palestina atacados pelos Turcos Seljúcidas, uma parte das forças de Cruzados, que do Nordeste da Europa se dirigiam por mar para o Médio Oriente, foram aliciados a ajudarem o mais recente Rei da Cristandade, D. Afonso Henriques, a combater os infiéis. Este é o relatório que o Cruzado R[aul] mandou a Osb[erto] de Baldr[eseia] (Bawssey), que é a interpretação mais recente, ou que Osb[erto] de Baldr[eseia] mandou a R.

Como escreveu Alfredo Pimenta, «o autor, fosse Osberno ou fosse R. parece ter sido padre, era inglês ou normando, e entrou com certeza na conquista de Lisboa. E isso é o que importa acima de tudo.»

(O problema é decidir qual foi a regra seguida pelo escritor no endereçamento da carta. De acordo com as regras da epistolografia clássica escrevia-se o remetente em primeiro lugar, mas com o cristianismo a regra inverteu-se, passando a escrever-se primeiro o destinatário e só depois o remetente, para provar submissão. A carta, escrita em latim, começa «Osb. De, Baldr. R. salutem», e pode ser traduzida: «A Osb[erto] de Bawdsey, R[aul]. As minhas saudações!», como faz a tradução de 2001, ou «A Osb[erto] de Baldr[esseia] R. Saúde», como faz a de 1936.)

A Conquista de Lisboa aos Mouros


[Pensando no seu pai e no seu sogro, (A Dinastia Ducal Capetíngia da Borgonha foi iniciada), o Rei de Portugal marchou, o resultado deste acordo político-financeiro-militar verdadeiro «contrato de prestação de serviços bélicos», com contrapartida remuneratória adequada (foi a constituição de um exército com tamanho e eficácia suficiente para conquistar Lisboa)].    
A Osberto de Bawdsey,
R.
As minhas saudações!
Assim como temos por certo que será vosso grande desejo ir sabendo o que se passa connosco, sem sombra de dúvida podeis estar seguro de dar-se o mesmo entre nós a vosso respeito. Por isso vos manifestaremos por escrito as venturas ou adversidades desta nossa viagem e bem assim os feitos, os ditos, ou tudo o que, durante ela, virmos ou ouvirmos e for digno de relato. [...]

Expedição a Almada
Represálias


Sucedeu (...), que certo dia alguns dos nossos passaram o Tejo para irem pescar do lado de Almada, (Localidade na margem esquerda do Tejo, na «outra banda», em frente de Lisboa). Efectivamente, o areal daquela praia era mais favorável para os pescadores. Caíram sobre eles os mouros daquela zona, mataram bastantes e levaram com eles, alguns cativos, cinco dos quais eram bretões. Os nossos ficaram indignados com isso e, discutido o assunto entre todos, foi decidido que duzentos cavaleiros com quinhentos peões seriam enviados a Almada para a saquearem. À hora de fazerem a travessia, os colonienses (Membros do contingente alemão que se concentrou em Colónia e de lá saiu em Abril de 1147), e os flamengos, por má vontade ou por receio, ou por outro motivo que não conheço, retiraram os seus do nosso grupo para não atravessarem. Por essa razão, os normandos, os ingleses e os que se mantinham connosco e estavam do nosso lado, malogrados na constituição de grupo que abrangesse a todos, entregaram a expedição prevista a Saério de Archelle (Saério de Archelles era um dos quatro condestáveis que comandavam o contingente inglês e normando, sendo encarregue de uma parte dos navios da frota) com uns trinta cavaleiros e uma centena de peões, para mais. Depois de terem matado em combate mais de quinhentos mouros, trazendo cerca de duzentos cativos e mais de oitenta cabeças, o que não deixou de ser motivo de grande alegria para os nossos e de grande abatimento dos inimigos, regressaram eles vitoriosos no mesmo dia, tendo perdido um apenas dos nossos.
Quando os mouros, ao olharem das muralhas, avistam as cabeças espetadas nas lanças, saem ao encontro dos nossos a pedir que lhes entreguem as cabeças cortadas. Tendo-as recebido, em pranto e clamor prolongado, levam-nas para dentro das muralhas. Ouviu-se por toda a noite uma voz de dor e uma lamúria magoada de pranto por quase todas as partes da cidade. O facto é que por tal acto de ousadia tão preclaro, ficámos a ser de extremo terror para os inimigos pelo tempo fora, enquanto, para os colonienses, para os flamengos e para os portugueses, isso era factor de honra. Livre ficava a partir de então o caminho para atravessar até Almada. Entretanto Roberto

