As
Cortes de Coimbra
Auto
da eleição do Rei Dom João I, de 6 de Abril de 1385
"Entendendo
nós que os sobreditos reinos de Portugal e Algarve são vagos, livres e
devolutos à nossa disposição e que se acham sem rei, que sempre tiveram, e que
haja de defendê-los, e conservá-los em direito, e justiça, (...) e que sendo
nós em tal necessidade nos era preciso nomear, eleger, e receber alguma pessoa
benemérita que nos governe e defenda os ditos Reinos."
Como lembra José Adelino Maltez, a "revolução que abriu o século XV português, gerou, em primeiro lugar, aquilo que Marcelo Caetano definia como uma espécie de 'esboço de constituição política', como pode detectar-se nos capítulos gerais e especiais das Cortes de 1385 que o Rei, ao despachar em Conselho, contratualizou”. Na base de todo o processo estava a própria eleição do Rei, dado que as Cortes assumiam o princípio da origem popular do poder. Com efeito, as Cortes declararam vaga a coroa, ficando os Reinos de Portugal e do Algarve “sem embargo nenhum à nossa disposição e que sem Rei como sempre acostumaram a haver”, pelo que se tornava necessário “nomear, escolher, tomar e receber alguma pessoa digna e tal qual cumpria para os ditos reinos reger, governar, defender”. O mestre de Avis “consentiu a esta eleição” tomando “nome, dignidade, e honra de Rei e encargo dos ditos regimento e defensão ca para ele os tinha Deus guardados”.
Em nome de nosso
Senhor, Amém. Para eterna memória do negócio abaixo, saibam todos os que virem
a presente escritura, como nós Braço dos Eclesiásticos (…), Braço da Nobreza
(…), Braço Popular.
Pedro Afonso Sardinha,
etc. e os mais procuradores das vilas, concelhos, comunidades, cidades,
castelos, vilas e outros lugares insignes dos Reinos de Portugal e Algarve, que
estão em sua inteira liberdade, com suficientes procurações e poderes dessas
mesmas vilas e cidades para estas coisas, que se seguem, e congregados nós na
cidade de Coimbra no palácio real para haver de tratar, concordar e fazer
aquilo, que é, e seria conveniente, e necessário para bom governo, e defesa
nossa e dos sobreditos reinos, especialmente em feitos de guerra, que
actualmente nos movem os cismáticos:
E primeiro de tudo
vendo nós que os sobreditos Reinos, o seu governo, e defesa, depois da morte do
Rei Dom Fernando último possuidor deles, ficaram vagos e desamparados, sem Rei,
nem Governador, nem qualquer outro defensor legítimo, que os possa, e deva
possuir por direito hereditário, porquanto suposto que entre nós alguns
duvidaram se com efeito estavam verdadeiramente vagos os ditos Reinos, ou se
havia alguma pessoa, que de direito devesse suceder, e entrar na posse deles?
E isto, porque diziam
alguns que Dona Beatriz, mulher de João Henriques, que se chama Rei de Castela,
era filha do sobredito Rei Dom Fernando último possuidor dos ditos Reinos, e
como tal devia herdá-los, e no caso, que não houvesse a dita herdeira Dona
Beatriz, havia os Infantes Dom João e Dom Dinis, que segundo diziam muitos,
eram filhos legítimos de Dom Pedro, de clara memória, Rei dos ditos Reinos,
irmãos da parte do pai do Rei Dom Fernando, e havendo os tais Infantes, a não
se podia dizer que não havia herdeiros para o Reino, nem que a Coroa estava
vaga, ao que se acrescentava que não podendo herdar os ditos Infantes, poderia
entrar na herança o sobredito João Henriques, por ser primo co-irmão do Rei Dom
Fernando, filho de sua tia irmã de sua mãe.
O que tudo suposto, nós
os prelados, fidalgos, procuradores acima nomeados examinando a verdade,
achámos que a dita Dona Beatriz era filha de Dona Leonor Teles, a qual ao tempo
que o Rei Dom Fernando a tomou era legitimamente casada com João Lourenço da
Cunha, e casados viveram como marido, e mulher por muito tempo, o que era
notório ao dito Rei Dom Fernando, e a todo o Reino, e por este impedimento não
podia o Dom Fernando haver da tal Dona Leonor filhos legítimos que pudessem
suceder na herança do Reino, nem possuí-lo por direito hereditário, e mais
forçosamente por ser também parente por afinidade da cópula, que ela houve com
o dito João Lourenço da Cunha, parente do dito Rei Dom Fernando em grau
proibido.
Sobre isto vendo nós
mais como a dita Dona Beatriz, tendo razão de saber em como nosso senhor o Papa
Urbano VI é verdadeiro pontífice, ela de sua livre vontade casou com efeito com
o sobredito João Henriques primo co-irmão de seu pai o Rei Dom Fernando sem
haver dispensa do dito Urbano, e usou de uma chamada dispensa de Roberto em
outro tempo cardeal, antipapa condenado, e viveu desse tempo até o presente,
tendo ao dito Roberto por verdadeiro papa, e por boa a sua dispensa; o que tudo
é verdadeiro, claro, e notório em todo Portugal e Algarves, e também nos reinos
de Leão e Castela.
E por esta causa, e
crimes de incesto por coabitar com homem seu parente, e de cismática por
obedecer ao antipapa, a dita Dona Beatriz perdeu o direito, se algum tinha, à
herança destes reinos, tanto pelo que dispõem o direito comum, como também em
virtude das sentenças e processos apostólicos proferidos contra João Henriques
e todos aqueles, que o seguem no erro do cisma, qual é a dita Dona Beatriz: e
também vendo nós que a referida Dona Beatriz por si e os seus, entrou, e
invadiu os sobreditos Reinos de Portugal, e do Algarve, contrariando ao
contrato de pazes entre ela, e o dito João Henriques com o Rei Dom Fernando, e
os povos dos ditos reinos e não guardando aos mesmos povos o estabelecido no
tal contrato acerca do governo do reino:
Além do referido, vendo
nós mais, que o sobredito Rei Dom Fernando foi filho do Rei Dom Pedro, e da Infanta
Dona Constança, que contraíram o seu matrimónio em tempo que era viva a infanta
D. Branca, com a qual estava casado o rei por palavras de presente, o que um e
outro bem sabiam, e por causa desse primeiro casamento com a dita D. Branca, o
rei D. Fernando não podia nascer filho legítimo do dito rei D. Pedro, e
consequentemente nem a referida D. Beatriz, dado que fosse filha legítima o que
não é, podia ser herdeira destes Reinos pelo defeito do nascimento de seu pai.
E quanto aos dois
Infantes acima nomeados, vendo Nós que nasceram de D. Inês de Castro filha de
D. Pedro de Castro, primo co-irmão do rei D. Pedro seu pai, e em tempo, em que
o dito rei D. Pedro era casado com a sobredita D. Branca, e por esses dois
impedimentos, que não eram filhos legítimos, nem o podiam ser, nem herdar a
Coroa destes reinos, repugnando a uma, e outra coisa, a legitimidade do seu
nascimento, e à sucessão hereditária o dito acima primeiro casamento com D.
Branca, e ainda no caso, que não houvera precedido o tal casamento com D.
Branca, não se mostrava, que o rei D. Pedro recebesse por sua mulher a mãe dos
infantes, D. Inês de Castro, e dado que a recebesse, não foram dispensados no
impedimento de consanguinidade, que tinham entre si, nem em outro impedimento
de compadrio, que também haviam, e por essa falta de dispensa não foi válido o
seu matrimónio, nem legítimos os Infantes nascidos dele; com mais outras
razões, que também os incapacitam para poderem herdar a Coroa:
E vendo nós mais, que
sendo, como é, cismático o acima João Henriques, e por tal condenado por nosso
senhor o papa Urbano, não pode possuir a dignidade Real, e juntamente por ser o
seu parentesco com o rei D. Fernando pela via das mães, a qual linha feminina
não é de consideração em Espanha para herança dos reinos.
E suposto de tudo o
referido nós os prelados acima, cavaleiros, fidalgos e procuradores fôssemos
certos por relação de pessoas fidedignas, e pelo que nós mesmos vimos, e
ouvimos, contudo para se tirar de todo qualquer dúvida, rogámos, e demos nossa
comissão aos reverendos em Cristo, padres e senhores D. João, bispo do Porto, e
D. João, bispo de Évora, para que de tudo o acima fizessem inquirição sumária;
perguntando pessoas de verdade, que tivessem razão de o saber, e tirado por
eles com um Tabelião o dito Sumário, se achou ser tudo verdadeiro, segundo consta
da escritura da inquirição.
Portanto, entendendo
nós que os sobreditos reinos de Portugal e Algarve são vagos, livres e
devolutos à nossa disposição e que se acham sem rei, que sempre tiveram, e que
haja de defendê-los, e conserva-los em direito, e justiça, e fazer tudo o que
for necessário e útil para conservação deles, e nossa, para que não venhamos a
cair em sujeição, nem poder dos danados cismáticos acima referidos, os quais
trabalham cada dia, e trabalharão quanto podem para nosso dano e destruição, e
da santa Igreja Romana, e de nosso senhor o papa Urbano, de quem são inimigos
capitais, e também atendendo, que por nós mesmos não poderíamos defender os
ditos reinos, e que sendo nós em tal necessidade nos era preciso nomear,
eleger, e receber alguma pessoa benemérita que nos governe, e defenda os ditos
Reinos; havendo primeiro de tudo nosso conselho, e deliberação concordante
entre todos, e estando certos pelo que temos visto até o presente, que D. João,
mestre da Ordem de Avis, Regedor dos mesmos reinos, e filho do sobredito rei D.
Pedro, é valoroso, ilustre, bom, e honesto, e para este oficio de reinar muito
digno, pertencente e útil, e que trabalhou, e trabalha pela defesa destes
reinos até merecer ser levantado a esta honra, estado, e dignidade Real. Por
tudo, e por ser também do serviço de Deus, grande utilidade, e honra nossa, e
da santa Igreja Romana, e para que não sejamos oprimidos de nossos inimigos e
santa Igreja não venha a cair nas mãos dos cismáticos:
Nós todos concordes em
um amor, deliberação, desejo, conselho e obra; em nome da santa, e indivisa
Trindade, Pai, e Filho e Espírito Santo, um só Deus verdadeiro, nomeamos,
elegemos, tomamos, levantamos, e recebemos no melhor, e mais abundante modo,
que em direito podemos, ao sobredito D. João, mestre de Avis, como nosso rei e
senhor e dos ditos reinos de Portugal e Algarve, e lhe concedemos que esse se
chame rei, e que faça, e possa fazer, e mandar sobre o governo, e defesa nossa,
e dos mesmos Reinos todas aquelas coisas, e cada uma delas, que tocam ao ofício
de rei e que fizeram, puderam, mandaram e costumaram fazer no tal ofício os
reis dos ditos reinos, que até aqui foram, e prometemos, e jurámos e fizemos
homenagem que seremos bem obedientes ao dito novo rei D. João; e não iremos
contra, nem diremos, nem consentiremos, que outrem o faça.
E tomado este acordo
logo Nós os sobreditos prelados, cavaleiros, fidalgos e procuradores com grande
instância requeremos ao dito rei D. João quisesse por sua nobreza aceitar, e
consentir nessa nossa nomeação e eleição, e tomar em si o nome, honra, e
dignidade Real, o encargo, e defesa dos sobreditos reinos, pois se mostrava que
para ele os guardou Deus; e que era o mesmo Deus quem ordenou estas coisas por
sua inefável e soberana providência.
O qual rei D. João,
ouvindo-nos, se admirou muito e nos respondeu com grande temor e tremor, que
dava por tudo as devidas graças em primeiro lugar a Deus, porém que nós
sabíamos e também ele e sentia de si, que não era, nem podia ser tão capaz, nem
suficiente, que pudesse receber, nem sustentar em si um ofício tão pesado, qual
era este do nome, dignidade, e honra Real, especialmente sendo ele, como era, e
nós bem víamos, de nascimento não legítimo, e impossibilitado para calar por
razão da sua profissão feita na Ordem de Aviz, as quais duas circunstâncias o
impediam para ter em si e receber a honra, e dignidade Real a que o havíamos
sublimado e elegido, e que por isso não podia consentir na tal eleição; mas que
sem embargo de não aceitar, ele trabalharia quanto pudesse até morte no
governo, e defesa nossa, e destes reinos; e que disto não duvidássemos.
Porém nós os prelados,
cavaleiros, fidalgos e procuradores, havendo recebido da sua resposta grande
desconsolação e tendo por sem dúvida, que se o dito rei D. João não tomasse,
nem aceitasse o nome, dignidade, honra, e estado Real, não cuidaria no governo,
e defesa destes Reinos com tanta aplicação, quanto nos é necessária, e aos
ditos reinos; e que podia seguir-se daqui alienarem-se os afectos, e
enfraquecerem os corações do povo, que nem tratariam de se defender, nem da
conservação do reino, e seriam expostos os ditos reinos a uma grande ruína, e a
virem em poder de nossos inimigos, os cismáticos e rebeldes à santa Igreja
Romana, e por tanto, que nós estávamos firmes no nosso propósito; e que dele
não fazíamos tenção de nos apartar em consideração das tão grandes necessidades
e inevitáveis, que ocorriam, e da utilidade, guarda e honra dos ditos Reinos;
nem tão pouco queríamos ceder da nossa vontade, até não provermos o Reino, e a
nós deste remédio único de termos ao dito D. João por nosso rei e senhor; pelo
qual intentávamos, e nos parecia termos feito o que nos toca, e aplicado todos
os mais remédios necessários para evitarmos aqueles perigos, e danos, a que nos
quer reduzir e com que nos ameaça o sobredito João Henriques, do qual muito
desejamos defendermo-nos, e resistir-lhe, e a todo seu poder; e também para que
exaltemos mais a honra de nosso senhor o papa Urbano VI, verdadeiro pontífice,
como fizemos até aqui, e determinamos fazer até morte por todas as quais razões
rogávamos, pedíamos e requeríamos com grande eficácia, altas vozes, uma e
muitas vezes ao dito novo rei D. João, que não quisesse desconsolar-nos; e que
fosse servido aceitar, tomar, ter e usar daqui para diante do nome, dignidade e
honra de Rei, pois sabia muito bem e via claramente quanto era necessário e
conveniente a todos nós e aos ditos Reinos; e os grandes danos, e perigos, que
se seguiriam se não quisesse convir com os nossos desejos e compadecer-se das nossas
necessidades e destes reinos, oferecendo-nos os prelados, cavaleiros, fidalgos
e procuradores em virtude dos poderes, que temos, a servir, e ajudar ao dito
rei D. João com os nossos braços, e fazendas, e a que ele possa suportar, e
sustentar os encargos, gastos, e serviços, que lhe seriam necessário fazer em
conservar e manter o seu estado e dignidade Real, e também a fazer a guerra
daqui para diante com ajuda do senhor Deus; e para que o não retardassem a
resolver-se os impedimentos, que referiu, acrescentámos que nós mandaríamos
nossos embaixadores ao senhor papa Urbano VI, em quem temos grande confiança, e
devoção, e lhe pediríamos aquela graça, e dispensa, que fosse necessária para
inteira firmeza do estado Real dele rei:
O qual também
atendendo, e considerando a suma necessidade destes reinos, e vendo as boas
vontades e os presentes muito louváveis nossos oferecimentos, e que esta era a
vontade de Deus, mostrada no unânime consenso de nós todos, que com tanta
eficácia rogávamos e instávamos a ele Rei; não obstante lhe era coisa áspera
aceitar pelas razões, e causas sobreditas, ultimamente respondeu, que pois o
púnhamos em termos, que não havia lugar de poder escusar-se, queria consentir
no que lhe pedíamos, e fazer-nos a vontade em quanto a ele era possível; pelo
que aceitou a eleição feita na sua pessoa, e se ofereceu para o encargo do
governo, e defesa destes reinos de Portugal e Algarve, com tudo o mais, que lhe
oferecíamos, não em desprezo de alguém, e sempre salva a honra, reverência, e
autoridade do sumo pontífice e senhor nosso papa e da santa Igreja Romana; aos
quais santo padre e santa Igreja e também ao próprio rei D. João, e a nós os
sobreditos queremos que nenhum prejuízo se siga por estas coisas feitas por nós
obrigados de grande necessidade e assim o protestamos todos conformes.
Em fé do que rogámos e
mandámos aos infra-escritos notários públicos, que foram a tudo presentes, que
fizessem um e muitos instrumentos para nós e o sobredito rei nosso senhor, da
sobredita eleição, e nomeação, e de tudo mais acima referido: e para maior
firmeza, Nós os bispos e prelados acima nomeados nos assinámos aqui e selámos
de nossos selos a este instrumento.
Feito, e publicado na
Cidade de Coimbra no Palácio Real aos seis dias do mês de Abril de 1385.
Testemunhas que
presentes foram, os honrados seis barões - Pêro Gonçalves, Chantre, João
Alegre, tesoureiro, Pedro Annes, Martim Fernandes e Estêvão Pires, cónegos da
sé de Coimbra, João Peres Vantre e Francisco Annes, cónego da sé de Viseu, frei
Lourenço Lampreia Lanzarote, escrivão do Rei, Gonçalo Peres, escrivão da
Chancelaria, frei Domingos de Aveiro, Álvaro Esteves, vigário de São João de
Abrantes, notário apostólico, e João Afonso de Coimbra, tabelião geral nos
ditos reinos, e outros.
E eu Estêvão Domingues,
público tabelião nos ditos reinos, que a esta com as ditas testemunhas e
tabeliães presente fui e este instrumento por minha mão própria escrevi e aqui
meu sinal fiz que tal é. O qual D. Lourenço,
arcebispo de Braga, foi presente ás coisas sobreditas por Domingos Peres
Daseiras, seu procurador, especialmente para isto constituído.
Eu Estêvão Domingues,
tabelião sobredito, isto escrevi em testemunho de verdade, etc.
Eu Diogo Peres tabelião
geral por o dito senhor rei na sua corte, e em todos os ditos reinos de
Portugal e do Algarve, a estas coisas acima escritas como acima escritos
tabeliães e testemunhas juntamente quando se faziam, presente fui e meu sinal
aqui fiz que tal é Diogo Peres, etc.
Eu Álvaro Esteves,
vigário perpétuo da igreja de S. João de Abrantes, autoridade Apostólica,
público notário e geral e procurador acima escrito do Conselho de Abrantes a
estas coisas acima escritas, especialmente chamado, e a cada uma delas, quando
assim foram feitas e filmadas, e com as acima ditas testemunhas juntamente
presente fui, e mim aqui em este instrumento subscrevi e nele me sinal fiz, que
tal é. Álvaro Esteves, etc.
Eu João Afonso de
Coimbra, tabelião geral pela autoridade Real nos reinos de Portugal e do
Algarve, que as coisas acima escritas ensombra com os sobreditos notários
públicos e testemunhas presente fui, e aqui meu nome subscrevi e meu sinal fiz
que tal é, Santa Maria intercede por mim João Afonso.
E eu Álvaro Esteves,
vigário perpétuo da igreja de São João de Abrantes, autoridade apostólica,
público notário geral e procurador acima escrito do Conselho de Abrantes as
coisas acima escritas especialmente chamado, e a cada uma delas quando assim
foram feitas, e firmadas, e com as ditas testemunhas juntamente presente fui e
me aqui neste instrumento subscrevi, e em ele meu sinal fiz, que tal é.
E eu João Afonso de
Coimbra, tabelião geral pela autoridade Real nos reinos de Portugal e do
Algarve, que as coisas acima escritas em Coimbra com os sobreditos naturais
públicos e testemunhas presente fui, e aqui meu nome subscrevi, e meu sinal
fiz, que tal e é Santa Maria intercede por mim.
Cortes
de Évora de 1481
"É pois a
formosura, e fortaleza do Rei e o seu povo muito o deve piedosamente tratar e
verdadeiramente amar e defender com Justiça pela qual cousa se lhe seguira
grande merecimento ante deus e louvor entre os homens"
Como
afirmou a Professora Manuel Mendonça: "quando
[D. João II], após a morte de Afonso V, foi definitivamente aclamado como Rei,
uma das [suas] primeiras preocupações foi reunir Cortes. Convocou-as para
Évora, através da mesma carta em que anunciou o saimento de Afonso V. Poderia
esta pressa significar que o novo rei tinha urgência em se vingar dos Senhores,
concretizando em 1481 o plano que não conseguira fazer aceitar em 1477 [nas
Cortes de Santarém]? Teriam as cortes apenas como intenção proporcionar um
espaço em que os Grandes do reino pudessem fazer os seus juramentos de
fidelidade, como era costume no início dos reinados, ou visariam elas outros
aspectos indefinidos?
[Há
autores que consideram que as Cortes] convocadas para Évora em 1481 tinham
objectivos bem diferentes daqueles que se apontavam na convocatória, isto é,
prestar juramento e obediência ao novo Rei, como era tradicional. Mas que alguns dos objectivos escondidos coincidiam
com aqueles que em 1477, quando Regente, pretendera já atingir. Mas a verdade é
que "a experiência é mestra da
vida" e Dom João II "não era
propriamente uma figura política inexperiente"; por isso mesmo não
arriscou repetir o programa que então tentara concretizar. Embora com fins
idênticos, mas agora mais fáceis de atingir, o Rei acentuou um outro aspecto:
manifestou que, antes de mais, pretendia que estas cortes fossem a afirmação da
sua autoridade incontestável.
Dom João II chegara ao poder com o desejo de remediar os abusos que seu pai
cometera em favor da classe senhorial, mas não podia fazer tudo de uma vez.
Sabia que os nobres estavam desconfiados com ele e previa que iria ter muitas
oposições. Estas cortes foram definitivas para a sua acção futura;
permitiram-lhe confirmar a sua visão do reino e subscreveram o plano que já
tinha traçado. Por isso aquele que viria a ser apelidado de Príncipe Perfeito,
agiu cuidadosamente: deu imediato remédio às situações de maior opressão
(capítulos deferidos). Mas não investiu frontalmente contra a nobreza; esperou.
Sabia, pela própria experiência, que os grandes, descontentes, haviam de lhe
dar motivos para agir e por isso não os afrontou com decisões que os prejudicassem.
Para começar bastava-lhe o compromisso de obediência e reconhecimento da sua
autoridade, que todos traduziram em acto público e viriam a aceitar, com a
apresentação de privilégios para confirmação. Por isso apenas neste último
aspecto - certamente o mais melindroso, mas mais urgente respondeu de imediato
ao povo: prometeu, porque não podia ignorar a legitimidade do pedido, que
mandaria ver cuidadosamente todos os privilégios antes de os confirmar.
Contudo, aparte esta benevolente decisão não agiu com violência na sequência de
outras queixas pontuais. Os grandes do Reino não podiam, pois, acusá-lo de
nestas cortes ter dado a razão toda ao povo. De entre os grandes teve especial
cuidado com os clérigos. Não quis ser, antes de tempo, denunciado para Roma.
Dom João II traçou um projecto de governo que se assemelhava aos dos seus congéneres das vizinhas Espanha e França. O seu plano tinha, no entanto, um ponto preliminar que o particularizava: a necessidade de impor a sua autoridade aos nobres do Reino, num equilíbrio que não permitisse desestabilizar a paz com o reino vizinho com o qual, assinado o Tratado de Alcáçovas-Toledo, se mantinham as Tercerias ponto quente da questão e equilíbrio instável, pela relação que tinha com as grandes famílias de Portugal. Precisava, pois, Dom João II, de resolver um problema de autoridade frente aos grandes, mantendo a paz com Castela. Feito isso, que conseguiu pelo sacrifício das duas principais famílias do Reino, poderia então passar aos outros aspectos da sua reforma. Iria reorganizar a Fazenda e a Justiça reais e, igualmente, interferir na administração geral do reino, fundamentalmente controlando os poderes locais.
“Tudo isso contava conseguir com a ajuda de
homens da sua confiança, oriundos das diversas camadas sociais."
Cortes
de Évora de 1481-1482
(Excertos)
Dom João por graça de deus Rei de Portugal e dos Algarves de aquém e de além mar em África et cetera.
A quantos estas nossas novas determinações de repostas dos presentes capítulos virem fazemos saber que comsyramdo nosso bem comum destes reinos em começo de nosso regimento que da mão de deus omnipotente Recebemos: E posto que segundo dito de nosso Remydor jesus cristo não viemos para quebrantar as leis nem o que devemos mas antes para o mui inteiramente cumprir e guardar para segunda a variedade e sucessos dos tempos, comum aos Reis e príncipes de santa e virtuosa intenção mudar, limitar, declarar ader e interpretar as constituições e posições humanas pelas causas urgentes de bem e público proveito, por tal que as leis sempre ajam com vigor e força de servir ao fim nunca inudavel e causa final do direito; o qual é refrear e limitar os epítetos desordenados sob justa e direita regra. O que todo se deve fazer com grande madureza e deliberação dos prudentes; porque certo aquilo que se para muitos busca mais ligeiramente se inventa. E por tanto todo bem considerado em começo de nosso reinado que deus nosso Senhor por sua clemência sempre prospere de bem em melhor a seu santo serviço e a conservação e acrescentamentos destes nossos Reinos e dos súbditos e naturais deles; chamamos a estas cortes Gerais as cidades vilas e lugares dos ditos nossos reinos para nós com deliberado conselho apontarem aquelas cousas que sentissem por serviço de deus e nosso e Reformação do bem destes reinos: as quais em nossa corte foram juntas pelos seus procuradores abastantes em esta nossa cidade de Évora onde as ditas cortes começámos com todos três estados aos doze dias do mês de Novembro do ano passado de mil e quatro centos oitenta e um.
E o que com a graça de deus Respondemos aos apontamentos e consultas dos sobreditos com acordo de certos grandes do nosso conselho e de letrados que para este negócio em especial escolhemos e deputamos é o que se adiante segue.
As quais determinações e Respostas foram findas e acabadas e aos ditos procuradores publicadas Em a vila de Viana dapar dallvito aos (ita) dias do mês de Abril do ano do nascimento de nosso Senhor de mil e quatrocentos e oitenta e dois anos.
Mui alto e mui excelente príncipe e muito poderoso Rei nosso Senhor.
Assim como toda a comunidade dos sujeitos e singularmente cada um do povo deve obedecer e servir com amor e temor Reverência ao príncipe segundo doutrina do apóstolo que nos encomenda obediência aos Reis pela sua grande excelência: assim é necessário que ele a todos deva defesa graciosa bem feitoria e amor paternal.
É pois a formosura, e fortaleza do Rei e o seu povo muito o deve piedosamente tratar e verdadeiramente amar e defender com Justiça pela qual cousa se lhe seguira grande merecimento ante deus e louvor entre os homens podendo dizer como bem aventurado evangelista em pessoa de nosso salvador Jesus Cristo Senhor deus eu não perdi alguns daqueles que me encomendaste:
E portanto dizem vossos leais e verdadeiros povos que per seus procuradores Representam as cidades e vilas de vossos Reinos por vosso mandado chamados e presentes em estas vossas cortes que conhecendo vossas mui grandes virtudes de que deus dotou e o muito singular amor que lhes houve segundo viram na santíssima proposição feita em presença de vossa Real majestade aos três estados sobre o grande desejo que vossa alteza tem de justiça e boa governança e regimento do bem comum segundo mais perfeitamente foram informados por escrito de vossa Senhoria e bem guardado por eles o que se em ele contem de que lhes destes fundamento para que seus apontamentos são necessários para serviço de deus e vosso e bem comum eles como vossos naturais muito leais e verdadeiros vassalos e amadores de vosso serviço segundo o virtuoso e antigo costume daqueles de que procedem.
E isso mesmo aquele que se deles claramente tem visto dão muitos louvores a deus por lhes dar príncipe defensor esforçado e de grande entender amador da liberdade e proveito da República: pelo qual continuamente em suas orações com ardente devoção vossa pessoa e estado real e actos por devida Rezam a deus e a seus santos sempre Recomendaram:
Muito poderoso Senhor muitas mais cousas apontaram e de muitas maneiras mas não sabem a que mãos cairão não queriam cair em erro; deixam o carrego a vós que com os olhos da alma vejais o que adiante apontam por serviço de deus e vosso.
E a nosso Senhor deus que emende o que for para corrigir Amen.
Mui alto e mui excelente príncipe e muito poderoso Rei nosso Senhor.
Das Jurisdições
Acham vossos povos os não haver aqui cousa nova para dizer que já não fosse dita por vezes e muitas ao Senhor Rei vosso padre que deus tem querendo conselho e Remédio de seus povos para regimento da Justiça e governança do reino que por muitas vezes lhe foi apontado a maneira que sua alteza devia ter e faleceu a execução delas até agora que vossa real Senhoria nos foi dado por Rei e Senhor de que esperamos a execução dela.
E pelo satisfazer ao mandado de vossa alteza dizemos que a Justiça destes vossos Reinos anos há e muitos que é desamparada de seu principal Senhor para cuja causa havemos tão alheia que adur podemos achar meeo para que posa tornar ao Real lugar donde primeiro saiu sem ajuda de vossa alteza que soes principal Remédio seu: Quantas Vilas grandes e outras meãs e assim outros muitos lugares foram e saro desmembrados de vossa real coroa que mais dignos eram e saro de liberdades e honras que serem dados a muitos Senhores e fidalgos de que saro tratados fora de toda humanidade com tão ásperas cruezas que é piedosa cousa de ouvir quanto mais sentir tanta parte quanta cada um per si sente do que cremos vossa alteza ser em conhecimento assa: pedem-vos vós os povos de muita mercê que veja vossa Senhoria as doações e títulos porque se diz vossas jurisdições serem desmembradas de vossa Real coroa e achando-se que alguns as têm contra direito as recolhais a vós.
E se por direito lhes não podem ser tiradas e delas mal usarão Isso mesmo as tornes logo a vós e os que delas até aqui bem usaram e usarem em suas vidas as tenham por lhes fazerdes mercê e per sua morte se tornem a coroa real a que pertencem.
Resposta
Responde EIRey nosso Senhor que tem em serviço a seus povos o que lhe apontam e Requerem acerca das vilas e lugares e outras cousas tocantes à coroa destes reinos que dela saro emalheadas e apartadas pelos Reis seus antecessores. E que por sua tenção ser como é tendo e obrigado entender e prover acerca do que redunda e pertence ao bem e proveito comum destes reinos e da real coroa deles ele ordenou certas pessoas que houvessem de prover todas as doações e privilégios até agora dados e outorgados e em elo continuamente se negoceia. E principalmente espera de prover sobre aqueles que de si e das jurisdições que têm em suas terras mal usam, e fazem o que não devem. E sobre todo terá aquela maneira que sentir que é mais serviço de deus e seu e bem de Justiça e destes Reinos e de seu povo e de sua coroa.
Dos Corregedores que entrem nas terras dos fidalgos
E logo ora por serviço de deus e seu e bem de Justiça determina e manda que os seus corregedores das comarcas de seus Reinos entrem nas terras dos que Jurisdições tiverem a fazer correcção inteiramente em elas porem nas terras cidades vilas e lugares de alguns grandes os quais ele depois declarara determina quer que vão desembargadores entendidos e letrados para saberem como se em ela faz direito e Justiça e administrarem e afazerem todo o que seja bem de Justiça, segundo por seus Regimentos e poderes lhe será apontado e mandado por lhe parecer assim cousa mui comunicável saber todo e prover emendar e corrigir como a seu carrego que lhe por deus é dado em a terra pertence por tal que seus súbditos sejam Remediados de Justiça. E se faça em todo o que se direitamente fazer deve.
Capítulo que fala como se não cumprem os mandados delRey sem primeiro serem mostrados aos Senhores
E para vossa alteza ver como até aqui alguns usaram das Jurisdições que têm primeiramente em cumprirem e guardarem os mandados vossos se pode conhecer porque em suas terras têm mandado aos Juizes e oficiais e a seus ouvidores que não cumpram mandados vossos até lhes não serem notificados para eles mandarem o que se faça. E se lhes bem não vem mandam que se não cumpram. E se o que Recado leva pede estormento como lhe não comprem vosso mandado mandam aos tabaliães por serem seus que lho não dêem cuja defesa os ditos tabaliães não ousam passar. E se os Juizes e tabaliães querem obedecer a vossos mandados privam-nos dos ofícios. E apenamnos no que lhe apraz no que se perverte em todo Justiça por andar fora de vossa coroa.
Resposta
Responde EIRey que se guarde o capítulo das cortes de Évora no qual é defeso estreitamente que isto se não faça e posta pena aos grandes e fidalgos que tal mandarem. E mais que desde agora há por nenhuns quaisquer cartas e alvarás que depois do dito capitulo sejam passadas em contrario porque as dantes per o dito capitulo foram Revogadas. E que qualquer tabaliam que não der escritura Sendo Requerido com Resposta ou sem reposta que perca o oficio por esse mesmo feito sem o mais poder haver. E a dada do dito oficio por aquela vez se devolva a elRey e não ao Senhor da terra.
Capítulo dos malfeitores que são amparados e acolhidos pelos fidalgos
Outrossim Senhor os ditos fidalgos prelados e mestres mosteiros ordens e cavaleiros em suas Jurisdições contra toda regra de Justiça e carrego de suas consciências colhem em suas terras vilas e fortalezas ladrões matadores e outros muito malfeitores obrigados à Justiça os quais por eles nem seus juizes são presos nem executados antes são favorecidos criados e amparados em suas maldades e pecados por onde se perverte vossa Justiça.
Resposta
Responde EIRey que há por mal que malfeitores sejam acolhidos e defesos nos lugares que não são coutos ordenados para ele. E porem manda que daqui em diante qualquer Senhor de terra assim eclesiástico como secular que Jurisdição tenha a que notoriamente constar, a saber, por evidência do facto ou por querela ou por carta deprecatoria ou mandado seu ou de seus desembargadores que algum malfeitor está em sua terra que deva ser preso que ele seja theudo ao mandar prender e consentir que se execute Justiça pois que é parte e membro dela. E assim é obrigado de ajudar e conservar. E não o cumprindo e fazendo eles assim manda a suas Justiças que procedam contra eles segundo teor e forma de suas ordenações velhas e nova que acerca dos que acolhem malfeitores falam e bem assim aqueles que Jurisdição não têm serão theudos entregar os malfeitores em o modo e forma em as ditas ordenações comtheudo.
Capítulo dos emprestidos que os fidalgos lançam a seus vassalos et coetera
Outrossim Senhor tem práticas pouco honestas a serviço de deus e vosso em grande dano e opressão do povo que se colIor demprestido geralmente lhe requerem pão vinho dinheiro ouro prata gados e outras muitas cousas as quais nunca mais são pagas. E se lhas Requerem metem-nos em prisões e lhes fazem agravo por desvairadas maneiras. E se lhas emprestar não querem prende-lhes as mulheres e filhos até que lhes dão o que pedem.
Resposta
Responde EIRey que ha por muito mal feito tal coisa fazerem e que manda que se guarde a ordenação que sobre ele é feita em que os tais emprestidos são defesos. E que por causa disto principalmente mandou desembargadores pelas comarcas a tirar as inquirições que são tiradas sobre alunos fidalgos e as manda ver aos ditos desembargadores para aos que achar culpados castigar para que eles hajam castigo e seja aos outros exemplo porque sua vontade é que a todos seja ministrada justiça inteiramente.
Capítulo dos que emçarrom seus moyos
Outrossim Senhor outra maneira de tirania têm porque os moios que de suas Rendas têm os recolhem assim e tomam e comem os dos lauradores no preço que lhes praz. E dos que vêem a terra minguada mandam abrir seus celeiros nos preços que querem e seus não acabam de vender o que fica Repartem-no pelos moradores das terras e ainda que o não queiram lho fazem tomar nos preços que lhes apraz o que é contra reza e justiça.
Resposta
Responde Elrei que há por muito mal feito a nenhumas pessoas que em sua terra hajam de tomar per constrangimento pão em quanto tiverem seus celeiros por nenhum preço nem isso mesmo o lançaram para as casas dos lavradores porque é opressão ao povo. E que manda e defende que nenhum o não faça. E qualquer que o contrário fizer pela primeira pague cem cruzados para sua câmara. E pela segunda seja suspenso de qualquer e Jurisdição que tiver em quanto sua mercê for. E pela terceira que a perca de todo. E manda a quaisquer corregedores ou ouvidores das comarcas a que este pertencer que provejam sobre ele e o façam assim dar a execução sob pena de privação dos ofícios. E porem não tolhe que os semelhantes a alem disto não hajam as penas que devem de haver em quanto maiores forem por direito comum e lex e ordenações de seus reinos.
Capítulo das serventias e tomadas
Outrossim Senhor outro modo de tiranizar trazem dizendo que têm em suas terras tomadas e com este acha que tomam tudo o que querem e fazem os homens servir em suas obras e levam que coimam de suas casas sem lhes pagarem cousa alguma. E se alguns recebem paga é tão pouca que não é a terça parte do que merecem.
Resposta
Responde EIRey que há por mal feito que nenhumas pessoas hajam de dar opressão ao povo de semelhantes tomadas. Salvo aquelas que por foral ou privilégio ou em alguma outra maneira per direito lhe pertencer nem isso mesmo se haverem de servir nas obras. Se não por seus Jornais. Salvo se por mandado seu delRey tiverem serventia para algumas obras de castelos ou vilas. E quem o contrário fizer pela primeira vez pague cinquenta cruzados e pela segunda seja suspenso de qualquer Jurisdição, e a terceira que a perca de todo. E manda a quaisquer corregedores e ouvidores da comarca a que eito pertencer que prevejam sobre isto e façam pagar aos homens que assim servirem os Jornais e serviços que lhes fizerem e o façam assim dar a execução. Sob pena de privação dos ofícios. E para provisão das semelhantes coisas manda vir os forais do Reino e os privilégios que cada um tem.
Capítulo dos que têm Jurisdições cyuees e se metem nas crimes
Outrossim Senhor pelos reis vossos antecessores foram dadas Jurisdições civeis aos ditos Senhores fidalgos prelados Igrejas mosteiros da qual civilidade não contentes, tomam conhecimento por si e seus ouvidores dos factos crimes que a eles não pertencem assim como de daninhos públicos e bravas e injúrias verbais e dos que tornam justiça mal tratando os Jurados e vintaneiros que tiram bestas e gados do curral e dos que furtam furtos de pequena quantia os quais crimes em vereaçom per os oficiais das cidades e vilas deviam ser desembargados e assim tomam conhecimento doutros crimes maiores que pertencem aos Juizes e denegam as apelações e alçada a vossa alteza o que todo causa andar vossa Justiça em alheada.
Resposta
Responde ElRey que se alguns tomam a Jurisdição nos casos que a eles não pertencem que o há por muito mal facto. E porque a este capítulo se não pode dar certa determinação, e porque é coisa apontada em Geral e que pode tocar em particular a pessoas que não serão ouvidas eles declarem as pessoas que de tal cousa usam não lhe pertencendo e mandara vir suas doações e forais e ouvira as partes a que pertence e sobre todo fará cumprimento de direito.
Capítulo dos ofícios de que pertence a dada aos concelhos que alguns fidalgos dão
Outro sim Senhor os concelhos por seu antigo costume estão em posse de eleger Juizes e Vereadores e procurador e dar oficio de Juizado dorphoos e outros ofícios e cargos propriamente aos ditos Concelhos pertencem pelo dito modo e por leis de vossos reinos o que Ihes os ditos Senhores e os que tais Jurisdições têm guardar não querem mas dão a seus criados e a outros que o não são os ditos carregos e ofícios porque façam em eles seus mandados e vontades. E com isto em suas terras encobrem furtos mortes e aleijões roubos e grandes males e com peitas e outras afeições e per outros modos que lhes consentem e encobrem estes oficiais de suas mas postos prendem os que culpa não têm e soltam os que merecem mortes e outras penas assim que outra Justiça é se não faz senão o que eles querem e mandam, e vosso povo padece estes males e muitos outros e o bem comum perde sua força o que todo causa a Justiça e oficiais dela andar em suas mãos fora de vosso real poder que soes casa de sua morada.
Resposta
Responde EIRey que há por bem que ninguém não ponha Juizes nem faça lições senão segundo forma da ordenação. Salvo se tiver expresso privilégio e doação por que o possa fazer. E quanto aos ofícios dorphoos e da câmara e os outros apontados no capitulo que há por bem que se dêem para os concelhos a que pertencer salvo aqueles que alguns tiverem por privilégios que os possam dar, e que não durem mais que três anos guardando-se porem em todo o capitulo que se determinou nas cortes de Évora passadas.