Inicia-se a construção de uma torre móvel
e a escavação de uma mina
(16 de Outubro)

É então que, por sua vez, os nossos se empenham mais no trabalho e se lançam a escavar um fosso subterrâneo entre a Torre e a Porta de Ferro, (A Porta de Ferro ficava no actual Largo de Santo António da S. é, segundo José da Felicidade Alves, Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147, nota 45), com o fim de deitarem abaixo a muralha, (O fosso ficava «na extensão da Rua da Padaria, entre o Largo de Santo António da Sé e a esquina junto ao arco da rua das Canastras», segundo José da Felicidade Alves, ob.cit, pág.). Porque estava demasiado acessível aos inimigos, ao ser descoberta depois de iniciado o cerco à cidade, foi extremamente danosa para os nossos, tendo-se gasto muitos dias a defendê-la sem êxito. Além disso, são levantadas pelos nossos duas balistas: uma, colocada junto à margem do rio era accionada pelos marinheiros, outra situada frente à Porta de Ferro estava às ordens dos cavaleiros e dos seus acompanhantes. Estavam todos eles organizados em grupos de cem e, mal se ouvia o sinal para saírem os primeiros cem, outros cem entravam; de forma que no espaço de dez horas tinham sido disparadas cinco mil pedras. Acção desta natureza extenuava extremamente os inimigos. É então a vez de os normandos, os ingleses e os que com eles se encontravam começarem a fazer uma torre móvel de 83 pés de altura (Segundo outra fonte, A Carta do Cruzado Arnulfo a Milão, publicada também por José Augusto de Oliveira, na edição de 1936, a torre terá sido projectada por um engenheiro de Pisa e construída com o apoio do Rei de Portugal, tendo 25 metros de altura - 83 pés). Os colonienses e os flamengos recomeçam a escavar novo fosso subterrâneo frente à muralha da parte mais alta do castelo a fim de a deitarem abaixo; era uma construção de merecer elogios, com cinco entradas, com um pouco menos de 40 côvados de largura na frente, e concluíram-na em menos de um mês. Entretanto, a fome e o mau cheiro dos cadáveres (com efeito, faltava sítio para sepultar dentro da cidade) angustiavam pateticamente os inimigos. Dava-se até o caso que os restos lançados dos navios junto das muralhas eram levados pelas águas e eram recolhidos para comer. Aconteceu com isso algo que provoca riso, como foi o caso de uns flamengos que montavam vigia no interior das ruínas de umas casas e, depois de terem comido figos até ficarem saciados, deixaram uma porção deles naquele sítio; aperceberam-se disso quatro mouros e como aves que se precipitam para o isco, às escondidas e pé ante pé aproximaram-se; advertindo nisso, os flamengos (que era para os atraírem que costumavam com bastante frequência espalhar restos daquela natureza por aqui e por ali), acabaram, no caso, por estender umas redes nos sítios costumados e apanharam três dos mouros que nelas se deixaram envolver. O caso foi depois motivo de grande galhofa.

Desmoronamento dum lanço da muralha
(Avança a torre móvel)

Minada, pois, a muralha e atafulhada com lenha para arder, nessa mesma noite, ao cantar do galo, um pano das muralhas de cerca de trinta côvados ruiu por completo (Seria na zona de Alfama, perto das Portas do Sol, e a muralha teria cerca de 60 metros de extensão. No entanto, já antes, se tinham ouvido os mouros que estavam de vigia às muralhas gritarem angustiados que, para porem fim de imediato a um trabalho ininterrupto, estavam dispostos a partilhar o dia supremo com a morte e que não tinham medo de a enfrentar, mas seria para eles satisfação máxima se eles se trocassem a si mesmos pelos nossos. Na realidade, era fatal ir até um ponto de onde era inevitável não voltar; em boa verdade, se em qualquer parte a vida acabasse bem, não se diria que ela era breve; de facto, duraria quanto devia, não quanto podia e não seria contada por quanto tempo tinha durado, mas pelo modo como tinha corrido bem, e impor-lhe-iam apenas uma cláusula boa. Os mouros, pois, acorrem todos, cada de sua parte, a defender a brecha da muralha, tapando-a com uma barreira de cancelas. Foram então os colonienses e os flamengos e tentaram entrar, mas foram rechaçados. Efectivamente, embora a muralha tivesse ruído, à configuração do terreno impedia-lhes a entrada pelo simples aterro existente. No entanto, como não podiam atacá-los de perto, atormentavam-nos com o arremesso de setas incessantes e violentas, de tal forma que eles, para se defenderem e como que evitando não ficar feridos, ao manterem-se imobilizados, pareciam ouriços de espinhos.