Capítulo das Inquirições que se vejam
Muito poderoso Senhor é escusado dizer-se a vossa alteza por quantos modos e maneiras os que as Jurisdições desmembradas de vossa Real coroa são sujeitos padeçam por míngua de Justiça porque por vossos povos são apontadas as mais baixas porque cremos que das cousas mais principais dignas de muito corregimento vossa alteza tem muito comprida informação porque as obras de cada um dão dele o testemunho segundo vossa Senhoria sabe por algumas Inquirições que já são em vossa corte as quais pedem vossos povos por merecer que vossa Real Senhoria as mande ver e dar a devida execução segundo cumpre a vosso serviço e bem comum e onde se começo não fez mandes outras de novo tirar e trazer a vossa corte e todas se executem e cumpram por vossa alteza segundo forma e determinação da lei delRei Dom Fernando posta no segundo livro no título de como devem usar das Jurisdições os fidalgos confirmada e aprovada per elRey vosso padre que deus tem a qual é santamente afecta e muito a vosso serviço. E a decisão do que per vosso povo por bem comum e conservação de justiça e a vossa Senhoria pedido.
Resposta
Responde elRei que lhe tem em serviço o que lhe apontam e há por muito bem que se vejam. E que já o tem assim mandado na Relação que se faça. E que as que são começadas de tirar que mandara que se acabem de tirar para se também verem e prover sobre todo como for rezam e direito segundo direito e a ordenação delRei Dom Fernando que alegam.
Capítulo dos adiantados Regedores e governadores que os não aja hi
Outro sim Senhor por este fumo de Senhorizar Requereram a elRei vosso padre que deus tem alguns ofícios novos e dignidades que muitos destes por suas inoportunidades e grandes Requerimentos houveram assim como adiantados Regedores e governadores de Justiça que se ora acham serem em grande dano de Justiça e desfasamento de vosso povo que entre comarcas são factos ou por qualquer outro nome e título que lhe vossa mercê ponha de fidalgos e grandes Senhores os quais se conhece que tal carrego nem aceitaram com aquele zelo de Justiça que deviam mas por senhorizar e favorecer seus parentes e collassya e sua casa de criados e apaniguados e por haverem gente em essa comarca de cavaleiros e bons homens que com eles sirvam aos quais convém dar mais favor que a outros para os servirem sem outras mercês que lhes fectas tenham nem hajam de fazer salvo em desfavor doutros contentar contra Justiça.
E cuidou Senhor contentar qualquer deles por lhe dar tal carrego e descontentou todos os outros fidalgos dessa comarca que o tomam em muito escândalo e entre eles semeou discórdia e desamor e a vossos povos deu muito trabalho cá onde não podiam suportar casa de corregedor da comarca que era homem singelo com seus oficiais como poderiam sofrer o estado de tal adiantado e de sua mulher e filhos e gentes que consigo trazem assim de pousadas como de mantimentos este traz consigo ouvidor a que pouco dinheiro dá para seu suporte hão-de tirar de alguma parte tal adiantado posto que erros faça os beneficiados contra ele não ousam requerer nem povos se agravar nem vosso corregedor da corte nem outros desembargadores vossos como ousaram de tal corrigir.
E assim Senhor por estas Razões como por outras muitas que vossa alteza achará alegadas aos dezasseis capítulos dos fidalgos e aos dezoitos dos povos das cortes que se começaram em Coimbra no ano de setenta e dois.
E se acabaram em esta cidade de Évora no ano de setenta e três que andam em a vossa chancelaria eIRei que deus tem determinou e mandou que expirassem os ditos adiantados Regedores e governadores.
E os mais aí não houvesse: E alem desta determinação dos ditos capítulos já o dito Senhor Rei vosso padre por sua fé real em sua carta por ele assinada e selada do seu selo pendente prometeu a Requerimento desta cidade de nunca aí mais haver adiantado por muito divido ou parentesco que com sua Senhoria tivessem os que lhe semelhante dignidade e ofício Requeressem a qual fé real sua alteza por direito quebrar não podia e vós Senhor soes obrigado sua fé real manter e guardar com Justiça pedem-vos vossos povos por mercê que mandes cumprir e guardar as ditas determinações dos ditos capítulos e carta e mandes que os não haja aí e fazeres mercê e direito a vosso povo.
Resposta
Responde elRey que considerando o bem da Justiça e de seu povo e a determinação que já sobre esto é passada e as causas e razões que para o seu povo foram apontadas para os tais ofícios aí não haver ele há por bem que daqui avante os não haja aí mais nem se use deles e declara serem espirados de todo. E que se ponham corregedores nas comarcas entendidos e letrados que o bem façam aos quais ora novamente acrescenta outro tanto mantimento quanto sejam de haver de guisa que hajam vinte e quatro mil reis por ano.
Capítulo que os Senhores não tenham desembargadores na Relação para seus factos
Item Senhor nas ditas cortes que se começaram em Coimbra E acabaram Em Évora foi determinado por elRey vosso padre que deus tem que nenhuns Senhores tenham em especial desembargadores em vossa casa da sopricaçom para despacharem os factos que de suas terras per apelação a ela vêm E depois por favores se fez e faz o contrário seja vossa mercê mandar que se guarde certo capítulo na maneira que é determinado.
Resposta
Responde elRey que pelo duque de Viseu seu primo ser em Castela em seu serviço ele há por bem por o presente não inovar em cousa alguma posto que sua intenção é de nenhuma pessoa os não trazer em sua corte e os que agora são ou por ventura forem até o tempo que ele mandar que os aí não haja quer e manda que se não possam mudar. E em seu lugar poder outros alguns salvo por morte e com sua licença.
A
Inquisição em Portugal
"Nosso desejo é, e a este ofício da Santa Inquisição pertence, estripar e arrancar e apartar dentro os cristãos estas malvadas e perniciosas heresias e seitas que a nossa Santa fé católica a qual a Santa madre Igreja tem e prega preservar e seja guardada, para que os cristãos que em ela crêem se hajam de salvar"
Como escreveu Sofia Aparecida de Siqueira: “O Santo Oficio da Inquisição contra a herética pravidade e apostasia inseriu-se em Portugal exactamente no momento da passagem do Renascimento para o Barroco. Configurada pela mentalidade do tempo, a reflectir-se em cada aspecto de sua existência, é exemplo institucional de um período da história do Ocidente. Portanto, é de mister ver-se a história do Santo Oficio em suas conexões com sua, época, isto é, com os séculos da Modernidade”.
Importa a reconstituição da atmosfera mental do tempo, quando religião era valor vinculado à vida colectiva, a sugerir ou a comandar a empresa de se vencer o mal pelo bem. Mal e bem conforme aqueles homens, os definiam, haurindo inspirações gerais que dominavam motivos, conceitos, estilos de vida, comportamentos.
Cada época elabora um plano de unidade – que é condição de sobrevivência da sociedade – com seus caracteres próprios. Cria-se, assim, um ‘sistema mental’ que aprisiona os indivíduos como numa cerca e nutre as intolerâncias que o modelam. Este ‘sistema mental’ pode sofrer rupturas. Com essas rupturas lidou o Ocidente e, dentro dele, Portugal, no fim do Século XV e primeiras décadas do XVI.
O descortino de novos mundos e de outros povos fora convite para repensar a realidade e a condição humana. Implicara na renovação das inteligências, dos costumes, das ideias, dos sentimentos e do pensamento. Abrigara desafios à inteligência, o tratamento racionalista dos dados. Fixara uma ideia do progresso: superar a Idade Média, Na ordem político-social, o Estado procurava substituir a Cristandade. Ruía, aos poucos, o mundo teocêntrico, garantido pela autoridade da Santa Sé, do clero, da tradição. Conceções novas dos filósofos enlaçavam-se com opiniões novas dos políticos. Contra os tomistas e escotistas, levantavam-se os nominalistas, buscando liberar a razão das afirmações da fé. Havia uma forte tensão espiritual, resultante de conflitos íntimos. As fermentações críticas rompiam a unidade do pensamento, liberavam uma disparidade que, por sua vez, engendravam a instabilidade dos espíritos. O teste da liberdade, o imperativo das opções que se multiplicavam acabou por aninhar o desassossego até à angústia, Tentando recuperar o Cristianismo, pela volta às fontes puras, mediante enriquecimento pelas filosofias antigas, para a reconstrução do edifício havia-se atingido seus alicerces, seus fundamentos, e com isto, paradoxalmente, abalara-se o próprio edifício. A razão, intentando servir à crença, ameaçava sacrificar crença serviço da razão.
Essa recolocação dos problemas do espirito favorecia o desenvolvimento de uma actividade livre e independente, Mudava-se, gradativamente, nos diversos países da Europa, a própria maneira de encarar o mundo. Infiltrava-se um pendor sensualista, definido por Campanella, um neonominalismo passou a ensinar que se devia partir da experiência sensível pra se apreenderem as coisas.
A ciência empírica procurava libertar-se da física aristotélica para se transformar numa ‘experiência’. O conhecimento oriundo da experiência era confrontado com o conhecimento proveniente das teorias. Muitas das supostas conquistas definitivas da humanidade passavam a sofrer correcções e desmentidos. E alguns homens foram levados, diante dos factos, a formular juízos de valor sobre certas ideias medievais e a fixar novos critérios para aferir seus conhecimentos. Esboçava-se, em certos sectores, um método que levava a outro tipo de conhecimento racional, ao conhecimento científico do mundo: o exercício da crítica sobre a experiência, tendo experiência como condição para alcançar verdade.
Quando o homem acolheu diferentes concepções sobre si próprio e sobre o mundo, e aceitou novos valores dele advindos, entrou em crise. Crise do espirito, da inteligência e do sentimento. Desorientou-se. Nesse desnorteamento, incluíram-se suas relações com Deus e seu comportamento.
Portugal partilhou as crises do Ocidente.
Esse alargamento do campo cultural, elaboração de nova mentalidade, recebeu grande impulso da expansão ultramarina. A orientação experimental que tomou o grupo ligado às atividades náuticas contrapôs-se à cultura universitária, de cunho teórico e livresco, amarrado ao Tomismo.
O catolicismo era a prevalente do génio próprio dos portugueses da época. Por isso, quando procuraram a adopção das novas ideias, dos novos princípios, dos novos costumes, submeteram-nos, primeiro, ao crivo de sua fé e aceitaram o que se escoou temerosamente. Do Naturalismo nas especulações científicas, filosóficas e políticas, foi veículo o franciscaníssimo – São Boaventura, Guilherme de Ocam. André de Resende, o humanista, um dos melhores representantes do espírito novo, esforçou-se para ser, ao mesmo tempo, christianus et ciceronianus. Francisco Sanches, não obstante seu agudo senso crítico, emudeceu em relação às dúvidas lançadas à crença, Na Rópica Pnefma, João de Barros fez a apologia da ‘razão católica’.
Aceitou-se o espírito novo, desde que esse se coadunasse com a autoridade da Igreja e a integridade da crença. O criticismo não poupava a vida religiosa, os usos e abusos da clerezia. Mas a fidelidade acatava a autoridade do Papa, as linhas mestras do dogma e da piedade cristãs, reconhecia a missão do sacerdócio. Buscavam-se modificações – eram próprias das inquietudes do tempo – mas endereçavam-se à cristianização da vida, não ao enfraquecimento da Igreja."
CARTA
DO ÉDITO E TEMPO DE GRAÇA
Dom Diogo da Silva por mercê de Deus e da Santa madre Igreja de Roma, bispo de Ceuta, confessor do Rei nosso Senhor e do seu conselho, inquisidor mor sobre os crimes de heresia nos reinos e senhorios de Portugal, por autoridade apostólica e bula do Santíssimo padre Paulo III, agora presidente na Igreja de Deus, concedida à instância do muito alto e muito poderoso príncipe e Rei o Rei Dom João nosso senhor etc. aos que esta nossa carta monitoria e de edicto e tempo de graça virem, lerem ou ouvirem ou em qualquer modo que seja dela notícia tiverem saúde em nosso senhor Jesus Cristo que de todos é verdadeira salvação.
Fazemos saber que nós somos informados por pessoas dignas de fé que nesta cidade de Évora e seus termos há algumas pessoas, homens e mulheres, que não temendo o senhor Deus, nem o grande perigo de suas almas apartados da nossa santa fé católica, têm cometido e cometem crimes de heresia guardando ritos e cerimónias da lei de Moisés. E consentem que se façam e guardem em suas casas.
E outros dizem que têm algumas opiniões heréticas e falsos errores, assim luteranos como de outras danadas heresias e da perniciosa e muito danada seita de Mafamede e alguns outros cometem crimes de sortilégios e feitiçarias que manifestamente contém em si heresia.
E porque nosso desejo é, e a este ofício da Santa Inquisição pertence, estripar e arrancar e apartar dentro os cristãos estas malvadas e perniciosas heresias e seitas que a nossa Santa fé católica a qual a Santa madre Igreja tem e prega preservar e seja guardada, para que os cristãos que em ela crêem se hajam de salvar e por tanto por esta presente nossa carta notificamos a quaisquer pessoas, homens e mulheres, clérigos e religiosos, isentos e não isentos de qualquer estado condição, dignidade e proeminência que sejam vizinhos e moradores desta cidade de Évora e seus termos que se sentem ou sentirem culpados nos ditos crimes e delitos da má vida heresia e de terem feito e guardado ritos e cerimónias da dita lei de Moisés e seita de Mafamede ou tem ou tem ou tiveram ou disseram qualquer herética e errada opinião ou fizeram as ditas feitiçarias e sortilégios que manifestamente trazem consigo heresias, que nós determinamos de inquirir e fazer inquisição nesta cidade e seus termos sobre os ditos crimes delitos e erros, acerca dos quais entendemos de proceder executar o que Deus assim como principal juiz de sua causa nos administrar e acharmos por direito segundo que somos obrigado e darmos a bula apostólica da Santa Inquisição a devida execução e os que forem culpados nos ditos delitos se quiserem vir reconhecer suas culpas e pecados confessá-los e manifestá-los inteiramente pedindo penitência deles com puro coração, e fé não fingida. E quiserem ser tornados e incorporados na união da Santa madre Igreja serão recebidos por nós benigna e caritativamente segundo doutrina de nosso senhor e salvador Jesus Cristo o qual tem sempre os braços abertos para perdoar e receber a todos aqueles que com verdadeira contrição se convertem a Ele ainda que sejam mui grandes pecadores e lhe tenham muito errado e ofendido.
E porque mais justamente se faça a dita inquisição e haja efeito e execução e que nenhum dos sobre ditos a quem toca ou tocar este negócio não possa pretender ignorância mui afectuosa e caritativamente requeremos exortamos e admoestamos em nome de nosso Senhor e redentor Jesus Cristo, Mandamos uma, duas e três vezes a todos e quaisquer dos sobreditos vizinhos e moradores desta cidade e que em ela e seus termos estão que cometeram e perpetraram os ditos delitos e crimes de heresia e Apostasia da fé ou se sentirem culpados de ter caído ou incorrido por qualquer via e forma que seja dos ditos crimes e errores acima nomeados e declarados ou cada um deles contra nossa Santa fé católica que do dia que lhe esta nossa carta for lida e publicada e de qualquer maneira que a sua notícia vier ou dela souberem parte a trinta dias primeiros seguintes os quais lhe damos e assinamos por todas as três canónicas admoestações dando-lhe dez dias para pela primeira admoestação e dez pela segunda e outros dez pela 3.ª, os quais trinta dias damos e assinamos por termo e tempo da graça a todos e a cada um que nos ditos delitos e erros se sentirem culpados, para que dentro nos ditos trinta dias pareçam perante nós em nossas pousadas nesta cidade onde seremos presente e residente a confessar e declarar todos e quaisquer erros e delitos que tenham feitos e cometidos de heresia e apostasia da fé ou aconselhado feito obrado consentido e visto fazer e obrar a outras quaisquer pessoas assim pais e mães como outros quaisquer parentes presentes ou ausentes posto que mortos sendo eles confidentes companheiros consortes participantes ou consentidos dos ditos delitos e erros e os que souberem ler e escrever trarão os ditos crimes e erros por escrito e assinados de seus sinais e nomes.
E os que não souberem escrever dirão e declararão os ditos erros e delitos na dita maneira e os escreverá o escrivão e notário da Santa Inquisição por termo o qual será assinado pelos confidentes e trazendo propósito com toda a obediência, humildade e reverência de obedecer à penitência que por nós lhe for dada e posta e de abjurar os ditos heréticos errores inteiramente e cada um deles e toda espécie que seja ou possa ser de heresia e apostasia da fé, sendo certos que pelo que assim confessarem e manifestarem e abjurarem inteiramente e segundo forma de direito dentro do dito termo de trinta dias da graça em que por nós serão recebidos benigna e caritativamente os absolvermos das censuras e penas de excomunhão maior e outras em que pelos ditos crimes tenham incorrido e lhe daremos penitências saudáveis para as suas almas a cada um segundo a qualidade e maneira de seu delito pela forma e maneira que o direito em tal caso dispõe, usando de misericórdia com os que assim vierem quanto honestamente e com boa consciência e direito o pudermos fazer.
E pelos sobreditos errores e crimes de heresia que assim pediram perdão e reconciliação como dito é não serão presos nem encarcerados nem se procederá contra eles. De outra maneira se pelo contrário fizerem o que Deus não queira e dentro do dito termo de trinta dias da graça que lhe assim damos assinamos não vierem a cumprir o sobre dito: E quiserem ser revéis e pertinazes e perseverar em estarem obstinados em seus erros e delitos de heresia apostasia e infidelidade: nós procederemos contra eles e cada um deles usando o dito nosso ofício de inquisidor mor por nós e nossos comissários e delegados segundo a forma da dita bula da Santa Inquisição guardando a cada um sua justiça como nos parecer que é direito etc.
E por que as sobre ditas coisas venham a notícia de todos e de cada um a que toque ou tocar possa e não possam pretender nem alegar ignorância e que não souberam o sobre dito Mandamos que se publique nas igrejas desta Cidade e seus termos e Mandamos a todos os priores, vigários perpétuos, beneficiados e curas das ditas igrejas e a cada um deles em virtude de obediência e sob pena de excomunhão que durando os ditos trinta dias todos os domingos e dias de festa a leiam e publiquem em suas estações a seus fregueses e povo cuja sé (aliás fé) e certeza de todo Mandamos ser feita a presente nossa carta.
Dada na Cidade de Évora sob nosso sinal e selo aos XX dias de Outubro Diogo Travaços notário a fez de Mil quinhentos e trinta e seis.
Concorda este traslado com o do livro de verbo ad verbum com os dois riscados em que diz apostasia, heresias e outro em que diz sessenta. E com entrelinha obediência e por verdade assinei aqui de meu sinal raso.- Domingos Simões.
As
Cortes de Lamego 1641
"Estas são as leis da herança do nosso Reino...: boas são, justas são, queremos que valham por nós, e por nossos descendentes, que depois vierem"
Como escreveu Luís Reis Torgal, "as actas das cortes de Lamego é um documento claramente forjado com uma evidente intenção nacionalista. Nele aparece concretizada a “eleição” do rei, D. Afonso Henriques, pelos representantes do clero, da nobreza e do povo, e, mais importante ainda, aparece formalizada uma lei de direito sucessório, inexistente nas nossas Ordenações. Nessa lei salientavam-se os seguintes pontos: as mulheres tinham o direito de sucessão e não poderiam casar com estrangeiros ou, no caso de virem a fazê-lo, nunca o seu marido poderia reinar em Portugal, porque era tido como princípio sagrado que o, pais nunca fosse governado por “estranhos”.
Segundo este documento, as referidas cortes ter-se-iam, dado em Lamego, supõe-se que em 1143. Nelas teriam estado presentes procuradores do povo, o que (entre outros motivos) vem comprovar o carácter apócrifo do documento, dado que nem nas cortes de Coimbra de 1211 estiveram representantes dos municípios. Após a “eleição” de D. Afonso Henrique, feita pelos elementos representativos dos três estados, há a preocupação de imediatamente se fazerem “leis da herança e sucessão do Reino”. Nos princípios considerados para essas leis parece notar-se a influência das Alegações de 1580. Transcrevemos da versão portuguesa que Frei António Brandão faz das “actas” a parte mais elucidativa: “Viva o senhor Rei Dom Afonso (...) Estas são as leis da herança do nosso Reino, e leu-as Alberto Cancelário do senhor Rei a todos, e disseram: boas são, justas são, queremos que valham por nós, e por nossos descentes, que depois vierem".