Assim se defenderam dos atacantes até à hora prima do dia, altura em que estes se retiraram para os seus acampamentos.

Por sua vez, os normandos e os ingleses, que vêm armados para renderem os seus companheiros, aprestam-se para tomarem em primeira mão a entrada aos inimigos que já houvessem sido feridos e estivessem esgotados. No entanto, ainda que impressionados com a vozearia, foram impedidos de o fazerem pelos comandantes dos flamengos e dos colonienses, os quais instavam connosco para que intentássemos a entrada, com as nossas máquinas, por onde quer que fosse possível, pois diziam que aquela abertura fora conseguida por eles e não por nós. Desta forma, porém, são rechaçados da entrada por todos os modos durante alguns dias.
Finalmente foi levada a bom termo a nossa máquina de guerra, envolvida a toda a volta por vimes e couro de boi para evitar que fosse atingida pelo fogo ou pela violência das pedras. Foi além disso intimado a todos os dos navios que fizessem mantas de guerra e abrigos entrançados com varas.

Exortação final e missa campal
(19 de Outubro)

No domingo seguinte, pois, estando já a postos os aprestos de defesa, chama-se o arcebispo para dar a bênção ao empreendimento. Acabada a oração e feita a aspersão da água benta, determinado sacerdote, com a relíquia do Santo Lenho do Senhor nas mãos, pronunciou o seguinte sermão: (...) [Que terminou dizendo,]
«O Deus da paz e do amor, que faz de, dois um só e nos entregou reciprocamente uns aos outros, Ele que levanta da terra o necessitado e do esterco ergue o pobre, Ele que escolheu a David, seu servo, e o foi buscar aos rebanhos de ovelhas, embora fosse o mais novo dos filhos de Jessé, Ele que aos evangelizadores dá a palavra de grande eficácia para aperfeiçoamento da sua pregação e manifestação da sua obra, mantendo as nossas mãos na sua vontade, nos dirija e nos receba com glória; Ele mesmo governe quem nos governa para podermos [ensinar] o seu rebanho com disciplina e não com os instrumentos de um pastor desorientado. Seja Ele a dar valor e fortaleza ao seu povo, seja Ele a apresentar a si mesmo um rebanho purificado e resplandecente e em tudo imaculado e digno dos apriscos celestes, onde há uma morada para os que se alegram nos esplendores dos santos, de tal modo que no seu templo todos nós, grei e pastores, cantemos glória a Jesus Cristo, Nosso Senhor, a quem é devida glória pelos séculos dos séculos. Ámen.»

A grande torre móvel vai-se aproximando das muralhas


A esta, palavras todos caíram de bruços com gemidos e lágrimas nos seus rostos. De novo, à ordem do sacerdote, todos se levantaram e foram abençoados pela veneranda relíquia da Cruz do Senhor, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Assim, rogando em altas vozes o auxílio divino, aproximaram finalmente a máquina da frente da muralha, a uma distância de uns quinze côvados. Aí morreu um dos nossos atingidos por uma pedrada de funda atirada das muralhas. No dia seguinte (20 de Outubro, de novo, a máquina é deslocada para junto da torre que fica situada num recanto da cidade), frente ao rio. Os inimigos, porém, levaram igualmente para ali todos os seus aprestos de defesa. Logo que isso, descobrimos, com facilidade fizemos fracassar os seus planos, pois os nossos desviaram a máquina para a direita frente ao rio e ultrapassaram a torre uns vinte côvados junto à muralha perto da Porta Férrea (devia ser a futuramente conhecida por Porta do Mar, actualmente Arco Escuro, e não a Porta de Ferro), que está voltada para a torre. Aí os nossos besteiros e frecheiros repeliram da dita torre os inimigos que não conseguiam aguentar o ritmo das setas, pois a torre ficava a descoberto pela parte posterior que está voltada para a cidade.