Desta forma apresentava-se “um documento” que era, por assim dizer, a prova textual de que, por um lado, D. Catarina poderia ter sido legitimamente rainha de Portugal e Filipe II não teria qualquer legitimidade para sê-lo. Como se disse, era evidente que o documento era apócrifo e Frei António Brandão, o mais íntegro historiador da Monarquia Lusitana, bem o sabia, como parece poder depreender-se das suas palavras. Mas, de qualquer forma, era de grande utilidade nacional e, por isso, durante a Restaurarão, nem sequer se hesitou em relação à sua validade. Ele foi utilizado como lei fundamental do reino para provar a legitimidade de D. João IV e o facto é que não ficou por aqui a sua legitimação - até à vitória do liberalismo em 1820 as “actas das cortes de Lamego” foram tidas como lei de sucessão e em 1828 foram de novo invocadas para provar a legitimidade de D. Miguel.
Em nome da santa, e indivisa Trindade Pai, Filho, e Espírito Santo, que é indivisa, e inseparável. Eu, Dom Afonso filho do Conde D. Henrique, e da Rainha Dona Teresa neto do grande D. Afonso, Imperador das Espanhas, que pouco há que pela divina piedade fui sublimado à dignidade Rei. Já que Deus nos concedeu alguma quietação, e com seu favor alcançamos vitória dos Mouros nossos, inimigos, e por esta causa estamos mais desalivados, porque não suceda depois faltar-nos o tempo, convocamos a Cortes, todos os que se seguem: o Arcebispo de Braga, o Bispo de Viseu, o Bispo do Porto, o Bispo de Coimbra, o Bispo de Lamego, e as pessoas de nossa Corte que se nomearão abaixo, e os procuradores da boa gente cada um por suas Cidades, convém a saber por Coimbra, Guimarães, Lamego, Viseu, Barcelos, Porto, Trancoso, Chaves, Castelo Real, Vouzela, Paredes Velhas, Seia, Covilhã, Monte Maior, Esgueira, Vila de Rei, e por parte do Senhor Rei Lourenço Viegas havendo também grande multidão de Monges, e de clérigos.
Juntámo-nos em Lamego na Igreja de Santa Maria de Almacave. E assentou-se o Rei no trono Real sem as insígnias Reais, e levantando-se Lourenço Viegas procurador do Rei disse:
“Fez-vos ajuntar aqui o Rei D. Afonso, o qual levantastes no Campo de Ourique, para que vejais as letras do Santo Padre, e digais se quereis que seja ele Rei.”
Disseram todos:
- “Nós queremos que seja ele Rei.”
E disse o procurador:
- “Se assim é vossa vontade, dai-lhe a insígnia Real.”
E disseram todos:
- “Demos em nome de Deus.”
E levantou-se o Arcebispo de Braga, e tomou das mãos do Abade de Lorvão uma grande coroa de ouro cheia de pedras preciosas que fora dos Reis Godos, e a tinham dada ao Mosteiro, e esta puseram na cabeça do Rei, e o senhor Rei com a espada nua em sua mão, com a qual entrou na batalha disse:
- “Bendito seja Deus que me ajudou, com esta espada vos livrei, e venci nossos inimigos, e vós me fizestes Rei e companheiro vosso, e pois me fizestes, façamos leis pelas quais se governe em paz nossa terra.”
Disseram todos:
- “Queremos Senhor Rei, e somos contentes de fazer leis, quais vos mais quiserdes, porque nós todos com nossos filhos e filhas, netos e netas estamos a vosso mandado.”
Chamou logo o Senhor Rei os Bispos, os nobres, e os procuradores, e disseram entre si, façamos primeiramente leis da herança e sucessão do Reino, e fizeram estas que se seguem.
Viva o Senhor Rei Dom Afonso, e possua o Reino. Se tiver filhos varões vivam e tenham o Reino, de modo que não seja necessário torná-los a fazer Reis de novo. Deste modo sucederão. Por morte do pai herdará o filho, depois o neto, então o filho do neto, e finalmente os filhos dos filhos, em todos os séculos para sempre.
Se o primeiro filho do Rei morrer em vida de seu pai, o segundo será Rei, e este se falecer o terceiro, e se o terceiro, o quarto, e os mais que se seguirem por este modo.
Se o Rei falecer sem filhos, em caso que tenha irmão, possuirá o Reino em sua vida, mas quando morrer não será Rei seu filho, sem primeiro o fazerem os Bispos, os procuradores, e os nobres da Corte do Rei. Se o fizerem Rei será Rei e se o não, elegerem, não reinará.
Disse depois Lourenço Viegas Procurador do Rei, aos outros procuradores:
- “Diz o Rei, se quereis que entrem as filhas na herança do Reino, e se quereis fazer leis no que lhes toca?”
E depois que altercaram por muitas horas, vieram a concluir, e disseram:
- “Também as filhas do senhor Rei são de sua descendência, e assim queremos que sucedam no Reino, e que sobre isto se façam leis”, e os Bispos e nobres fizeram as leis nesta forma.
Se o Rei de Portugal não tiver filho varão, e tiver filha, ela será a Rainha tanto que o Rei morrer; porem será deste modo, não casará se não com Português nobre, e este tal se não chamará Rei, se não depois que tiver da Rainha filho varão. E quando for nas Cortes, ou autos públicos, o marido da Rainha irá da parte esquerda, e não porá em sua cabeça a Coroa do Reino.
Dure esta lei para sempre, que a primeira filha do Rei nunca case senão com português, para que o Reino não venha a estranhos, e se casar com Príncipe estrangeiro, não herde pelo mesmo caso; porque nunca queremos que nosso Reino saia fora das mãos dos Portugueses, que com seu valor nos fizeram Rei sem ajuda alheia, mostrando nisto sua fortaleza, e derramando seu sangue.
Estas são as leis da herança de nosso Reino, e leu-as Alberto Chanceler do senhor Rei a todos, e disseram, boas são, justas são, queremos que valham por nos, e por nossos descendentes, que depois vierem.
E disse o Procurador do senhor Rei.
– “Diz o senhor Rei. Quereis fazer leis da nobreza, e da justiça?”
E responderam todos:
- “Assim o queremos, façam-se em nome de Deus”, e fizeram estas.
Todos os descendentes de Sangue Real, e de seus filhos e netos sejam nobilíssimos. Os que não são descendentes de Mouros ou dos infiéis Judeus, sendo Portugueses que livrarem a pessoa do Rei ou o seu pendão, ou algum filho, ou genro na guerra sejam nobres. Se acontecer que algum cativo dos que tomarmos dos infiéis, morrer por não querer tornar a sua infidelidade, e perseverar na lei de Cristo, seus filhos sejam nobres. O que na guerra matar o Rei contrário, ou seu filho, e ganhar o seu pendão seja nobre. Todos aqueles que são de nossa Corte, e têm nobreza antiga, permaneçam sempre nela. Todos aqueles que se acharam na grande batalha do Campo de Ourique, sejam como nobres, e chamem-se meus, vassalos, assim eles como seus descendentes.
Os nobres se fugirem da batalha, se ferirem alguma mulher com espada, ou lança, se não libertarem ao Rei, ou a seu filho, ou a seu pendão com todas suas forças na batalha, se derem testemunho falso, se não falarem verdade aos Reis, se falarem mal da Rainha ou de suas filhas, se forem para os Mouros, se furtarem as coisas alheias, se blasfemarem de nosso Senhor Jesus Cristo, se quiserem matar o Rei, não sejam nobres, nem eles, nem seus filhos para sempre.
Estas são as leis da nobreza, e leu-as o Chanceler do Rei, Alberto, a todos. E responderam: “boas são, justas são, queremos que valham por nós, e por nossos descendentes que vierem depois de nós.”
Todos os do Reino de Portugal obedeçam ao Rei e aos Alcaides dos lugares que aí estiverem em nome do Rei, e estes se regerão por estas leis de justiça. O homem se for compreendido em furto, pela primeira, e segunda vez o porão meio despido em lugar público, aonde seja visto de todos se tornar a furtar, ponham na testa do tal ladrão um sinal com ferro quente, e se nem assim se emendar, e tornar a ser compreendido em furto, morra, pelo caso, porem não o matarão sem mandado do Rei.
A mulher se cometer adultério a seu marido com outro homem, e seu próprio marido denunciar dela à justiça, sendo as testemunhas de crédito, seja queimada depois de o fazerem saber ao Rei e queime-se juntamente o varão adúltero com ela. Porem, se o marido não quiser que a queimem, não se queime o cúmplice; mas fique livre; porque não é justiça que ela viva, e que o matem a ele.
Se alguém matar homem seja a quem quer que for, morra pelo caso. Se alguém forçar virgem nobre, morra, e toda sua fazenda fique a donzela injuriada. Se ela não for nobre, casem ambos, quer o homem seja nobre, quer não.
Quando alguém por força tomar a fazenda alheia, vá dar o dono querela dele à justiça, que fará com que lhe seja restituída sua fazenda.
O homem que tirar sangue a outrem com ferro amolado, ou sem ele, que der com pedra, ou algum pau, o Alcaide lhe fará restituir o dano e o fará pagar dez maravedis.
O que fizer injúria ao Agoazil, Alcaide, Portador do Rei, ou a Porteiro, se o ferir, ou lhe façam sinal com ferro quente, quando não 50 marevedis, e restitua o dano.
Estas são as leis de justiça e nobreza, e leu-as o Chanceler do Rei, Alberto, a todos, e disseram:
- “Boas são, justas são, queremos que valham por nós, e por todos nossos descendentes que depois vierem.”
E disse o Procurador do Rei, Lourenço Viegas:
- “Quereis que o Rei nosso senhor vá às Cortes do Rei de Leão, ou lhe dê tributo, ou a alguma outra pessoa tirando o senhor Papa que confirmou no Reino?”
E todos se levantaram, e tendo as espadas nuas postas em pé disseram:
- “Nós somos livres, nosso Rei é livre, nossas mãos nos libertarão, o senhor que tal consentir, morra, e se for Rei, não reine, mas perca o senhorio.”
E o senhor Rei se levantou outra vez com a coroa na cabeça, e espada nua na mão falou a todos:
- “Vós sabeis muito bem quantas batalhas, tenho, feitas por vossa liberdade, sois disto boas testemunhas, e o é também meu braço, e espada; se alguém, tal coisa consentir, morra pelo mesmo caso, e se for filho meu, ou neto, não reine”: e disseram todos: “boa palavra, morra o Rei se for tal que consinta em domínio alheio, não reine”; e o Rei outra vez:
- “Assim se faça, etc.”
Assento feito em cortes pelos três estados, dos Reinos de Portugal, da aclamação, restituição. e juramento dos mesmos Reinos. Ao muito alto e muito poderoso Senhor Rei Dom João IV deste nome
"Conforme as regras de direito natural, e humano, ainda que os Reinos transferissem nos Reis todo o seu poder, e império para os governarem, foi debaixo de uma tácita condição de o regerem, e mandarem com justiça, sem tirania, e tanto que no modo de governar usarem delas, podem os Povos privá-los dos Reinos, em sua legítima natural defesa."
De acordo com Luís Reis Torgal "o Assento, feito [durante as cortes de 1641] em nome dos três estados, mas que terá sido escrito por juristas, César de Meneses, que aparece formalmente como o redactor, talvez com a colaboração de Velasco de Gouveia, conforme já foi sugerido, apresenta os princípios fundamentais da argumentação legitimista [da aclamação de D. João IV]”. Todas as obras que depois se publicaram sobre o tema glosaram e teorizaram os argumentos ali apresentados.
Antes da argumentação jurídico-política que procurava justificar os direitos de D. João e a ilegitimidade de Filipe IV, o (...) Assento pretende, como era lógico, fundamentar a própria legitimidade das cortes e do seu poder deliberativo em matéria de 'eleição' do rei. Justifica-as então em nome do direito político geral, tal como as teses escolásticas o concebiam, considerando assim que, como o poder político compete originariamente ao povo, pertence-lhe a ele escolher de novo o rei, quando há dúvidas acerca da sucessão. Mas fundamenta-as também no próprio direito português (se as cortes de Lamego também confirmaram como rei D. Afonso Henriques, quando ele já o era de facto, de modo idêntico acontecia agora com D. João IV, porque ao reino lhe assistia esse direito).
Os três estados destes Reinos de Portugal juntos nestas Cortes, onde representam os mesmos Reinos, e têm todo o poder, que neles há, resolveram, que por princípio delas deviam fazer assento por escrito, firmado por todos, como o direito de ser Rei, e Senhor deles pertencia, e pertence, ao muito alto e muito poderoso Senhor Dom João IV deste nome, filho do Sereníssimo Senhor Dom Teodósio, Duque de Bragança, e neto da Sereníssima Senhora Dona Catarina Duquesa do mesmo estado, filha do Sr. Infante Dom Duarte, e neta do muito alto, e muito poderoso Senhor Rei Dom Manuel.
Porquanto depois que no primeiro dia de Dezembro do ano próximo de 1640 em que primeira vez, foi aclamado por Rei nesta Cidade de Lisboa, e em todos os seguintes, em todo o mais Reino, e jurado, e levantado, nesta mesma Cidade em os quinze do mesmo mês. Ajuntando-se depois nestas Cortes, os três estados, e celebrando-se solenemente em os 28 de Janeiro de 1641.
Assentaram seria conveniente para maior perpetuidade, e solenidade de sua feliz aclamação, e restituição ao Reino, que sendo agora juntos tornem em nome do mesmo Reino fazer este assento por escrito, em que o reconhecem, e obedecem, por seu Legítimo Rei, e Senhor, e lhe restituem o Reino, que era de seu Pai, e Avô, usando nisto. do poder, que o mesmo Reino tem para assim o fazer, determinar, e declarar de justiça.
E seguindo também a forma, e ordem que no principio do mesmo Reino se guardou com o Senhor Rei Dom Afonso Henriques, primeiro Rei dele. Ao qual tendo já os Povos levantado por Rei no Campo de Ourique, quando venceu a batalha contra os cinco Reis mouros, e tendo-lhe passado Bula do título de Rei, o Papa Inocêncio III no ano de 1142, contudo nas primeiras Cortes que logo subsequentemente celebrou na Cidade de Lamego pelo fim do ano de 1143 sendo juntos nelas os três estados do Reino, tornaram outra vez, em nome de todo ele, ao aclamar, e levantar por Rei com assento por escrito, do que nelas se fez, para memória, e perpetuidade de seu título.
E pressupondo por coisa certa em direito, que ao Reino somente compete julgar, e declarar a legítima sucessão do mesmo Reino, quando sobre ela há dúvida entre os pretendentes, por razão do Rei último possuidor, falecer sem descendentes, e eximir-se também de sua sujeição, e domínio quando o Rei por seu modo de governo se fez indigno de reinar. Porquanto este poder lhe ficou, quando os Povos a princípio transferiram o seu no Rei, para os governarem. Nem sobre os que não reconhecem superior, há outro algum a quem possa competir, senão aos mesmos Reinos, como provam largamente os Doutores, que escreveram na matéria, e há muitos exemplos nas Repúblicas do mundo, e particularmente neste Reino, como se deixa ver das Cortes do Sr. Rei Dom Afonso Henriques, e do Sr. Rei Dom João I.
Com este pressuposto, os fundamentos, e razões que o Reino teve para aclamar por Rei ao Senhor Rei Dom João IV e para agora nestas Cortes o tornar a aclamar, determinar, e declarar que o legitimo Senhorio dele lhe pertence, e lhe devia ser restituído, posto que os Reis Católicos de Castela estivessem em posse dele são os seguintes:
1.º Que falecendo o Sr. Rei Dom Henrique sem filhos, nem descendentes, a justa e legitima sucessão do Reino se deferiu à Sr.ª Duquesa de Bragança sua sobrinha filha legitima do Sr. Infante Dom Duarte seu irmão representando a pessoa de seu Pai, com todas as qualidades, que nele concorriam para haver de suceder. Por este benefício da representação ter lugar na sucessão dos Reinos (a qual se defere por direito hereditário) e porque especialmente na sucessão deste de Portugal está admitido por disposição, e declaração expressa feita pelo Sr. Rei Dom João I era seu testamento, mandando nele, que o Sr. Infante Dom Duarte seu filho primogénito, ou em seu defeito seu filho, ou neto, e qualquer outro legitimo descendente por sua linha direita, sucedesse nele, segundo se requeria por direito, e costume na sucessão destes Remos, e Senhorios, que são palavras formais da cláusula do dito testamento. Pelas quais fica sem dúvida haver de ter lugar na sucessão dele a representação, havendo-o assim disposto o dito Senhor Rei Dom João I que o podia dispor, e declarar. E na mesma conformidade o haver também disposto o Sr. Rei Dom Afonso V seu neto nas Cortes, que celebrou nesta Cidade em seis de Março de 1476 quando foi casar a Castela com a Senhora Rainha Dona Joana. Termos em os quais os mesmos Doutores, que negaram a representação, nestas semelhantes sucessões dos Reinos, e morgados confessam, que se devem admitir.
E suposta a representação, lhe não poder preferir o Católico Rei Filipe de Castela, sobrinho também do Sr. Rei Dom Henrique, ainda que fosse mais velho em idade, e estivesse em igual grau de parentesco; Por ser filho de irmã fêmea a Senhora Imperatriz Dona Isabel, e sucedendo-se por representação ficar excluído, pois representava a pessoa de sua mãe, que lhe não podia dar mais, do que ela tinha. E pelo contrário a Senhora Duquesa Dona Catarina, entrar representando a pessoa do Infante Dom Duarte seu Pai, o qual se fora vivo, ouvera de excluir a Imperatriz sua irmã. E anda que concorressem á dita sucessão, sendo primos irmãos, sem concorrer Tio, haver de ter lugar a representação por ser mais verdadeira, e mais comum a opinião dos Doutores na matéria, que esta sucessão por representação se admite entre os primos irmãos, sem com eles concorrer tio, e assim o dispor o direito comum dos Romanos, posto que o contrário fosse determinado, pelas Leis das partidas de Castela, que neste Reino não ligam, nem se devem guardar.
E assim deferindo-se a legitima sucessão do Reino, à Senhora Dona Catarina, se ficou derivando dela em seu filho o Sr. Dom Teodósio, e em seu neto o Sr. Dom João IV posto que actualmente não tivesse posse do Reino.
2.º Porque ainda em caso negado, que não pudesse ter lugar o beneficio da representação, e por ele não pudesse deferir-se a sucessão do Reino à Senhora Duquesa Dona Catarina sobrinha do Sr. Rei Dom Henrique, se lhe deferiu pela prerrogativa de melhor linha, que é a primeira das quatro qualidades, pelas quais se defere as sucessões dos Reinos, morgados, e bens vinculados.
Porquanto na mesma cláusula do testamento do Sr. Rei Dom João I acima referida, fez o dito Senhor expressa constituição de linhas entre seus filhos para a sucessão destes Reinos, chamando em primeiro lugar o dito Sr. Infante Dom Duarte seu filho primogénito, e seus filhos, e netos e quaisquer outros legítimos descendentes por linha direita, que é a que os Doutores chamam linha do primogénito, e logo em falta desta primeira linha, chamou a dos outros seus filhos, por sua direita ordenança, a saber. Primeiramente a do Infante Dom Pedro (que era o filho segundo) com todos seus filhos, e netos, e faltando esta segunda linha chamou a do Infante Dom Henrique (seu filho terceiro) e acrescentou, que assim fosse nos outros seus filhos pelo modo sobredito, que são também palavras formais da mesma cláusula do testamento.
Das quais se segue precisamente, que na sucessão destes Reinos depois da representação tem o primeiro lugar a prerrogativa da linha para que em quanto houver descendentes da linha do filho primogénito se não admita pessoa alguma da linha do filho segundo génito, e da mesma maneira nos outros filhos. Porque ainda que de direito comum haja controvérsia nos Doutores, negando alguns as linhas mais, que a do possuidor, e primogénito, e não admitindo que os outros filhos constituam linha, senão quando chegaram a ocupar a sucessão. Contudo havendo expressa disposição do testador, que chamou seus filhos e descendentes por linhas separadas, não há Doutor algum, que as contradiga, nem pelo conseguinte podem ter controvérsia na sucessão deste Reino, onde expressamente estão dispostas na cláusula do dito testamento do Sr. Rei Dom João I.
Pelo que como entre os filhos, e filhas do Sr. Rei Dom Manuel depois da linha do filho primogénito que foi o Sr. Rei Dom João III, que se acabo no Sr. Rei Dom Sebastião cada um dos outros filhos (deixando aqueles que morreram na idade da infância) constitui-se sua linha, na qual para a sucessão do Reino incluíram a si, e a seus filhos, e descendentes, e excluíram os outros. Segue-se que extintas as linhas do Sr. Infante Dom Fernando, e do Sr. Infante Dom Luís, que não deixou filho legítimo, e do Sr. Cardeal Dom Afonso, e do Sr. Cardeal e Rei Dom Henrique que faleceu sem filhos, nem descendentes, entrou a sucessão na linha do Senhor Dom Duarte, e nela achou a Senhora Duquesa Dona Catarina sua filha, a quem se deferiu. E não podia entrar na linha da Senhora Imperatriz Dona Isabel, na qual estava o Rei Católico de Castela seu filho, senão depois de estar de todo acabada, e extinta a linha do Sr. Infante Dom Duarte, que por ser filho varão; constituiu linha superior à sua na forma da mesma cláusula do dito testamento do Senhor Rei Dom João I, que entre os filhos varões por sua ordem, constituiu as primeiras linhas.