O combate final

Afugentados os inimigos da torre e da muralha, vizinha da nossa máquina, com a chegada da noite descansámos um pouco, tendo todos regressado ao acampamento, mas deixando de guarda cem cavaleiros dos nossos e cem dos franceses, com frecheiros e besteiros e alguns jovens ligeiramente armados. Ora, na primeira vigília da noite, a maré cheia envolveu a máquina e impedia que os nossos tivessem caminho para sair ou para entrar. Tendo os mouros descoberto que a maré nos isolava, a pé, atacaram a máquina com duas companhias de homens através da dita porta, enquanto outros, em multidão inacreditável, por cima das muralhas, tendo acarretado materiais de lenha com pez, estopa e azeite com substâncias incendiárias de toda a espécie, começam a atirá-los à nossa máquina. Outros ainda lançavam sobre nós uma chuva insuportável de pedras. Havia, porém, debaixo das asas da máquina, entre ela e a muralha, um abrigo de vimes que em língua vulgar toma o nome de gato valisco, (Ou «galês». A Gata era uma máquina que servia para minar na raiz dos muros) em que se mantinham sete mancebos da província de Ipswich que tinham trazido sempre esse abrigo atrás da máquina. Ali debaixo, juntamente com os que se encontravam em andares inferiores, alguns dos nossos procuravam, tanto quanto lhes era possível desfazer os materiais inflamáveis, mas em vão. Outros, por seu lado, tendo aberto covas debaixo da máquina e aí permanecendo, dispersavam as bolas de fogo. Uns, nos andares cimeiros, através de postigos regavam de cima os couros que se retesavam; aí havia uns renques de vassouras de cauda, pendentes da parte de fora, que molhavam toda a máquina. Os restantes, porém, dispostos em linha de batalha, resistiam com ardor aos que tinham avançado desde a porta.
Foi assim a máquina defendida nessa noite em esforço digno de admiração, por um punhado dos nossos, sob a ajuda de Deus, sem grandes feridas, enquanto a maior parte dos mouros, pelo contrário, mais de perto ou mais de longe, tinham caído mortos.
Ao romper da manhã, (21 de Outubro) a nossa máquina, com a subida da maré fica novamente isolada. Novamente surgem os mouros ao nosso encontro, uns, vindos pela porta, abatem-se sobre os nossos (foi neste embate que o comandante das galés do rei foi ferido e veio a morrer), outros, a partir das muralhas, atiram sobre, os nossos uma chuvada de pedras, pois que tinham para aí acarretado as balistas. Além disso sobre as nossas máquinas, que apenas ficam a uma distância de oito pés das muralhas, lançam baldes repletos de materiais inflamados em tal quantidade que é mais que difícil dizer quanto trabalho, suor, golpes e feridas sem número aguentaram na maior parte do dia, sem terem qualquer apoio dos companheiros.
Até o nosso especialista dos engenhos, (possivelmente o engenheiro de Pisa que tinha construído a torre) ficou ferido numa perna por causa de uma pedra e deixou-nos privados de qualquer esperança no seu apoio. Também os franceses, ao verem-se rodeados de água, e estando ou feridos ou fazendo-se feridos, uns atirando com as armas, outros ficando com elas, optam vergonhosamente por fugir e passar um vau, não ficando mais que seis de todos eles. Finalmente, na baixa-mar, os inimigos, já cansados, abandonam o combate, desiludidos de qualquer expectativa de futuro. Por sua vez, os nossos cavaleiros e aqueles que tinham sido escolhidos para guardarem a máquina, uma vez entrados outros dos seus apoiantes a rendê-los, deixam aquele lugar, depois de terem estado dois dias e uma noite, sem tirarem as armas, a defender a máquina em angústia quase insuportável.

A Lisboa mourisca rende-se aos cristãos
(21 de Outubro, 3.ª feira. Às 4 horas da tarde de 21 de Outubro, 3.ª feira, Festa das Onze Mil Virgens)

Cerca, porém, hora décima, na baixa-mar, os nossos juntam-se na praia para aproximarem a máquina até quatro pés das muralhas e assim lançarem uma ponte com maior facilidade. A defender esta parte da muralha chegam os mouros vindos de toda a parte. Ao verem, porém, a ponte já içada uns dois côvados e nós já prestes a entrar, como se nem a vida viesse a ser deixada aos vencidos, gritam em grandes brados e, à nossa vista, depõem as armas, baixam os braços e suplicam tréguas, ao menos até ao dia seguinte.
Intervindo Fernão Cativo (Fernão Cativo era o Alferes-mor do Rei), por parte do rei, e Hervey de Glanville, (Hervey de Glanville era outro dos quatro condestáveis que comandavam os cruzados ingleses e normandos, especificamente encarregue da direcção dos homens de Norfolk, sendo provavelmente familiar do autor da carta), pela nossa, foram concedidas tréguas e recebidos logo de seguida cinco reféns, tendo sido acordado em como durante a noite não atacariam as nossas máquinas ou como eles, entretanto, não procederiam a qualquer reparação que revertesse em nosso prejuízo; além disso, durante a noite, deviam deliberar como é que nos entregariam a cidade no dia seguinte; se é que era assim que queriam decidir entre eles, pois, caso contrário, o resto ficaria sujeito à sorte das armas.
Ferrão Cativo e Hervey de Glanville, por sua parte, sendo já quase a primeira vigília da noite, recebem reféns e entregam-nos ao rei. Foi isso motivo de grande discórdia, pelo facto de não os terem entregues aos nossos, pois consideravam que através deles se prepararia uma traição por parte do rei, admitindo que era hábito seu assim proceder, e por isso mostravam-se indignados contra Fernão Cativo e Hervey de Glanville.

Conferência sobre o modo de rendição
(22 de Outubro)

De madrugada, pois, convocando os colonienses e os flamengos, os nossos condestáveis juntamente com os anciãos, dirigem-se ao acampamento do rei, para ouvirem o que aqueles embusteiros teriam deliberado. Interrogados, são favoráveis a entregarem a cidade ao rei e a deixarem o ouro, a prata e outros haveres dos habitantes da cidade nas nossas mãos. Para darem a isto uma resposta, os nossos saem fora.
Treme então, até definhar, o antigo inimigo, ao sentir que finalmente vai ficar despojado do velho direito. Contra todos e através de todos, excita os vasos da iniquidade, a tal ponto se encarniça o vírus da maldade que dificilmente ou irremediavelmente alguém chega algum dia a concordar com o outro, ficando em ruptura mútua. De facto, ao chegarem já perto da entrada das portas, se não fosse o nosso Deus contrapor a sua dextra de propiciação, a boa harmonia ter-se-ia rompido. Efectivamente usou sempre Ele para connosco de clemência da sua bondade desde o início da nossa associação, a tal ponto que, quando já os nossos chefes abandonavam o leme da governação por múltiplas e desesperadas causas de divisão, era então que a brisa do Espírito Santo, trazendo a sua inspiração e como que fazendo reverberar as nuvens caliginosas do temporal com a vibração de um raio de sol do meio-dia, tornava mais agradáveis, os laços da concórdia que regressava.
Foi o caso que, quando estávamos em assembleia para darmos a nossa resposta, os nossos marinheiros, com outros tresloucados a eles semelhantes, se juntam na praia em conspiração montada por um certo sacerdote de Bristol, homem sacrílego; efectivamente, tratava-se de alguém de costumes mais que reprováveis, como algum tempo depois tivemos conhecimento por ter sido apanhado a roubar. Começaram eles paulatinamente a incitar à revolta, desde simples falas até chegarem a vociferar, para declararem que era indigno que tantos e tão grandes homens, ilustres na sua terra e nos feitos militares, se sujeitassem a estar a mando de uns poucos reunidos em assembleia, aos quais, nas circunstâncias presentes, não seria propriamente necessário conselho, mas valentia. Na realidade, os que tinham até ali chegado, trazidos pelo Espírito Santo fosse o que fosse que tivessem. Feito tinham agido de modo excelente, sob a sua inspiração. Ora, entre os seus magnates não se registava assembleia ou empreendimento que alguma vez não tivessem sido em vão. Efectivamente, sem eles, tinha sido tomado o arrabalde, sem eles saberem tinha sido submetida Almada; se, como convinha, se tivessem deixado levar pelo seu entusiasmo, já há muito, diziam, teriam tomado conta da cidade ou teriam tido alguma vantagem maior.