3 ° Porque em falta do benefício da representação, e da prerrogativa de melhor linha, tinha a mesma Duquesa a Senhora Dona Catarina, melhor direito na sucessão deste Reino, fundado em vocação expressa, que é a qualidade, que vence a todas, as mais nestas sucessões.
Porquanto o mesmo Senhor Rei Dom João I na cláusula do dito seu testamento, depois de chamar; o Infante Dom Duarte seu filho primogénito com todos seus filhos, netos e descendentes legítimos, chamou também os outros filhos seguintes com seus descendentes na forma acima referida, e do filho primogénito que lhe sucedeu no Reino, que foi o Sr. Rei Dom Duarte, nasceu o Sr. Rei Dom Afonso V, filho seu primogénito, e nasceu o Sr. Infante Dom Fernando seu filho segundo génito, com vocação expressa pela cláusula do dito testamento, depois de acabada a descendência do primogénito. E como esta se acabou no Sr. Rei Dom João II que não deixou filho legítimo, tornou a sucessão do Reino ao filho do dito Sr. Infante Dom Fernando seu tio, que foi o Sr. Rei Dom Manuel do qual nasceu o Sr. Infante Dom Duarte, e dele a Sr.ª Duquesa Dona Catarina sua filha. Por onde ficou tendo a mesma vocação, que tinha o mesmo Sr. Infante Dom Fernando seu bisavô Pai do dito Sr. Rei Dom Manuel seu Avô. E por esta vocação devia necessariamente ser preferida ao dito Rei Católico de Castela, posto que fosse também descendente do mesmo Sr. Infante Dom Fernando pelo mesmo Sr. Rei Dom Manuel, o era pela Sr.ª Imperatriz Dona Isabel, e não podia preferir a Senhora Duquesa Dona Catarina, que tinha a vocação expressa por filho varão o dito Sr. Infante Dom Duarte seu Pai.
4 ° Porque nas ditas primeiras Cortes celebradas em Lamego pelo Sr. Rei Dom Afonso Henriques, estava expressamente determinado que quando o Rei falecesse sem filhos herdeiros lhe pudessem suceder seus irmãos, se os tivesse; mas porém que os filhos destes para entrarem na herança, terão necessidade de consentimento do Reino, e serem aprovados pelos três Estados dele. E enquanto o não fossem, não poderiam reinar. A qual Lei se guardou, e praticou, porque sucedendo no Reino, o Sr. Rei Dom Afonso III por morte do Sr. Rei Dom Sancho seu irmão, que faleceu sem filhos se tem por certo, que para o Sr. Rei Dom Dinis filho do Sr. Rei Dom Afonso III haver de entrar a reinar por morte de seu Pai, celebrou em sua vida Cortes em que o fez jurar por sucessor do Reino. E da mesma maneira faltando descendentes legítimos ao Sr. Rei Dom João II posto que declarou, em seu testamento por herdeiro, e sucessor ao Duque de Beja, que foi o Sr. Rei Dom Manuel filho do Infante Dom Fernando, irmão segundo do Sr. Rei Dom Afonso V. Contudo logo nas Cortes, que celebrou em Montemor-o-Novo, foi aceite por Rei pelos três Estados do Reino, que nelas se ajuntaram. Por onde ainda quando por falecimento do Sr. Rei Dom Henrique sem descendentes pudesse em caso negado ter direito de suceder o Rei Católico de Castela como sobrinho seu, não podia reinar, nem tomar posse do Reino, como de facto tomou sem primeiro ser aceite, e aprovado pelos três Estados juntos em Cortes, o que não foi.
E quando menos necessitava de esperar a determinação, e sentença do mesmo Reino junto em Cortes sobre a pretensão que tinha à sucessão dele. A qual não esperou, e antes dela se empossou entrando com armas. Nem deferiu ao Legado do Sumo Pontífice que assim lho encarregava da sua parte.
Logo por cada uma destas cabeças não teve título justo de reinar, e ficaram ele, e seus sucessores sendo intrusos, no sentido em que o direito chama tiranos aqueles que sem justo título ocupam o Reino, e podia, e pode agora o mesmo Reino reintegrar-se em seu direito, aclamando, e aceitando por Rei, o Sr. Rei Dom João IV como neto legítimo da dita Senhora Duquesa Dona Catarina a quem competia legitimamente o direito da sucessão dele.
5 ° Porque nas mesmas primeiras Cortes de Lamego, e as Leis, que se ordenaram sobre a herança, e sucessão do Reino, se determinou também que a filha fêmea do Rei, que casasse com Príncipe estrangeiro, que não fosse Português não pudesse herdar, nem suceder nele, para que assim nunca o Reino saísse fora das mãos dos Portugueses, nem reinasse nele pessoa que o não fosse. E nesta conformidade, deixando o Sr. Rei Dom Fernando uma filha casada com o Rei Dom João de Castela, foi excluída da sucessão, não somente por não ser legítimo, tendo-se por nulo o matrimónio do dito Sr. Rei Dom Fernando, com a Senhora Rainha Dona Leonor sua mãe, mas também por estar casada com príncipe estranho. E assim se assentou nas Cortes, que se celebraram em Coimbra, aonde os três estados o determinaram. E havendo o Reino por vago elegeram por Rei ao Senhor Rei Dom João I, Mestre de Avis, e filho (posto que ilegítimo) do Sr. Rei Dom Pedro donde ficou também por esta cabeça, faltando o direito de suceder, ao Católico Rei de Castela, por ser Príncipe estrangeiro, e podiam então, e pode agora o Reino aclamar, e obedecer por Rei, a seu Príncipe natural, o Sr. Rei Dom João IV, não só por título de legítima sucessão, mas também de eleição, que ficava competindo aos Povos, e Reino.
E quando estas razões não foram bastantes para justamente o poder fazer estando em contrário a posse de sessenta anos, que eram passados desde o tempo que o dito Rei Católico de Castela se empossou deste Reino no fim do ano de 1580 principiada e continuada por três actos de sucessão em sua pessoa, e na de seu filho o Católico Rei Dom Filipe III, e na de seu neto o Católico Rei Dom Filipe IV de Castela, e aprovada pelo mesmo Reino, nas Cortes, que celebraram em Tomar no ano de 1581, e nas que depois fizeram nesta Cidade de Lisboa no ano de 1619, nas quais ambas foram jurados, obedecidos, e reconhecidos por Rei deste Reino.
Se assentou, e determinou pelos mesmos três Estados, que quanto à posse posto que de tantos anos lhes não podia obstar, nem aproveitar aos ditos Reis de Castela, por ser a princípio violenta tomada com força de armas, e dos numerosos exércitos, com que o dito Rei Católico violentamente se empossou do Reino, e por ser atentada estando pendendo no juízo dos Governadores, a causa da sucessão sem esperar sua sentença, nem aprovação do mesmo Reino junto em Cortes. E a que teve haver sido somente de alguns particulares persuadidos com grandes mercês, que sem estarem em Cortes, a não podiam dar, e a sentença que depois alcançou haver sido nula, por não ser dada, por todos os Governadores do Reino, que o Senhor Rei Dom Henrique deixou nomeados, e faltando qualquer deles lhes faltava conforme o direito poder para sentenciarem. Além do que o fizeram em tempo que ainda [?] não tinham jurisdição para dar sentença, que competia somente aos três Estados do mesmo Reino iuntos em Cortes. E ultimamente por ser dada em Aiamonte lugar de Castela, onde (quando a tivessem) não podiam exercitar jurisdição. E assim começando a dita posse com o vício intrínseco da violência, e do atentado que nela se cometeu, estando pendendo o Juízo, mais ficou tirando o direito ao dito Rei Católico (quando o tivera) do que confirmá-lo.
Pois conforme as regras dele a posse violenta não causa prescrição, nem também nos Reinos a pode haver de menor tempo, que de cem anos. Nem finalmente pode correr contra o Reino, que nunca teve faculdade, e liberdade para a reclamar senão agora, e também era necessário pelo que tocava ao particular interesse dos pretensores, que contra um deles começasse a prescrição, e se cumprisse o tempo legítimo dela, o que não houve, nem se cumpriu.
E quanto ao juramento da obediência e fidelidade, que tinham dado nas ditas Cortes, aos ditos Reis Católicos de Castela, os não ligava, nem obrigava para se não poderem eximir de seu domínio, e sujeição. Porquanto o modo com que o Rei Católico Filipe IV, depois que sucedeu, governou este Reino era ordenado a suas comodidades, e utilidades, e não ao bem comum, e se compunha de quase todos os modos, que os Doutores apontam, para o Rei ser indigno de reinar.
Porque não guardava ao Reino seus foros, liberdades, e privilégios antes se lhe quebraram por actos multiplicados. Não acudia à defesa, e recuperação de suas Conquistas, que eram tomadas pelos inimigos da Coroa de Castela. Afligia, e anexava os Povos com tributos insuportáveis, sem serem impostos em Cortes fazendo com força às Câmaras do Reino, consentir neles. Gastava as rendas comuns do mesmo Reino, não somente em guerras alheias, mas também em coisas que não pertenciam ao bem comum dele. Aniquilava a nobreza, vendia por dinheiro os ofícios de Justiça, e fazenda. Provia neles, pessoas indignas, e incapazes. O estado eclesiástico, e Igrejas, eram oprimidos com tributos, tirando-lhe as rendas e dando-se às pessoas que davam os arbítrios, iníquos delas; e finalmente exercitava estas e outras coisas contra o bem comum por ministros insolentes, e inimigos da pátria dos quais se servia, sendo as piores pessoas da República.
Nos quais termos, ainda que os ditos Reis Católicos de Castela, tiveram título justo, e legítimo, de Reis deste Reino o que não tinham, e por falta deles, se não puderam julgar por intrusos. Contudo o eram pelo modo do governo, e assim podia o Reino eximir-se de sua obediência, e negar-lha sem quebrar o juramento que lhe tinha feito. Por quanto conforme as regras de direito natural, e humano, ainda que os Reinos transferissem nos Reis todo o seu poder, e império para os governarem, foi debaixo de uma tácita condição de o regerem, e mandarem com justiça, sem tirania, e tanto que no modo de governar usarem delas, podem os Povos privá-los dos Reinos, em sua legítima natural defesa, e nunca nestes casos foram vistos obrigar-se, nem o vínculo do juramento estender-se a eles.
E assim sendo tudo o sobredito certo em facto, e tão notório, que não necessitava de prova judicial, nem ao Rei Católico de Castela podia competir legítima defesa para com ela haver de ser ouvido, nem haver outro legítimo sucessor a quem se pudesse recorrer, e não, aproveitarem as muitas queixas, e lembranças que os Tribunais do Reino, e pessoas graves dele fizeram por muitas vezes ao mesmo Católico Rei de Castela e com a demonstração que haviam feito os Povos de Évora, e de outros lugares do Reino para se livrarem da opressão dos tributos sem consentir com eles a nobreza, não havia bastado para o governo se emendar, antes com isso se piorou. Assentou justamente o Reino congregado nestes três estados, usando de seu poder, e em sua natural defensa, negar-lhe a obediência, e dá-la ao Sr. Rei Dom João IV, que pelo direito derivado da Senhora Duquesa Dona Catarina sua Avó, era o legitimo Rei, e sucessor deste Reino.
E pelas mesmas razões podia ele justamente aceitar a aclamação, e restituição que dele se lhe fez, e desforça-se e restituir-se ao Reino, pois em sua pessoa tinha radicado o direito da sucessão dele, e com violência e força de armas se havia tirado à Sr.ª Duquesa sua Avó, e nem ela, nem o Sr. Duque Dom Teodósio seu filho em suas vidas tiveram faculdade para sem perigo evidente delas, e de sua casa o fazerem. Antes o mesmo Senhor Duque Dom Teodósio fez seu legítimo protesto, e reclamação por escrito, quando jurou aos Católicos Reis de Castela nas ditas Cortes, e esse de sua própria letra, e sinal, tomando nele por testemunhas aos Santos do Céu, por se não poder fiar naquela conjunção das pessoas da terra, nos quais termos ainda que se não intimasse judicialmente lhe ficou conservando seu direito, para quando houvesse faculdade de poder desforçar-se, e usar dele para si, ou por seus sucessores. A qual somente agora teve, e o pode fazer o Sr. Rei Dom João seu neto, pela aclamação unânime, e restituição, que o Reino todo lhe fez, não somente de rigor de justiça pelo direito que tinha da sucessão, mas juntamente pelas grandes qualidades, excelências, e virtudes, que concorrem em sua Real pessoa bastantes para sem outro direito poder, e dever ser eleito por Rei destes Reinos, suposto o estado, a que o chegaram com seu governo os ditos Reis Católicos de Castela.
E para constar do sobredito, e do que nisto o Reino obrou, entendendo ser vontade de Deus nosso Senhor, que para este tempo foi servido reservar a restituição dele, com manifestos sinais do Céu fizeram os três estados, este breve assento firmado por todos, para ficar sendo o princípio destas Cortes e ficar manifesta em todo o tempo a justiça e razão com que assim se determinou, e executou, deixando a comprovação de tudo o sobredito no facto, e no direito ao Livro que em nome do Reino, se divulgara, e imprimira, sobre esta matéria.
Escrito em Lisboa aos cinco dias do mês de Março de mil e seiscentos e quarenta e um anos, por Sebastião César de Meneses, Secretário do Estado da Nobreza, Doutor nos Sagrados Cânones, Inquisidor da Suprema, do Conselho do Rei nosso Senhor, e Desembargador do Paço; e assinaram juntamente as pessoas que assistem em Cortes pelos três Estados do Reino, segundo o uso e costume dos mesmos Reinos.
[segue-se a lista dos procuradores às Cortes assinantes do documento]
Dom
Pedro, Príncipe Regente
"Sem haver meio para Sua Majestade o reconhecer e evitar, acudindo com remédio a seus Reinos, (...) não se achando nenhum para Sua Majestade perder o costume de sofrer mal o advirtam do que convém, descompondo aos que o intentam fazer, sem perdoar ao amor da Esposa, ao respeito do Irmão, à estimação dos Grandes de seus Reinos, à necessidade e agradecimento dos criados."
De acordo com Jorge Borges de Macedo "a revolução de palácio ocorrida em Outubro de 1667, que levou à demissão e fuga do [conde de Castelo Melhor] e à consequente substituição do rei por seu irmão D. Pedro, como regente, integra-se, pois, na sua definição inicial, nestes confrontos [de correntes políticas diversas ancoradas no Estado absoluto. (...) uma delas defendendo, como forma de governo, o regionalismo e a maior consulta dos notáveis; outra defendendo a centralização], e onde a política externa toma uma forma mais saliente. E coincide com os esforços do partido francês para manter a hegemonia na corte portuguesa. (...) O golpe de Estado preparado com a conivência da rainha, Maria Francisca Isabel de Sabóia, mulher de D. Afonso VI, rei de Portugal, foi assim uma última tentativa de a França alcançar uma posição de tutela sobre as decisões portuguesas, em matéria de política externa."
O Manifesto do Infante Dom Pedro de 1667
Obrigado das necessidades e perigos em que se vêem estes Reinos, e das instâncias que sobre seu remédio me tem feito muitos Vassalos deles, dos maiores na idade e na qualidade, mais zelosos e mais empenhados em sua conservação, desejo há muitos dias de achar meios suaves para atalhar os danos que já de tão perto os ameaçavam; mas não me foi possível; porque desde o dia em que algumas pessoas levaram a El-Rei meu Senhor a Alcântara, e tumultuosamente lhe fizeram tomar naquela Quinta o Governo de seus Reinos, persuadindo-lhe que a Rainha, minha Mãe e Senhora, que Deus tem, e os Ministros, de que El-Rei, meu Senhor e Pai e ela faziam muita confiança, lhe dilatavam a entrega do governo com intento de lhe tirar a Coroa, se não fiou Sua Majestade de mais pessoas que daquelas, e de outras escolhidas para lhe impedirem os meios de conhecer tão prejudicial engano; atrevendo-se, para que não houvesse quem lhe mostrasse e perturbasse sua valia, a levar, sem outro fim, a uma prisão afrontosa, e a matar cruelmente nela, a Rainha, minha Mãe e Senhora; causa bastante para padecermos maiores castigos, e a desterrar desta Corte tão grandes pessoas, por tanto tempo, e para tão ruins lugares, em que receberam os danos que são notórios; sendo o maior, impedirem por este modo o remédio com que a Rainha queria atalhar, e atalhara com efeito, os males em que nos vemos, admoestando a EI-Rei, com os meios que havia de mister o seu natural; e tirando-lhe e dando-lhe os Criados que haviam, mister seus anos: mas fez-se o contrário, deixando cercar EI-Rei, e ajudando-o a isso de homens de má vida, buscados e escolhidos em todo o Reino, dando-lhes grossos salários, e premiando com grandes mercês seus delitos, com gravíssimo dano da consciência, autoridade e reputação d'EI-Rei, perturbação desta Coroa, e escândalo do Mundo: cresceram tanto os desmanchos, e com eles a valia daqueles homens, que, privando a Sua Majestade de toda a acção própria, se fizeram senhores de sua vontade e de tudo, até dos caixilhos com que se firmam os despachos, que tinham em seu poder, procurando e conseguindo de Sua Majestade, que, se alguma pessoa lhe dissesse qualquer coisa em menos abono seu, a tratasse com tal desabrimento, que se lhes não atrevesse ninguém, não exceptuando desta regra nem a mim, nem (o que mais é) a Rainha, minha Senhora; imprimindo tão vivamente no ânimo de Sua Majestade o costume de tratar mal os Vassalos, que sem respeito a serem os maiores, e a não darem causa, usava com eles o que com tanta vergonha nossa vimos todos tantas vezes. Entendeu-se da Rainha minha Senhora e de mim que desejávamos emendar estes danos; e bastou isto para nos tratarem de maneira, que, queixando-me eu de me quererem tirar a vida com peçonha, nem foi querida nem despachada a minha queixa, como houvera de ser, se fora de qualquer particular, e se tratou a Real Pessoa da Rainha, minha Senhora, com tão pouco respeito, que foi necessário que a Nobreza e Povo desta Corte acudisse por ela, com o empenho que se viu: e nem isto bastou para se dar satisfação à Rainha, antes a ela e aos mais nos fizeram as afrontas que com tanta obediência sofremos naquele dia; e para se tirar da vista da Rainha o instrumento do seu desgosto, foi necessário afastá-lo do Paço com indústria; O Ministro de que me queixei se retirou desta Corte muito contra vontade de Sua Majestade; e prometendo o deixaria com liberdade, o fez tanto pelo contrário, que lhe deixou um papel com instrução do que havia de fazer, e das pessoas de que se havia de assistir, dos despachos e mercês que havia de publicar, dispondo por avisos e cartas o Governo de tudo, continuando ausente nos danos que, sendo presente, fazia, sem haver meio para Sua Majestade o reconhecer e evitar, acudindo com remédio a seus Reinos, que se acham sem Justiça, sem Fazenda, exaustos de tudo o necessário para sua defesa, empenhados, afligidos, e em muita parte desconfiados de seu remédio, não se achando nenhum para Sua Majestade perder o costume de sofrer mal o advirtam do que convém, descompondo aos que o intentam fazer, sem perdoar ao amor da Esposa, ao respeito do Irmão, à estimação dos Grandes de seus Reinos, à necessidade e agradecimento dos criados. Quis o Reino, pelos Ministros do Senado da Câmara desta Cidade, e pelos Procuradores das mais principais do Reino, valer-se do remédio de Cortes, ajudando-o com muitas e apertadas instâncias o Conselho de Estado; e desenganados de o conseguir deram na desesperação de protestarem haviam por levantadas as contribuições com que se sustenta a guerra.
Pôde esta violência o que não pôde a razão; e assinando Sua Majestade o primeiro dia de Janeiro para se celebrarem, logo o mudou, e o tornou a mudar; e sendo já o tempo tão pouco, não tem partido ás Câmaras Carta alguma, nem ainda tem ido à do Senado da Câmara desta Cidade; e por não haver persistência em nada, se tem por duvidoso o fruto que se procura tirar deste remédio.