Reflexões

Mas que havemos de dizer de homens que injuriam desta maneira, senão que há uma certa capacidade naturalmente implantada nos maus comportamentos de tal modo que o crime de uns poucos deslustra a inocência de muitos e que, em contrapartida, a escassez dos bons, ainda que queira, não consegue desculpar os crimes de muitos? Todavia, quem não se irritará ao ver que a virtude sincera fica manchada pela alegação de vícios, quando não conseguem discernir o que querem ou deixam de querer nem o que lhes agrada nas coisas boas ou o que lhes desagrada nas coisas más? Se vêem uma pessoa humilde, chamam-lhe abjecto; se anda de cabeça levantada, pensam que é por soberba; se é menos instruído, consideram que deve ser posto a ridículo devido à sua falta de conhecimentos; se tem alguma ciência, dizem-no inchado por causa do saber; se é severo, têm-lhe horror porque é cruel; se é indulgente, culpam-no por facilitar; se é simples, desprezam-no como se fosse estúpido; se é áspero, evitam-no como a um malicioso; se é diligente, consideram-no escrupuloso; se é vagaroso, julgam-no negligente; se é perspicaz, têm-no por ambicioso; se é sossegado, chamam-lhe preguiçoso; se é parco, clamam que é avaro; se, quando come, fica saciado, condenam-no por comilão; se faz jejum na comida, falam dele como dissimulado; ao que anda em liberdade condenam-no como criminoso; ao modesto, como homem rude; aos que são pessoas de rigor por causa da austeridade não os estimam; os mansos por afabilidade para eles são pessoas vis. Se alguém vive de outra maneira, ainda que os seus comportamentos sejam sempre de boa qualidade, ao serem espicaçados pelas línguas dos maldizentes, ficarão dependurados de anzóis de duas pontas.

Apaziguamento de tensões entre cruzados

O alvoroço deste tumulto é, pois, dirigido contra Hervey de Glanville, que tinha entregue os reféns ao rei e não a eles e tinha bem assim deixado alguns deles fora da atribuição dos dinheiros da cidade, como se eles fossem de outra raça. Mais de quatrocentos correm para fora dos acampamentos e, de armas na mão, procuram-no por todo o lado, ainda mesmo onde sabem que ele não está, clamando em altas vozes: "fora o ímpio, castigue-se o traidor"!
Tendo tomado conhecimento disto, quando estávamos no acampamento do rei, alguns dos nossos anciãos tomaram a iniciativa de lhes ir ao encontro para reprimirem estes assomos de violência. Logo que eles voltaram, reunimo-nos para respondermos ao que anteriormente estava em causa.
Os reféns, por sua parte, tendo-se dado conta de que os nossos tinham entrado em disputas, dissimulam e intentam retractar-se das palavras da primeira proposta. Ao rei e aos seus homens diziam que pretendiam guardar a sua palavra e manter todas as promessas que anteriormente nos tinham afiançado; aos nossos, nem com a morte algo fariam, pois tinham-se apercebido que éramos corruptos, desleais, sem piedade, cruéis, que nem os nossos próprios senhores poupávamos. Tudo isto deixou os nossos prostrados na maior vergonha.
De novo se voltou a conselho com o rei; passou-se nisso a maior parte do dia e ao fim anuíram os reféns no seguinte: o alcaide, com um genro seu, ficaria de posse de todos os seus bens em liberdade e todo e cada um dos homens da cidade ficaria com o que tinham para comer e a cidade render-se-ia; de contrário, tentariam a sorte das armas.

Acordo de actuação em concertação com o Rei Português


Os normandos e bem assim os ingleses, para quem os incidentes de guerra tinham sido particularmente gravosos, cansados do longo cerco, diziam que seria razoável aceder e que não seria honesto antepor o dinheiro ou os víveres à honra de tomar a cidade.
Os colonienses e os flamengos, por sua parte, com a sua inata cupidez de deitar a mão, lembravam o desgaste de uma longa viagem e a perda dos seus bens como o longo caminho a percorrer ainda, argumentavam que não era admissível deixar alguma coisa aos inimigos. Chegados a este ponto de discussão, por último, acediam a que todos os haveres e mantimentos do alcaide lhe fossem concedidos, com excepção de uma égua árabe que o Conde de Aerschot (O conde Arnaldo de Aerschot, da Flandres, comandante das forças de cruzados vindos do Império germânico, ou romano como se dizia na época, era sobrinho do duque Godofredo I da Baixa-Lotaríngia), cobiçava para si e se propunha tirar-lhe sob que pretexto fosse. Finalmente, a este respeito, a opinião deles tornou-se inabalável, os nossos suportavam-na com grande indignação.
A noite põe termo à reunião, os reféns mantêm a sua opinião, os francos dispõem-se a qualquer das alternativas, à paz ou à guerra.
No dia seguinte, porém, decidiram tentar a entrada na cidade à força das armas e voltaram todos ao acampamento. Entretanto os colonienses e os flamengos mostram-se indignados, porque parecia que o rei era benevolente para com os reféns, e saem armados dos acampamentos para, à força, roubarem os reféns ao acampamento do rei e se vingarem neles. Gera-se confusão e embate de armas por todo o lado.
Nós, pela nossa parte, estando no meio, entre o rei e os acampamentos dos outros, e esperançados em que se voltasse a parlamentar, fizemos saber ao rei o que se preparava. Porém, o Duque de Flandres e o conde de Aerschot, dando-se conta do motim, armam-se também e a custo travam o levantamento dos seus.