Resolveu-se Sua Majestade a deixar esta Corte (que nunca podia ser a bons fins) e ainda está com este propósito. Procurei por todos os meios ajudá-lo no governo, unindo-me com ele, de maneira que com o trato e com o tempo pudesse melhorar algumas coisas; mas não deu lugar a isso a sua desconfiança, e tem mostrado a experiência não poderia ser durável a nossa união, antes que o querer persistir nela, seria ocasião de maiores danos. Sobre tantos sentimentos nos sobreveio o maior da ausência da Rainha, minha Senhora, sucesso tal e tão grande, que não há palavras com que dignamente se possa falar nele.
Ultimamente, acudindo o Senado da Câmara desta Cidade, e o melhor do Povo dela, ajudado de quase toda a Nobreza, ao que em mim parecia descuido, me veio buscar, e obrigar, quase com demonstração de violência, a tomar o Governo destes Reinos.
Por estas razões, e por outras causas, que são notórias (alem das que o não são) que o respeito não deixa referir, perdida totalmente a esperança de achar remédio com que acudir a este Reino, receando com justa causa brevemente maiores danos, me foi forçado usar do último, obrigado da consciência; da honra e do amor que tenho à Real Pessoa d'EI-Rei, meu Senhor, e a estes seus Reinos, e me resolvi. encomendando-o, e fazendo-o encomendar primeiro muito particularmente a Deus, a recolher (com o decoro que é devido) a Real Pessoa de Sua Majestade, até estes Reinos, juntos em Cortes, para o que irão logo avisos, determinarem, com toda a jurisdição que tem, o remédio que julgarem por conveniente à sua necessidade.
E porque, em falta da Rainha, me toca o Governo deles, enquanto não resolverem outra coisa, o farei, sem perdoar a nenhum trabalho, com todo o desejo de acertar. E para que seja assim, encomendo muito particularmente aos Ministros do Desembargo do Paço, me ajudem, como eu espero e mereço a todos, advertindo-me do que devo fazer para contentar a Deus, e servir bem a EI-Rei, meu Senhor; e se há-de advertir que os despachos e tudo o que se fizer há-de ser em nome de Sua Majestade, assim e da maneira que se fazia no tempo da Regência da Rainha, minha Mãe e Senhora, conservando hoje, como então se conservava, toda a autoridade na Real Pessoa de Sua Majestade, e no serviço de Sua Casa, assim dentro como fora dele, de que sairá logo que as Cortes tomem Assento no Governo destes Reinos, com os quais espero se conformará Sua Majestade, fiando do acerto de tantos a escolha do sujeito ou sujeitos que os houverem de governar, de que Sua Majestade deve fiar-se, assim como fiava tudo dos que escolheu; e ainda que hajam de governar com toda a jurisdição, sempre hão de ter muito respeito ao que entenderem é justamente gosto de Sua Majestade para o seguirem ~ e não é razão sejam estes Reinos tão desamparados que lhes falte o remédio que as leis deles dão aos homens que dissipam, não só a reputação, mas a fazenda própria, não tendo os Reis no Património da Coroa mais que a boa administração.
E protesto uma e muitas vezes, que estou, e estarei sempre, em quanto a vida me durar, aos Reais pés de Sua Majestade, com a lealdade que lhe devo, como a meu Rei e Senhor, e com o muito grande amor que lhe tenho, como a Irmão e a Pai, que nesta conta o tenho, e tive sempre, depois que me faltou EI-Rei, meu Senhor, que Deus tem; e com resolução muito firme de defender em sua Real Pessoa, e nas de seus descendentes, as regalias que lhes pertencem, jurando diante da Majestade de Deus a vassalagem e homenagem que lhe devo, assim e da maneira que lha juram os que mais perfeitamente a juram em suas Reais mãos.
Encomendo muito ao Desembargo do Paço tenha entendido tudo o referido neste Decreto, e que na conformidade dele continue o despacho dos negócios que lhe tocam.
Em Lisboa, a 24 de Novembro de 1667.
INFANTE.
Dom
Luís da Cunha
Célebre diplomata no tempo de D. João V, comendador da Ordem de Cristo, arcediago da sé de Évora, desembargador do Paço, enviado extraordinário às cortes de Londres, Madrid e Paris, e ministro plenipotenciário de Portugal no congresso de Utreque; académico da Academia Real de História, etc.
Nasceu em Lisboa a 25 de janeiro de 1662, e faleceu em Paris a 9 de Outubro de 1749. Era filho de D. António Álvares da Cunha, guarda-mor da Torre do Tombo, e sobrinho de D. Sancho Manuel, conde de Vila Flor. Seguiu muito moço os estudos da Universidade de Coimbra, onde se graduou na faculdade de direito canónico, e tendo desde logo mostrado extraordinário talento, foi nomeado em 1686, quando terminou o curso, desembargador da Relação do Porto, contando apenas vinte anos de idade, passando depois para a de Lisboa.
Em 1696 foi nomeado embaixador na corte de Londres, em que revelou exuberantemente a sua grande vocação para a diplomacia. No ano de 1712 recebeu a nomeação de ministro plenipotenciário no congresso de Utreque, para auxiliar o conde de Tarouca, que já estava encarregado das negociações da paz. Assinou nesse ano a suspensão das armas, a que se seguiu o tratado, celebrado entre Portugal, França e Espanha, que veio a ser assinado em 1715, o qual pôs termo à Guerra da Sucessão de Espanha. Depois voltou a Londres como embaixador extraordinário, a felicitar o rei Jorge I, de Inglaterra, pela sua elevação ao trono, acompanhou este monarca a Hanôver, donde novamente partiu para Londres. Em seguida foi enviado a Madrid, que estava sendo governada pelo cardeal Alberoni. Teve graves contendas com este fogoso ministro, que numa ocasião, por causa duma reclamação de seiscentas mil patacas que Portugal apresentava, o tratou injuriosamente, chegando a voltar-lhe as costas. D. Luís da Cunha procedeu então com toda a energia. Dotado dum fino tacto diplomático, percebeu que nessa ocasião não convinha à Espanha ter guerra com Portugal; era no tempo em que o embaixador espanhol em Paris, o príncipe de Cellamare, conspirara contra o regente, sendo a conspiração descoberta. A França declarara guerra à Espanha, o marechal de Berwick invadira as províncias setentrionais da península, e Alberoni não podia desejar que um exército português o obrigasse a chamar para as suas fronteiras ocidentais uma parte das forças, que lhe eram tão precisas nos Pirenéus. Por isso, D. Luís da Cunha mostrou-se resoluto e exigente, e conseguiu da Espanha pleníssimas satisfações. Depois foi nomeado ministro plenipotenciário ao congresso de Cambrai, que não se realizou, e permaneceu em Paris, até que se viu obrigado a sair, em resultado duma desavença que o procedimento do abade de Livry, ministro de França em Portugal, suscitou: o abade de Livry pediu os seus passaportes, e D. Luís da Cunha pediu logo também os seus, e foi para Bruxelas, e dali mesmo esteve negociando com o governo francês para pôr termo a este estado de coisas, o que efectivamente conseguiu, chegando a um acordo com o marquês de Fénelon, ministro francês em Haia.
Voltou então a Paris, onde se conservou até falecer, como ministro de Portugal naquela corte, sendo encarregado de muitas e importantes missões, em que sempre se houve com reconhecido zelo e subida inteligência, pelo que, segundo diz um escritor, os ministros das outras nações o tinham por oráculo. Paris era a terra da sua maior predilecção; apreciavam muito o seu elevado talento, e consultavam-no nos casos difíceis. Mr. Beauchamp dizia que D. Luís da Cunha era entre os portugueses um quinto evangelista. O marquês d'Argenson propôs-lhe uma vez, que alcançasse que Portugal se apresentasse como mediador para pôr termo à guerra entre a França e a Prússia. D. Luís mostrou-se muito partidário desta ideia, e assim o escreveu para Portugal. São muito curiosas as cartas que se trocaram em 1746 e 1747 entre D. Luís da Cunha e Alexandre de Gusmão, a este respeito.
No meio duma vida agitada e cheia de cuidados, D. Luís não deixou de cultivar as letras, merecendo entre os seus escritos o primeiro lugar, as suas Memorias, que o celebre diplomata ofereceu à Biblioteca Real, as quais são a história política da Europa durante meio século, que, se conservam inéditas, e das quais dizem existir um exemplar na Torre de Tombo, além de outras cópias que ainda ficaram. É curioso, porém, que de três cópias que se conhecem, uma é em três volumes, outra em quatro, outra em seis, significando não o diverso tamanho do volume, mas o serem versões diversas, muitas mais resumidas que outras. Entre várias cartas de D. Luís da Cunha entre as quais algumas podem ser taxadas de apócrifas, torna-se célebre uma que dirigiu a D. José I, sendo ainda príncipe, em que lhe dá conselhos muito proveitosos para o governo do país, e indicando-lhe para ministro Sebastião José de Carvalho e Melo. Esta carta judiciosa recomenda a reforma do exército, da marinha e da magistratura, a criação da polícia da corte, o fomento da indústria, a abertura de rios e canais e a tolerância religiosa. Foi impressa em 1820, com o título de: Testamento politico, ou carta escrita pelo grande D. Luís da Cunha ao senhor rei D. José l antes do seu governo; Este documento havia sido publicado no Investigador português, e foi depois publicado por António Lourenço Caminha, em 1821, no seu livro: Obras inéditas do grande exemplar da ciência do Estado, D. Luís da Cunha a quem o marquês de Pombal Sebastião José de Carvalho e Melo chamava seu mestre etc. comentadas e consagradas ao muito alto e poderoso senhor D. João VI rei do reino unido, etc., tomo 1.º. O segundo tomo não chegou a publicar-se. Dom Luís da Cunha foi figura emblemática da política interna e externa de Portugal na primeira metade do século XVIII, sob o reinado de Dom João V. A serviço da Coroa, Dom Luís da Cunha viveu quase toda a sua vida no estrangeiro, servindo como embaixador nas grandes cortes da Europa e participando, direta ou indirectamente, dos grandes acordos diplomáticos de seu tempo, como Utrecht e Cambrai. Era um homem instruído e grande observador e crítico da realidade portuguesa, advogando uma transformação na inserção de Portugal na orquestra política das nações europeias e também na sua relação com suas conquistas ultramarinas, especialmente com o Brasil. Apesar de distante do reino, manteve intensa e ininterrupta correspondência com os principais artífices e pilares da política portuguesa de seu tempo, municiando-os com seus conselhos e com sua visão de mundo. Seus conselhos transcenderam o espaço e o tempo, não só porque estiveram sob sua protecção e tutela educacional grandes nomes da política portuguesa, como Marco Antônio de Azevedo Coutinho ou o futuro Marquês de Pombal, mas também porque suas Instruções e seu Testamento Político (este último endereçado directamente a Pombal) fundava toda uma agenda a ser seguida por Portugal nos anos vindouros. Assim, com seus conselhos ele acreditava ser “o oráculo que S. Majestade foi buscar”.
Procura-se analisar a visão de dom Luís da Cunha acerca da geopolítica portuguesa a ser formulada para a América ao longo do século XVIII, acentuando que, para ele, o estabelecimento de uma política para a área era indissociável do aprofundamento do conhecimento geográfico da região. Essa transitividade entre geografia e política foi por ele desenvolvida durante sua actuação nos diversos tratados de paz que participou e que, entre tantos outros assuntos, se debruçaram sobre a questão dos limites entre as coroas de Portugal e da Espanha no Novo Mundo. Para dom Luís da Cunha, a solução desse conflito era prioritariamente uma questão de diplomacia, mas esta não podia prescindir de um conhecimento mais aperfeiçoado da geografia do Brasil. Para isso, buscou convencer a Coroa da necessidade de ampliar o conhecimento do território e não se fartou de contribuir direta e indirectamente para a produção de mapas mais precisos da região. É neste contexto que se insere a Carte de l’Amérique Méridionale, de autoria de Jean-Baptiste Bourguignon D´Anville, geógrafo do rei da França. Produzida por encomenda do célebre embaixador, primeiramente numa versão manuscrita em 1742, foi posteriormente publicada em 1748, um ano antes de sua morte. Na visão de dom Luís da Cunha, a carta deveria servir aos propósitos da Coroa nas negociações dos limites com os espanhóis na América. Porém, como se discute a seguir, o mapa não desempenhou papel algum nessas negociações, o que revela algumas das discrepâncias entre a sua visão geopolítica para a América e a que foi levada a cabo pelos representantes portugueses durante as negociações do ‘Tratado de Madrid’.
Dom Luís da Cunha foi um dos ícones de um importante grupo que se estruturou em torno de dom João V, chamados por alguns de os estrangeirados. Eram homens que se caracterizaram por sua abertura e trânsito intelectual com o mundo europeu e que tinham na viagem o principal mecanismo do aprendizado e de formação de um conhecimento capaz de contribuir para o desenvolvimento político, económico e intelectual do Reino. Fortes defensores do pragmatismo e do empirismo, eram homens viajados, sendo que vários deles estiveram, como funcionários régios, no Brasil (alguns inclusive eram originários de lá) ou em outras partes do império marítimo português que se estendia pelas quatro partes do mundo. Parte dessa elite intelectual foi promovida por Dom João V, e muitos se tornaram ministros do governo, membros da administração no reino e no ultramar, diplomatas ou participavam das articulações políticas do Conselho Ultramarino, discutindo amplamente as questões do Império, quase sempre num carácter privado, mas alguns de seus membros participaram da Academia Real de História Portuguesa, surgida a partir da Academia dos Generosos fundada pelo pai e pelo tio de Dom Luís da Cunha e pelo Conde de Ericeira. Outro importante mecanismo de intercâmbio de ideias entre esses homens, muitas vezes geograficamente distantes, foi a farta correspondência trocada entre eles, da qual se destaca a de Dom Luís da Cunha, que em grande parte sobreviveu até os dias de hoje.
Desde 1719, o Conselho Ultramarino, órgão gestor da política colonial portuguesa, recomendava que se incentivasse a produção de mapas sobre o Brasil, e entre outras iniciativas nesta direção, a Coroa enviou ao Brasil os jesuítas Domenico Capacci e Diogo Soares, os chamados “padres matemáticos”, encarregados de realizar um grande levantamento cartográfico, que deveria ser reunido no Novo Atlas da América Portuguesa.
Por
essa mesma época, quando já se encontrava em Paris, Dom Luís da Cunha tomou
também para si parte da tarefa de contribuir para a produção das cartas
geográficas necessárias para o melhor conhecimento do império português. Essa
febre cartográfica se acirrou quando, em 1720, Delisle, geógrafo oficial do rei
da França, leu na Academia de Ciências uma memória sobre a medida das
longitudes que, entre outros tópicos, propôs nova interpretação sobre o real
posicionamento do Tratado de Tordesilhas, o que imprimia novas feições às
disputas lusas e espanholas na América. Ainda na década de 1720, Dom Luís da
Cunha se aproximou de um cartógrafo em ascensão que serviria melhor a seus
propósitos: tratava-se do então jovem D’Anville. A partir de 1742, esta
colaboração se consubstanciará na produção de uma carta sobre a América
meridional, demonstrando que Luís da Cunha estava a par de que se avizinhava o
momento de estabelecer negociações com a Coroa espanhola sobre os limites entre
as duas nações no Novo Mundo. Esta estreita colaboração que resultou na
confecção da Carte de l’Amérique Méridionale se concretizou a partir do
intercâmbio de um conjunto de documentos, hoje dispersos em alguns arquivos,
muitos deles foram fornecidos a D’Anville por Dom Luís da Cunha. Eles serviram
de base, juntamente com parte da tradição cartográfica vigente, a qual muitas
vezes era posta em dúvida por estes documentos, para que ele pudesse imprimir à
América portuguesa novos e mais precisos contornos.
Esse cuidado, por parte de dom Luís da Cunha, de ajudar a produzir o mapa o mais preciso sobre a América do Sul se explica porque ele partilhava da crença no poder imperativo dos mapas – como espelho fiel do território representado. (Essa visão iluminista da cartografia também era partilhada por d’Anville – como por vários outros cartógrafos da época – o que explica sua constante busca no aperfeiçoamento das suas cartas). Dom Luís formou essa consciência do poder da cartografia ao longo das contínuas embaixadas que representou Portugal durante a primeira metade do século XVIII em diversos países da Europa. Durante a Guerra de Sucessão Espanhola (1700-1713), que acabou por envolver quase todas as nações da Europa Ocidental, inicialmente, Portugal inclinou-se a defender a proposta francesa, na tentativa de solucionar a crise da falta de sucessão ao trono espanhol. Acabou por ceder à pressão inglesa e, por isso, finalmente envolveu-se na guerra tomando o partido da Inglaterra. Mas o campo de batalha para os portugueses não se limitou às fronteiras europeias com a Espanha. No contexto da Guerra, tanto espanhóis quanto franceses invadiram territórios na América, até então ocupados pelos portugueses. Os franceses tomaram terras na região amazónica, nas fronteiras com a guiana Francesa e os espanhóis a Colônia do Sacramento, enclave português situado nas margens do rio da Prata, local estratégico para que Portugal pudesse usufruir do contrabando da prata produzida na área andina.
Nos acordos diplomáticos que se seguiram à Guerra, a restituição da região amazónica, ocupada pelos franceses, e da Colônia do Sacramento foram temas recorrentes. Como as palavras acordadas nos tratados quase nunca sanaram as controvérsias sobre as áreas em disputa, dom Luis começou a advogar a produção de mapas que suprissem essa necessidade. Dom Luís da Cunha negociou no ‘Tratado Provisional’, celebrado em 1º. de maio de 1681 “entre o Sr. Rei Dom Pedro de Portugal e Carlos 2º. Rei de Castela”, que as possessões das duas coroas na região do Rio da Prata respeitariam o princípio de al presente la tiene, “desta forma ficou estabelecido que a colônia do Sacramento ficasse pertencendo à Coroa portuguesa”. Esse acordo não impediu que os espanhóis invadissem a área A restituição desta praça aos portugueses foi novamente acordada no ‘Tratado de Utrecht’, com participação activa de Dom Luís da Cunha, mas os espanhóis se recusaram a cumprir as cláusulas, levando à continuidade dos esforços diplomáticos portugueses para pôr fim a essa disputa. Ao longo dessa negociação dom Luis sentiu de perto o poder e os dessentidos que as palavras contidas nas cláusulas de um acordo poderiam trazer. A expressão al presente la tiene gerou muitas controvérsias. Os espanhóis insistiam que o território da Colônia que deveria ser restituído aos portugueses se limitava ao alcance de um tiro de canhão. Dom Luís fora o principal responsável por incluir no tratado a palavra território da Colónia do Sacramento, esperando com isso que a possessão portuguesa não ficasse restrita à fortaleza até então construída no local.
De fato, dom Luís da Cunha chegou a enviar uma cópia manuscrita da Carte de l’Amérique Méridionale, de d’Anville para Madrid em 1747, na esperança de que ele cumprisse sua função: dar a ver o continente americano não deixando dúvida sobre o território que fosse acordado entre os diplomatas espanhóis e portugueses. A estreita colaboração entre dom Luís da Cunha e D’Anville para a confecção da Carte de l’Amérique Méridionale se delineou a partir de um conjunto de documentos (mapas, tábuas de latitudes e longitudes, livros e relatos), em sua maioria de origem luso-brasileira, hoje dispersos em alguns arquivos, que o embaixador português forneceu ao cartógrafo e que serviram de base, juntamente ou em contraponto com parte da tradição cartográfica vigente, para que o cartógrafo pudesse imprimir à América portuguesa novos e mais precisos contornos. Distante em seu gabinete na França, esses mapas e relatos se tornavam os olhos do cartógrafo sobre o espaço a ser representado, as fontes de uma geografia vivida. O exame dessa documentação permite perceber como o cartógrafo elegia algumas fontes em detrimento de outras, submetendo-as a critérios de validação que garantiam, ou não, a sua confiabilidade. Uma vez escolhidas, ele as consolidava em um mapa marcado pelo signo das Luzes. Essa documentação também lança luz sobre as redes de informação que o embaixador teceu para se municiar com informações precisas não só sobre o território brasileiro mas também sobre o que se passava na região, questões despertadas por seu interesse geopolítico. Muitos dos elos dessa rede eram membros dessa elite portuguesa esclarecida, o que pode ser percebido pelo exame da correspondência de dom Luís da Cunha.