O Rei fica descontente

Apaziguado o motim, seguidamente, vão ter com o rei para uma conciliação em favor dos seus, declarando que estavam completamente fora do acontecido. Garantida que foi por parte deles a sua segurança, o rei, uma vez serenado o ânimo, manda que os seus deponham as armas, assegurando firmemente que deixaria para o dia seguinte o cerco, mas não posporia a sua dignidade à tomada da cidade; antes, pelo contrário, dizia, tudo consideraria de menos se ficasse sem ela; no entanto, que se sentia atingido por aquelas injúrias, e nada mais queria em comum com homens corruptos, sem contenção, e dispostos a tudo.
Tendo a custo serenado finalmente o ânimo, anuiu a que se deliberasse sobre o que pretendia para o dia seguinte. Deliberou-se, pois, que no dia seguinte todos os nossos chefes, de uma parte e de outra, por si e pelos seus, prometessem manter fidelidade ao rei enquanto permanecessem na sua terra.
Confirmado isto por ambas as partes, anuiu-se ao que no dia anterior os mouros tinham pedido relativamente à rendição da cidade. Decidiu-se, pois, entre nós, que 140 homens de armas dos nossos e 160 dos clunienses e flamengos entrariam antes dos outros na cidade e que ocupariam pacificamente a fortaleza do castelo superior, para que os inimigos pudessem trazer os dinheiros e todos os seus haveres, comprovados, sob juramento, perante os nossos; feita assim a recolha, a cidade seria depois inspeccionada pelos nossos: se algo mais do que o alegado fosse encontrado com alguém, o dono em cuja casa fosse achado pagaria com a vida. Deste modo, depois de espoliados, todos seriam mandados em paz para fora da cidade.

Entrada solene na cidade
(25 de Outubro)

Aberta, pois, a porta e dada autorização de entrarem, os colonienses e os flamengos, concebendo um astucioso ardil, solicitam aos nossos que seja deles a honra de serem os primeiros a entrar. Dada, pois, a anuência para tal efeito e chegada a ocasião, fazem entrada mais de duzentos com os que anteriormente haviam sido designados, fora outros que se tinham intrometido pela brecha da muralha que ficava à sua mercê da parte em que se encontravam, enquanto ninguém dos nossos, que não fosse dos designados, presumira proceder à entrada.
À frente, pois, ia o arcebispo e os outros bispos com a bandeira da Cruz do Senhor e a seguir entram os nossos chefes juntamente com o rei e os que para este efeito tinham sido escolhidos.
Oh! Quanta não foi a alegria de todos! Oh! Quanta não foi a honra especial que todos sentiam! Oh! Quantas não foram as lágrimas que afluíam em testemunho de alegria e de piedade, quando todos viram colocar no mais alto da fortaleza o estandarte da Cruz salvífica em sinal de sujeição da cidade, para louvor e glória de Deus e da santíssima Virgem Maria. O arcebispo e os bispos com o clero e todos os outros, não sem lágrimas de júbilo, cantavam o Te Deum laudamus com o Asperges me e orações de devoção.

Entretanto, o Rei dá a volta a pé pelas muralhas do castelo cimeiro.
(Desmandos de alguns cruzados)

Os colonienses e os flamengos, ao lobrigarem na cidade tantas oportunidades de se saciarem não respeitam qualquer observância de juramento ou de palavra dada. Correm por aqui e por ali, saqueiam, arrombam portas, espreitam pelos interiores de qualquer casa, assustam os habitantes e, contra o direito divino e humano, infligem-lhes injúrias, dispersam vasilhames e roupas, actuam sem respeito contra as donzelas, põem no mesmo prato da balança o lícito e o ilícito, às escondidas tudo subtraem, mesmo o que deveria ficar em comum para todos. Ao bispo da cidade, um ancião de muitos anos, cortam-lhe o pescoço, contra o direito divino e humano. Aprisionam o próprio alcaide da cidade, depois de lhe terem tirado tudo de casa. A pequena égua, de que falámos acima, o próprio conde de Aerschot a arrebatou com as suas mãos. Tendo ele sido intimado pelo rei e por todos os nossos a entregá-la, reteve-a com tanta obstinação que o próprio alcaide disse que a sua pequena égua ao urinar sangue tinha perdido um potro, exprimindo de maneira astuta a fealdade de uma acção obscena.