Por essa mesma época, o conhecimento português disponível sobre o Brasil foi sintetizado, em 1746, no mapa intitulado Descrição do Continente da América Meridional..., confeccionado no Rio de Janeiro sob os auspícios do Governador Gomes Freire de Andrade, sendo posteriormente enviada a Portugal.
Porém, por ordem de Alexandre de Gusmão, nem o mapa de d’Anville nem a carta de 1746 foram apresentadas pelo embaixador português em Madrid, Tomas da Silva Teles, visconde de Vila Nova de Cerveira, aos embaixadores espanhóis. Para isso foi confeccionado em Lisboa, em 1749, sob os auspícios de Alexandre de Gusmão, o mapa intitulado Mapa dos confins do Brazil..., também conhecido como Mapa das Cortes. Essa carta geográfica foi apresentada pelos portugueses durante as negociações, e se tornou a peça cartográfica chave para o estabelecimento dos limites no ‘Tratado de Madrid’. No entanto, o mapa apresentava sérias inexactidões, “principalmente por estar viciado nas longitudes, apesar de só as latitudes estarem numeradas. Com esse estratagema, a área extra-Tordesilhas do Brasil era, por exemplo, bastante diminuída, o que dava a impressão de haver poucos ganhos territoriais para os portugueses a oeste deste meridiano”.
Vários centros urbanos importantes do interior do Brasil foram deslocados para o oriente, sendo que a cidade de Cuiabá foi deslocada em cerca de 5º, aproximando-a do meridiano de Tordesilhas, e a distância entre os meridianos de Belém e da Colônia de Sacramento foi estabelecida em apenas 7º. e 20´.[21] Foram estas imprecisões do Mapa das Cortes e o esforço dos portugueses em torná-lo o espelho oficial das feições reais da América Meridional que provocaram posteriormente um debate académico, que teve como centro a Real Academia de Ciências de Paris, sobre a Carte de l’Amérique méridionale, de D’Anville.
Por seu turno, a Carte de l’Amérique méridionale, de D´Anville, que espelhava a concepção geopolítica de dom Luís da Cunha, representava o território português na América com feições muito mais próximas do real. Não se observa um deslocamento geográfico para leste, deixando grande parte do território português na porção extra-Tordesilhas. Isso evidencia as máximas que, segundo dom Luís, deveriam guiar as negociações: sem escamotear a realidade geográfica, as negociações deveriam se guiar pelo já acordado em tratados anteriores, respeitando as balizas naturais do terreno e o uti possidetis. A representação das porções sul e oeste do Brasil são ilustrativas das ideias do embaixador, evidenciando as possibilidades de trocas de terrenos entre as duas Coroas: no sul, desde a capitania de São Paulo, o Brasil se prolonga numa estreita faixa litorânea que margeia as lagoas dos Patos e Mirim, e termina pouco antes da foz do rio da Prata, excluindo a Colônia do Sacramento e os Sete Povos das Missões, posicionados evidentemente em região para além do Meridiano de Tordesilhas; a oeste a linha de limites proposta preserva na porção portuguesa as áreas de Goiás, Mato Grosso e, no norte, a região Amazónica, apesar de todas estarem posicionadas também em território extra-Tordesilhas.
As discrepâncias entre os dois mapas denotam que, apesar do pensamento político de dom Luís da Cunha ter sido levado a cabo pelos negociadores de Madrid em parte por influência do próprio Alexandre de Gusmão, a visão geopolítica do território e a forma de condução das negociações eram divergentes. Para o experiente embaixador, tratava-se de apresentar com maior acuidade o território, partilhando o conhecimento que os portugueses reuniram com os embaixadores espanhóis, e encaminhar a solução dos conflitos para a questão diplomática. Para o valido do rei, impunha-se a necessidade de escamotear as reais feições do território de modo que as negociações, tomando proveito do desconhecimento dos espanhóis no tocante a significativas porções terras, se fizessem de maneira que os mesmos aceitassem as proposições portuguesas.
Por paradoxal que possa parecer, os dois mapas colocavam em lados opostos os dois antigos aliados: Alexandre de Gusmão e Luís da Cunha. Assim é que, para servir aos propósitos que ambos entendiam serem os da Coroa portuguesa, o Mapa das Cortes distorcia as dimensões da América e a Carte de l’Amérique méridionale procurava restabelecer, sob princípios muito claros, suas reais dimensões. No contexto do Tratado de Madrid, a visão de Alexandre de Gusmão saiu vencedora e, a despeito dos esforços de D’Anville na defesa de sua conformação territorial da América, foi o Mapa das Cortes que serviu como base para o estabelecimento do Tratado. Para colocá-lo em prática, foram definidas partidas bilaterais para estabelecer os marcos de pedra que demarcassem os limites da América. Quando as partidas começaram a tomar as medidas locais, as distorções do Mapa das Cortes começaram a se tornar evidentes.
Foram estas imprecisões que provocaram, nos anos seguintes, o debate académico sobre as diferenças entre os dois mapas, opondo de um lado a visão geopolítica de Alexandre de Gusmão, e de outro, a de dom Luís da Cunha. As contínuas negociações entre as duas coroas, após Madrid (‘Tratado do Pardo’ - 1761 e ‘Santo Ildefonso’ - 1777) se mostraram para que d'Anville se levantasse em defesa da sua Carte de l'Amérique méridionale e redigisse cinco Memórias em sua defesa, nas quais, com algumas variantes, esclarecia as fontes utilizadas na confecção do mapa e a profícua colaboração estabelecida com dom Luís da Cunha. Nos anos seguintes, o debate se cristalizou numa disputa que passou a ser travada no campo da linguagem, e que tinha a comunidade internacional de savants como espectadores e juízes da contenda. Mas não seria a vitória no campo semântico e sim a precisão das informações cartográficas que se tornaria, com o passar do tempo, a peça fundamental que daria credibilidade a um dos dois projetos cartográficos e, a despeito do esforço dos portugueses em tornar o Mapa das Cortes o espelho das feições da América, foi a Carte de l'Amérique méridionale quem mais se aproximou da conformação real desses continentes.
Testamento Político, de Dom Luís da Cunha
“Deus não pôs os ceptros nas mãos dos príncipes para que descansem, senão para trabalharem no bom governo dos seus reinos”.
O testamento Político de Dom Luís da Cunha foi uma das obras políticas mais lidas e conhecidas no Portugal da segunda metade do século XVIII, mesmo que só tenha circulado por meio de cópias manuscritas. Apresentado pela primeira vez em 1815 no Observador Português, jornal português publicado em Londres, foi impresso em livro em 1820, e só reeditado em 1943 pela “Seara Nova”, havendo uma edição brasileira de 1960.
O texto, considerado por um breve momento, uma possível invenção do Liberalismo, é hoje em dia aceite como completamente genuíno, terá começado a ser redigido em 1747. Esta obra, sempre citada por propor ao futuro rei D. José a nomeação de Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro marquês de Pombal, para secretário de estado do reino, é muito mais importante do que esse mero fait-divers, já que apresenta um programa político de governo ao naquele momento ainda príncipe do Brasil.
O programa, longe de ser o de um estrangeirado empedernido como uma certa historiografia ainda hoje o mostra, não sai quase nunca dos limites do pensamento político tradicional português do século XVIII, mostrando o rei como chefe das famílias (um senhor de Casa) que o é também Príncipe, senhor do Reino, remetendo assim para o pensamento aristotélico, que via a função do monarca como conciliador dos poderes e das jurisdições preexistentes, tendo por obrigação garantir paternalista mente os vários interesses presentes na sociedade.
O conceito historiográfico de estrangeirado é algo absurdo, porque renega qualquer tipo de realidade histórica na classificação de quem pertence ou não ao grupo. O conceito que António Sérgio primeiro, em princípios do século XX e Armando Cortesão, depois em meados do século, desenvolveram contra as tendências da historiografia do seu tempo, nunca definiu os critérios da denominação, sendo que a escolha das personagens não explica nada - sobretudo o porque é que se é estrangeirado -, nem tão pouco serve para explicar o que quer que seja - porque não se vislumbra nunca um factor de unidade nas personagens consideradas estrangeiradas. De facto estrangeirados, não sendo só personagens com ideias reformadoras, já que do lado dos rejeitados - dos castiços, desde logo um termo injurioso, os há também, não são mais dos que António Sérgio e Jaime Cortesão, e todos os historiadores que os seguiram, querem que sejam-sem mais explicações que a própria afirmação de serem estrangeirados.
O
programa de Dom Luís da Cunha, não sendo portanto possível de o definir como estrangeirado,
é relativamente simples. Continuando a política de Dom João V, que morreria em
1750, Dom José, quando subisse ao trono, deveria concentrar o poder nos
secretários de estado, dando-lhes um estatuto claro que eles ainda não tinham,
e manter a governação o mais independente possível das influências que dominavam
a sociedade portuguesa de meados da centúria de setecentos, e que tinham
objectivos considerados relativamente independentes da coroa (a aristocracia da
corte, demasiado poderosa, a igreja, a secular mas também a regular, e
sobretudo a Companhia de Jesus, devido à sua influência nos domínios
ultramarinos).
Por junto, o programa propõe uma clara afirmação do poder real, vista como necessária para manter o equilíbrio na sociedade portuguesa da segunda metade do século XVIII.
Senhor,
A tristíssima e sumamente dolorosa ideia, que naturalmente se pode fazer, de que o rei, nosso senhor, glorioso pai de Vossa alteza, nos venha a faltar, o que praza a Deus que não vejamos senão depois de passados muitos anos; e na doce esperança de que V. A. subirá ao trono de seus ínclitos avós, para dele gozar por séculos inteiros, tomo a liberdade de me pôr com a mais humilde e reverente submissão aos seus reais pés, para que lembrando-lhe que sou o mais antigo ministro que o senhor rei Dom Pedro, heróico avô de V. A. no ano de 1600 tirou da Casa da Suplicação para o servir no Ministério Estrangeiro, e que nele me conservou o rei nosso senhor até agora; e que, fundado nesta antiguidade, e no zelo e cuidado com que sempre procurei cumprir com a minha obrigação, pego na pena para ter a honra, não de lhe pedir algum prémio pelos meus serviços, mas somente para pôr na sua real presença quais são os meus sentimentos com a liberdade que o dito senhor muitas vezes não só me permitiu, mas expressamente me ordenou; e assim me aproveito dela para quando V. A. tomar, com a felicidade que lhe desejo, as rédeas do governo dos seus reinos e dilatadas conquistas, para o bem dos seus fiéis vassalos.
Se me servir de alguns exemplos, não são tirados da história, que faria larga e fastidiosa a sua leitura, que procurarei abreviar quanto me for possível, mas das máximas que vi praticar em Inglaterra, em Holanda, e França, ainda que nem todas se possam seguir pela diferença dos climas, dos governos, dos interesses, dos tempos, e pelos diversos génios das Nações.
Em primeiro lugar, senhor, naquele temido, infausto e natural acidente, que não espero ver, estou bem certo que V. A. não mostrará logo que em certas coisas quer tomar o contrapé do governo do rei seu pai, e que, quando se vir obrigado a fazê-lo, será mostrando que são as diferentes ocorrências que o forçam a tomar diversas resoluções; para que não pareça que V. A. as emenda, antes as venera. Que V. A. conservará para uma mãe tão santa, como é a rainha nossa senhora, o mesmo respeito, e fiel veneração, com que até agora a tratou; efeito da admirável e cristã educação, que ele lhe deu. Que V. A. viverá com a sereníssima princesa do Brasil, sua amabilíssima e real consorte, na mais cordial e sincera confiança que se possa desejar.
Que mostrará a suas altezas irmãos e tios que a sua elevação ao trono não lhe diminuiu em coisa alguma o amor e carinho devido ao sangue que corre pelas mesmas veias. Estas obrigações são pessoais e um dever de homem; mas as de rei, sem ofender as que insinuo, são mostrar que V. A. é o único senhor, e que todos, sem excepção de pessoa, são seus vassalos e dependentes unicamente das suas reais resoluções.
Debaixo destes supostos já se vê que não serei de opinião que V. A., a título de descanso, se sirva de um primeiro-ministro por duas, entre outras, muito fortes razões.
A primeira porque Deus não pôs os ceptros nas mãos dos príncipes para que descansem, senão para trabalharem no bom governo dos seus reinos; trabalho que lhe será muito suave, se repartir bem e alternativamente as suas horas, porque estou certo que lhe sobejarão as que bastem para as empregar nos divertimentos que convém ao seu carácter, entre os quais conto o da caça, não porque seja, como alguns dizem, a imagem da guerra, porque não há armas que menos se lhe pareçam, pois nela se não vê mais que muitos cavaleiros, e uma infinidade de cães, que correm atrás dos pobres animais que fogem, e não se defendem; mas porque este divertimento serve a dissipar os grandes cuidados de que o príncipe está sempre ocupado.
A segunda, e ainda mais forte razão, vem a ser, que o dito ministro ordinariamente tira ao soberano o crédito que ele se arroga a si mesmo, desconsola os naturais, e perde muito com os estrangeiros. O Duque de Marlborough se levantou com o poder, que se devia à rainha Ana de Inglaterra. O Duque de Orléans se arrependeu de haver dado a Luís XV por 1.º ministro o cardeal Dubois que, servindo-se daquele eminente carácter, concebeu mandá-lo prender, havendo-o levantado do pó da terra; e por isso, logo que aquele indigno ministro e prelado faleceu, o substituiu no seu lugar, e se nele não lhe sucedesse o Duque de Bourbon, jamais a Princesa de Polónia seria Rainha de França, porque madame de Priè, que o governava, se deixou comprar e, enfim, ninguém ousou, explicar-se em direitura a Luís XV, enquanto viveu o cardeal de Fleury, sob pena de perder a sua pretensão.
Contudo o cardeal, depois de reconhecer que o governo de uma tão grande monarquia excedia suas forças, achou que Mr. Chavelin tinha todas as qualidades necessárias para o poder aliviar e o associou ao primeiro-ministro; mas, vendo que os dois galos não cantavam bem em um só poleiro, viu-se precisado a desfazer-se de Chavelin, antes que Chavelin se desfizesse dele, pois que para isso começava a tomar suas medidas.
Isto que digo do primeiro-ministro milita também com o valido, que são sinónimos e peste do estado, para que V. A. se não sirva do primeiro, nem se deixe seduzir de quem procura ser o segundo, porque ordinariamente ambos cuidam mais em estabelecer o seu poder do que em conservar a representação do príncipe, de que só deviam ser zelosos, e que em Portugal é mais perigoso, pois que por um intolerável e ímpio abuso, temos feito hábito de nos esquecermos de Deus para nos aplicarmos aos seus santos, ou tidos por tais, costumando dizer que são os seus validos. Mas, senhor, os validos do céu são muito diferentes dos validos da terra, porque os primeiros, conforme o nosso provérbio, não rogam senão quando Deus quer; e os segundos rogam as mais das vezes pelo que nem Deus, nem o príncipe querem. Deus me preserve de dizer que a aplicação que se faz aos santos, como validos da majestade divina, é supersticiosa, porque a igreja definiu que ela era útil mas não necessária; porém digo somente que a que se faz aos validos da majestade humana é, ainda mal, necessária para ser útil em grande prejuízo da independência do príncipe, e da mesma monarquia. Numa palavra, senhor, todo o poder que o primeiro-ministro, ou valido, se atribui, não é outra coisa senão uma pura usurpação, por não dizer escandaloso furto que se faz à sagrada autoridade do príncipe. Porém, sem recorrer a exemplos estrangeiros, V. A. tem em casa um tão terrível, se quiser reflectir sobre o perigo a que nos expôs o ministério e valimento do Conde de Castelo Melhor, e na sua vizinhança o de Felipe III e Felipe IV que, sem embargo de serem tão grandes monarcas, como não viam as coisas dos seus domínios senão pelos olhos dos seus primeiros-ministros e validos, não só perderam no mundo a sua reputação, mas também a da mesma monarquia. V. A. se pode também lembrar do pouco caso que pessoalmente se faz de Filipe V, porque se deixava governar pela Rainha sua mulher, e esta pelo cardeal Alberoni, até que concorreram muitas razões para que aquela princesa se cansasse da sua petulância e o mandasse sair de Espanha.
Depois de ser o meu pensamento que V. A. fuja de ter um primeiro-ministro, ou um valido, não sei se lhe ajuntara que também se dispensasse de ter um confessor, quero dizer, com este título, por que com ele o autoriza para querer ingerir-se nas coisas do governo, e fazer-se respeitar, servindo-se do confessionário para tirar, ou encher o príncipe de escrúpulos, conforme convém aos interesses da sua ordem, dos seus parentes e amigos, de que pudera alegar muitos exemplos se não temesse a difusão deste papel; mas como seja preciso que o príncipe faça ver aos seus vassalos que regularmente pratica os preceitos da igreja, dissera que V. A. escolhesse para cura da sua freguesia um homem desinteressado, prudente, de boa vida e costumes, sem ser hipócrita e com ciência que baste para tranquilizar a sua consciência nos casos que lhe propuser e que com ele se confessasse; porque tenho observado que a teologia de frades é muito arriscada, principalmente a dos jesuítas, que são os que mais a estudam e por isso mais aptos para adoptarem as opiniões, que possam agradar ao confessado se for príncipe e não um pobre lavrador.
Se alguém me acusar de que nesta parte abraço as máximas de Maquiavel, enquanto diz que o governo monárquico seria o mais perfeito de todos, se o príncipe não tivesse validos, nem confessor, confesso a minha culpa sem arrependimento, e ainda passo em silêncio a dama, de que aquele refinado político quer que o príncipe seja isento porque, graças a Deus, entre as muitas virtudes de que dotou a V. A., tem a de não querer romper a constância conjugal, e por não autorizar com o seu exemplo a dissolução entre os dois sexos, como fez Luís XIV em França e Carlos II em Inglaterra que, sem embargo de ser um príncipe muito distraído tinha muito entendimento e costumava dizer que o governo das mulheres era, o melhor, porque nele governavam os homens; e que o governo dos homens era o pior, porque nele governavam as mulheres, de que em si mesmo tinha a experiência, porque se deixou governar por madame de Portsmouth, assim como Luís XIV por madame de Maintenon.
É verdade que sua majestade teve uma espécie de primeiro-ministro, que foi o cardeal da Mota; espécie de primeiro-ministro, porque ainda que em certo modo fazia as suas funções, nunca o dito senhor o revestiu daquele carácter; o que todo o mundo lhe deu (porque eu nunca o achei) foi o de ser muito bom homem, muito modesto, muito bem-intencionado e muito limpo de mãos, com muito pouco conhecimento dos negócios estrangeiros e ainda menos activo nos domésticos, dois defeitos irreparáveis em quem se encarrega da direcção das coisas públicas, porque deles resulta demorarem-se as resoluções que passam pelas suas mãos; e assim não vejo em tantos anos de ministério que fizesse alguma coisa em benefício do reino, tanto a respeito do seu comércio que da sua navegação, manufacturas e forças assim terrestres como marítimas, de que abaixo filarei, passando o tempo em outros projectos, sem resolver algum; de que veio não deixar à posteridade saudade da sua memória. O que na minha opinião se lhe deve louvar são duas coisas, a primeira de haver sempre aconselhado a sua majestade de conservar em paz os seus vassalos, quando toda a Europa ardia em guerra, e quando outros podiam inspirar que se aproveitasse da ocasião em que a Inglaterra a declarava à Espanha, a fim de forçar aquela coroa a que conviesse a, cumprir exactamente o que com ela estipulámos no Tratado de Utreque, pois uma diversão da parte de Portugal não lhe permitia acudir à guerra de Itália com as forças que França lhe opunha. A segunda foi concorrer com o seu arbítrio para que sua majestade, instruído da confusão em que Diogo de Mendonça Corte Real deixara os papéis das secretarias que servia, principalmente depois do incêndio das suas casas, em que muitos se desencaminharam e outros pereceram, lhe desse melhor providência, repartindo entre três secretários aquele trabalho, a, que um só, até àquele tempo, não sem queixa das partes, dava tanta expedição sem o poder evitar pela afluência e variedade dos negócios já estrangeiros, já domésticos e já ultramarinos. E nesta parte um animal, e tão grande animal, qual é o camelo, mostra mais juízo e menos presunção do que o homem, pois somente sofre a carga com que pode, por se não deitar com ela; de maneira que eu comparo a cabeça de cada indivíduo a um vaso que quando se lhe deita mais água do que pode conter transborda, derrama-se e se turva a que fica nele.