O êxodo dos habitantes

Os normandos e os ingleses, que tinham em máximo apreço a palavra dada e o respeito divino, observavam onde poderia levar uma actuação destas e permaneciam quietos no lugar que lhes fora determinado, preferindo manter as mãos limpas de qualquer roubo a violarem os princípios de solidariedade firmada por um juramento de fidelidade.
A atitude tomada deixou grandemente cobertos de opróbrio o Conde de Aerschot e Cristiano com os seus nobres, cuja cupidez ficava à vista de todos, sem equívocos, depois de terem com toda a evidência atirado para trás das costas o seu juramento.
No entanto, voltando finalmente a si, com pedidos insistentes, suplicaram junto dos nossos que fossem os nossos, juntamente com os seus, a congregar as restantes partes da cidade para uma partilha pacífica, de tal forma que, depois de aceites as respectivas partilhas, debatessem em paz as injúrias e as subtracções de todos, estando eles dispostos a emendarem o que indevidamente se tinham antecipado a retirar.
Espoliados, pois, os inimigos na cidade, foram vistos sair, sem despegar, pelas três portas, desde o início da manhã de sábado até à quarta-feira subsequente, em tão grande multidão de gente que era como se nela tivesse confluído a Espanha inteira.
Verificou-se seguidamente um prodígio que causou muita admiração: os alimentos dos inimigos que antes da conquista da cidade e ao longo de quinze dias se haviam revelado intragáveis por cheiro insuportável, pudemos saboreá-los pouco depois, já que tanto para nós como para eles se apresentavam bons e agradáveis.
Saqueada, pois, a cidade, foram encontradas em fossas cerca de oito mil cargas de trigo e de cevada, enquanto as de azeite eram de uns doze mil sextários.
Relativamente às observâncias da sua religião, logo depois vimos com os olhos o que acima tínhamos referido. Efectivamente, no seu templo, que se levanta em sete ordens de colunas com outras tantas abóbadas, foram encontrados uns duzentos cadáveres dos que ali tinham morrido, fora mais oitocentos doentes que aí haviam ficado no meio daquela imundície e na sua fealdade.

Restauração da diocese de Lisboa, com novo Bispo
(Purificação da mesquita)
(1 de Novembro)

Tomada, pois, a cidade, após dezassete semanas de cerco, os habitantes de Sintra fizeram oferta da guarnição do seu castelo e entregaram-se ao rei. Por sua vez, o castelo de Palmela foi abandonado pela sua guarnição e foi tomado pelo rei já sem ninguém. Rendidas, pois, todas as fortalezas que nas redondezas estavam ligadas à cidade, foi celebrado o nome dos francos por todas as terras de Espanha e abateu-se o terror sobre os mouros aos quais ia chegando a notícia destes acontecimentos.
Seguidamente, foi eleito para a sede episcopal um dos nossos, Gilberto de Hastings, tendo dado o seu assentimento para a eleição o rei, o arcebispo, os bispos, o clero e todos os leigos. No dia em que se celebrava a Festa de Todos os Santos, em louvor e honra do nome de Cristo e da Sua Santíssima Mãe, foi feita a purificação do templo pelo arcebispo e por mais quatro bispos sufragâneos e restaurada a diocese como sede do episcopado, com os seguintes castelos e terras: para além do Tejo, o castelo de Alcácer, o castelo de Palmela, a zona de Almada; aquém do Tejo, o castelo de Sintra, o castelo de Santarém, o castelo de Leiria. Os limites vão do castelo de Alcácer até ao castelo de Leiria e do mar, a ocidente, até à cidade de Évora. 

A situação miserável dos mouros


Sobreveio seguidamente uma peste tão grande entre os mouros que pelas vastidões dos ermos, pelas vinhas e pelas aldeias e praças, bem como pelas casas em ruínas jaziam inúmeros milhares de cadáveres à mercê das feras e das aves; os que ainda tinham vida, semelhantes a fantasmas que andassem errantes à face da terra, abraçavam-se ao sinal da cruz e beijavam-no, confessavam que Maria, cheia de bondade, é a bem-aventurada Mãe de Deus, de tal modo que em tudo o que fazem ou dizem, mesmo nos momentos extremos, misturam invocações a Maria boa, boa Maria e lhe dirigem apelos angustiados.


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