Enfim, V. A. sabe a divisão que sua majestade fez das secretarias e os ministros que para elas nomeou, todos muito dignos de servirem com grande satisfação aqueles empregos, e só se reparou que todos fossem criaturas do cardeal, principalmente o do reino, que foi seu irmão, para que cada qual obrasse conforme ele lhe inspirasse. Não digo que esta foi a intenção com que aquele prelado fez a sua majestade a inculca, mas que tais foram as aparências.
É verdade que sua Majestade nomeou aqueles três ministros para secretários de Estado, mas nunca lhes quis dar a prerrogativa de conselheiros ou ministros de Estado, como o cardeal de Fleury pretendeu para que os embaixadores de França lhe dessem o tratamento de excelência, como se quisesse reservar aquele eminente título como um non plus ultra para as pessoas de maior nobreza, e mais recomendáveis pelos seus merecimentos e reconhecidos serviços. V. A. acha as secretarias divididas, porém mais no nome que no efeito, conforme ouço, porque os seus papéis estão na mesma confusão, sabe Deus aonde, porque eu o não sei, sem se repartirem pelos oficiais das secretarias para que cada um se entregue dos que lhe pertencem, e com mais facilidade se achem quando se procurem, ao que V. A. deve dar providência, nomeando um ministro bem inteligente, para que com os mesmos oficiais faça aquela necessária diligência e repartição e se reformem os que faltarem.
Dos três secretários que sua majestade nomeou, vejo não ser grande perda o faltar-lhe o da Marinha, que foi António Guedes Pereira, e ouço também lhe podia vir a faltar o do Reino, Pedro da Mota e Silva, que muitas vezes teria pedido licença para se demitir daquele emprego, que o punha na sujeição de não poder gozar do seu descanso, de maneira que se V. A. se acomodar com o seu desejo, será preciso prover uma e outra secretaria, para as quais tomarei o atrevimento de lhe indicar dois ministros, pelo conhecimento que tenho deles e dos seus talentos; a, saber: para a do Reino Sebastião José de Carvalho e Melo, cujo génio paciente, especulativo e ainda que sem vício, um pouco difuso, se acorda com o da nação; e para a da Marinha Gonçalo Manuel Galvão de Lacerda, porque tem um juízo prático e expedito, e serviu muitos anos no Conselho Ultramarino, aonde adquiriu um grande conhecimento do governo, comércio e forças das conquistas; e desta sorte gratificaria V. A. com muita vantagem os serviços destes ministros, os quais viveriam em boa inteligência com o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros Marco António de Azevedo Coutinho, porque o primeiro é seu parente e o segundo sempre foi seu íntimo amigo; mas não decidirei se esta grande e esperada união destes três secretários de Estado é a que mais convém ao serviço do amo e do Estado, mais que enquanto neles suponho uma integérrima probidade e que se não amassarão para favorecerem os interesses dos seus parentes e amigos, porque costumamos dizer que uma mão lava a outra e ambas o rosto, que talvez fica mais sujo se a água não é tão pura e tão clara como deve ser, isto é, sem ter o vício da paixão ou da própria conveniência.
Não digo que o príncipe seja suspeitoso, mas precatado, e que nenhum mal lhe faria que os seus ministros assim o concebam, para que não abusem da autoridade que se lhes dá; pois da mesma sorte que a suma confiança do príncipe degenera em fraqueza, da nímia desconfiança procede a perplexidade que agita o ânimo do príncipe e o não deixa tomar a resolução que convém. O senhor Rei Dom João IV, heróico avô de V. A. e sempre memorável libertador, quisera que fosse o espelho em que V. A. se visse, para em tudo o retractar, fazia tanta estimação de Gaspar de Faria Severim, seu secretário das Mercês e Expediente, que, saindo do despacho, disse diante de meu pai e dos mais que lhe faziam corte, que se podia ser Rei de Portugal só por se servir de um tal ministro: contudo quando tinha alguma noção de que ele queria favorecer alguma das partes, cujos papéis devia despachar os expedia por mãos do secretário de Estado; e ainda fazia mais, porque nas consultas dos provimentos que subiam dos tribunais nunca se usou a dar os empregos aos que vinham nomeados em primeiro lugar ou segundo, antes sucedia que, bem informado dos merecimentos dos sujeitos, voltava a consulta debaixo para cima e dava lugar ao que estava no último, costumando dizer que desta sorte se conformava com a consulta e outras muitas máximas dignas de se imitarem.
Bem pudera referir outras, muitas precauções que este príncipe tomava para não ser enganado pelos seus ministros; e, contudo, conhecendo ele em certo modo a inocência de Francisco de Lucena, seu secretário de Estado, o deixou condenar à morte porque os fidalgos o fizeram passar por traidor, não podendo sofrer que ele aconselhasse ao rei, que não lhe devia alguma obrigação de lhe porem a coroa na cabeça, pois lhe era devida a fim de que não se julgassem credores de grandes recompensas. Os descendentes deste ministro justificaram depois a sua inocência; e sua majestade lhe veio a restituir as honras e os bens, em que eu tive alguma parte estando em Madrid.
Mas a Providência dotou V. A. de uma tal clareza de entendimento que se servirá das suas virtuosas suspeitas para não cair em alguma das duas sobreditas extremidades; porém, não sendo fácil praticar este meio, termo com todo o sucesso que fora necessário, creio que, se pode haver algum, é o da boa escolha dos homens que V. A. quererá empregar, bem informado das suas acções passadas e presentes para poder julgar das futuras, e achá-lo digno da sua confiança, que todavia não deve passar de um certo ponto para que o ministro favorecido não presuma que está senhor de todo o seu segredo e por consequência de todas as suas intenções, pondo-o desta sorte em uma espécie de sujeição. Felipe II de Espanha, nosso injusto conquistador, a quem os castelhanos indevidamente deram o nome de prudente quando só lhe convinha o de cruel, parricida, sanguinário, ambicioso e, sobretudo, hipócrita, consideradas as suas indignas acções, temeu que António Peres, célebre na história daquele tempo, as descobrisse e assim as quis cobrir com outra mais infame, querendo deixá-lo condenar à morte pela que ele lhe mandara fazer e, enfim, o mandava assassinar se ele se não salvara em França.
Já que me sirvo desta anedota para provar o meu assunto, referirei outra que não o confirme menos e vem a ser que o marquês de Fronteira e o de Távora, que ambos aspiravam ao valimento do senhor Rei Dom Pedro, ínclito avô de V. A., estando conversando a uma das janelas que olhavam para o Terreiro do Paço, sobreveio por detrás o sobredito senhor e pondo-lhe as mãos sobre os ombros lhes perguntou: “Em que discorrem os marqueses?” E o de Távora, que era pronto e vivo, lhe respondeu: “Estamos, senhor, vendo como nos havemos de enganar um ao outro, e ambos a Vossa Majestade”: e o pior é que dizia a verdade.
O Conde de Vilar Maior, depois marquês de Alegrete, veio, por morte de um e outro, a gozar daquela fortuna, ainda que sua majestade em certas coisas a repartia com Roque Monteiro por ser juiz da Inconfidência. E é coisa notável que sendo o dito marquês quarenta anos, vedor da Fazenda e da repartição do Reino, não deixou algum monumento que acreditasse nem o seu valimento nem o seu ministério, para que choremos a sua memória: chore-a embora a sua casa, que também a aparentou e enriqueceu, que é o que não fez o cardeal da Mota por não fazer nada de proveito nem para si nem para o reino. Deste, que é o grande património de V. A., deve dar a Deus infinitas graças, porque, podendo-o fazer nascer de uma baixa e pobre distracção, lhe deu por pai um tão poderoso e magnífico rei, cujas virtudes excedem a mesma grandeza, como todo o mundo confessa e louva com admiração; considerando, porém, que um rei não difere, senhor, de qualquer outro pai de famílias mais que em o ser de muitas e não de uma só, mas as obrigações são as mesmas, seja em geral ou em particular, e a demonstração delas foi o ponto de vista com que comecei este papel. A primeira, pois, que tem um pai de famílias é dar competente sucessão à sua casa para que não passe a outra estrangeira. É verdade que a providência favoreceu a V. A. com quatro princesas, mas negou-lhe até agora um príncipe sem escutar os nossos ardentes votos, que incessantemente lhe fazemos, pelo que sua majestade, no justo temor de que nos possa continuar esta grande desgraça (porque Deus tem também as suas teimas, quando lhe não merecemos as suas misericórdias), projectou dar estado à senhora princesa da Beira com tanto acerto como V. A. sabe. Não entro nas razões que o dito senhor teve para o não pôr até agora em execução porque as ignoramos e seria culpável atrevimento querer penetrar os seus sagrados mistérios. Digo porém que se Deus dispuser da vida de sua majestade, deve ser a sua primeira e louvável acção do seu felicíssimo governo cumprir aquela que quero chamar última vontade, para nos enxugar as lágrimas que nos deve causar a falta de um tão magnânimo e benévolo soberano.
Não estranhe V. A. a um espírito melancólico e envelhecido se lhe trago à memória que cada instante é o termo da vida quando Deus assim o tem destinado, para que não perca os que ele lhe der para nos segurar a sucessão de que tanto necessitamos, por nos não expor a que a senhora princesa da Beira, cuja tutoria de direito compete a sua mãe e, por consequência dela, dependerá dar-lhe estado se possa lembrar de que essa é mais irmã do que cunhada e mais espanhola do que portuguesa para se esquecer das máximas que V. A. lhe haverá inspirado. Tenho por constante que este pouco que digo e muito que pudera dizer sobre um tão relevante assunto, não escapa à muito alta compreensão de V. A., mas o zelo de bom velho português junto a alguma experiência que tenho do mundo me faz romper o silêncio que em tão delicada matéria devia guardar que, como para tudo há homens, quem me assegura de que não haja alguns tão malévolos que por interessadas vistas queiram persuadir a V. A. que vá passando o tempo, lisonjeando-o de que Deus lhe dará a sucessão varonil, que tanto lhe desejamos? Assim o permita a sua divina majestade; mas neste felicíssimo acontecimento, que prejuízo se nos seguiria de termos em Portugal uma segunda e real linha? Eu não o considero, nem creio que haverá pessoa alguma que tenha o juízo em seu lugar, que o possa imaginar, principalmente se revolver na memória a posteridade que teve o senhor rei D. Manuel de gloriosa memória, pois lhe veio a faltar na segunda geração, quero dizer, no infelicíssimo senhor rei D. Sebastião, que se perdeu a si e a nós. Triste lembrança, senhor, para os portugueses que reflectem sobre as suas funestas consequências de que ainda hoje, depois de dois séculos, Portugal se ressente.
A segunda obrigação de pai de famílias é a de ter bem regrado o serviço da sua casa, para que cada qual dos seus domésticos faça as funções que lhe competem conforme a graduação dos seus empregos, o que a V. A. será muito fácil, se quiser, como desejo que queira, observar o método que o senhor rei D. João o IV tinha dado para que nenhum dos oficiais da sua casa faltasse à sua obrigação, no que era tão rígido que, querendo servir-se de um, e não o achando, se lhe respondeu que fora chamado à Misericórdia; pelo que mandou logo dizer à Mesa daquela santa casa que não fizessem algum irmão dela que fosse criado da sua.
E quando saía do despacho costumava passar pela galeria, tomando conhecimento dos fidalgos que lhe faltavam em lhe fazerem corte; e se algum não tinha aparecido, um ou mais dias, lhe perguntava, quando, o via se estivera incomodado. Isto tudo, senhor, concilia amor e, juntamente, respeito.
Também costumava comer em público ao nosso modo com toda a real família, como faziam os reis de Portugal, seus gloriosos predecessores, até que, por nossos pecados, os de Espanha vieram introduzir em Portugal as suas etiquetas, fazendo-se quase invisíveis, o que não concilia o amor dos vassalos que desejam ver o príncipe que os governa.
A rainha Isabel de Inglaterra, de cuja grande política está cheia a história, costumava passar pelas ruas de Londres para se deixar ver dos seus súbditos, e levando um dia no seu coche o duque de Mançon, por entre os clamores daquele grande povo, lhe disse: “Meu príncipe, este amor que me testemunha esta populaça, são as minhas verdadeiras e fiéis guardas”. E já o nosso sentencioso e admirável Francisco de Sá de Miranda disse alguma coisa a este mesmo propósito; a que ajuntarei que o senhor rei D. João IV tanto não seguiu esta máxima espanhola que ainda fazia mais, pois mandava entrar no estribo do seu coche a célebre Maranhoa, que dominava todas as regateiras da Ribeira, para se fazer popular, porque costumamos dizer que a voz do povo é a voz de Deus, o que nem sempre se verifica.
Não direi que V. A. deixe de ter duas companhias de guarda de corpo a cavalo, de que em outro lugar falarei, não por segurança, mas por autoridade, visto que todos os príncipes da Europa o praticam, uns com mais, outros com menos necessidade; e o pior é que até o mesmo papa, sem alguma, se faz acompanhar desta milícia como príncipe secular; triste distinção para responder aos protestantes que o increpam desta vaidade e não sem justa causa, porque a igreja de Deus não se deve defender more castrorum.
A terceira, obrigação do pai de famílias particular é a de ter cuidado de que entre ela não haja dissensões por não perturbarem a economia da sua casa; de que se segue que o príncipe, pai de todas as do seu reino, deve interpor a sua autoridade para compor as diferenças que acontecerem entre umas e outras, porque devem vir a ser prejudiciais aos seus Estados.
Deste salutar princípio se deriva, ser necessário conhecer os domésticos que o servem, principalmente os que estão encarregados das despesas da sua real casa, escolhendo um fiel controleur [em francês no texto] ou revedor de suas contas, para escrupulosamente as examinar e a cada três meses as possa pôr diante do príncipe, e então as aprove. Bem sei que esta precaução em uma casa real não poderá evitar todos os descaminhos, pois são tantos a furtar e um só a prevenir os furtos disfarçados com outros nomes; porém sempre a boa ordem repara muito dano.
A quarta obrigação de pai de famílias é não ter a sua casa endividada; porque ninguém é rico senão enquanto não deve, o que não se pode evitar todas as vezes que a despesa exceda a receita; e assim toda a economia é justa e necessária. O senhor rei D. João IV não só a praticou com a sua real pessoa, mas queria que os seus criados a tivessem, de tal sorte que vendo um dia entrar meu pai, que tinha a honra de ser seu trinchante-mor, com pourpoint guarnecido com uma rendinha de prata, lhe disse: “Vindes muito bizarro, D. António; mas nunca fui tão rico que pudesse ter outro semelhante»; e assim era, porque sempre se vestiu de estamenha; e, por dar um notável exemplo de economia, quando repartia entre os seus criados os coelhos que matava na tapada, queria que os lacaios lhos levassem para casa; porque se desse esta comissão ao amigão ou a qualquer outro, lhe daria dois tostões, que era o mesmo que se os comprasse na Ribeira, de maneira que, para mostrar que a sua intenção era de que os seus vassalos o imitassem, mandou que nenhum viesse ao Paço com os seus cabelos, porque ele os não conservava, e todos se tosquiaram, menos o conde de Vila Flor. E porque alguns o acusavam desta espécie de desobediência, respondeu que era justo que ele os conservasse porque lhe haviam, crescido em Flandres e no Brasil entre a pólvora e a bala; e sabendo assim servir-se destes acidentes para meter entre os fidalgos uma nobre emulação, sem degenerar em viciosa inveja para tomar as armas em sua defesa e da Pátria, e sobretudo não faltava em ir todas as sextas-feiras à Relação para ver sentenciar algum processo cível ou criminal, costumando dizer que nunca se considerava tanto rei como quando estava vendo fazer justiça aos seus vassalos; e com razão, porque este é o maior acto de soberania do príncipe E às quartas-feiras, pelos princípios, fazia vir à sua presença o Senado da Câmara para saber como os vereadores despachavam e entretinham a polícia da cidade; de sorte que os ministros de um e outro tribunal procuravam mostrar que cumpriam as suas obrigações.
Não quero dizer que V. A, use dos mesmos meios e raros exemplos daquela estreita economia que o senhor rei D. João IV dava aos seus vassalos; porque os fins eram outros e outras as circunstâncias em que o dito senhor se achava, vendo-se obrigado a defender uma causa em que a sua parte adversária tinha dobradas testemunhas para provar o seu direito, sendo a campanha o sanguinolento tribunal onde se davam as sentenças, e contudo a justiça da causa superou por esta ver a desigualdade da força. Porém, não nos devemos reger pelos estupendos sucessos que tivemos nesta guerra da venturosa aclamação; porque Deus nem sempre está de humor a fazer milagres; nem eles o foram, mas antes muito naturais, porque achámos os castelhanos em diferentes guerras e não souberam fazer a de Portugal para o recuperarem, quando Castela de todas as partes o abraça, excepto pela do poente, que confina somente com o oceano, por onde os altos predecessores de V. A. foram descobrir novos mundos e novas terras, para estenderem os seus domínios, não o podendo fazer pelo continente.
Daqui nasce a grande questão sobre qual seja a melhor posição de um Estado, se a que é limítrofe com muitos vizinhos ou a que não tem mais que um só; sem embargo de ser mais poderoso. E quanto a mim; a segunda é mais feliz; porque o Príncipe que a possui achará menos dificuldade em se prevenir contra um inimigo conhecido que contra tantos ignorados, e a primeira o expor-se a entrar em todas as guerras que sobrevêm, como por exemplo, os Estados de Itália e de Holanda, que são obrigados a recorrerem a grandes potências, a fim de que alguns dos seus vizinhos os não venham a dominar, serviço que lhes custa bem caro, pois lhes ficam dando as leis.
A posição, pois, de Portugal é, como digo, a mais venturosa, pois que de perto pode ter os olhos abertos para observar os passos de uma potência; cuja inimizade está na massa do sangue, ainda quando nela não interviera o seu interesse e as suas injustas pretensões; isto é o que de passo direi, porque em outro lugar mostrarei qual é o nosso verdadeiro garante, para que nele ponhamos todo o cuidado.
Assim como o pai de famílias, segundo acima digo, deve ter a casa desendividada, convém que não a deixe decidida de demandas, que não dão menos inquietação que as dívidas, pela incerteza das decisões, principalmente quando se tem com partes mais poderosas. Preze a Deus que o importante litígio que controvertemos com Espanha sobre a execução do Tratado de Utreque, esteja amigavelmente composto, para o que tenho concorrido todas as vezes que sobre a matéria tenho sido perguntado, lembrando-me do provérbio de que um medíocre ajuste vale mais que um bom processo, ainda quando se ganha; porque muitas vezes sucede que se despende mais que ele importa. Mas quando assim não suceda e que V. A. ache ainda em aberto esta embaraçadíssima causa, parece conveniente que todo se aplique a terminá-la enquanto vive a senhora rainha católica, sua augusta irmã, que possuindo o espírito de el-rei seu marido, poderá dispor o seu ministério que de boa-fé convenha em uma racionável composição, para que nunca mais se possam promover nem estas nem outras quaisquer dúvidas.
A quinta obrigação do pai de famílias é de visitar as suas terras para ver se elas estão bem cultivadas ou se delas se tem usurpado alguma porção, a fim de que lhe não falte a renda que delas tirava para sustentar a sua casa; e esta parece também ser a obrigação do príncipe, pois não sabe as que possui, mais que pelo lho quererem dizer, e vai grande diferença de ver a ouvir. Se pois V. A. quiser dar um a volta aos seus reinos, observará em primeiro lugar a estreiteza dos seus limites, à proporção do seu vizinho. Achará, não sem espanto, muitas terras usurpadas ao comum, outras incultas, muitíssimos caminhos impraticáveis, de que resulta faltar o que elas podiam produzir, e não haver entre as províncias a comunicação necessária para o seu comércio: achará muitas e grandes povoações, quase desertas, com as suas manufacturas arruinadas, perdidas, e extinto totalmente o seu comércio: achará que a terça parte de Portugal está, possuída pela Igreja, que não contribui para a despesa e segurança do Estado, quero dizer, pelos cabidos das dioceses, pelas colegiadas, pelos priorados, pelas abadias, pelas capelas, pelos conventos de frades e freiras: e, enfim, achará que o seu reino não é povoado como pudera ser, para prover de gente as suas largas e ricas conquistas, de que separadamente, tratarei de Dom Luís da Cunha c. 1749
Ordem
que Sua Majestade foi servido dar para se observarem no quarto do príncipe
nosso senhor.
"Se deve ponderar que nas cortes há sempre temerários, que pretendem abusar da benignidade dos príncipes, principalmente nos princípios dos seus reinados, tentando-lhes os ânimos com alguns actos de ousadia para verem se acham neles tolerância"
Este texto é ligeiramente diferente das ordens realmente expedidas, por Sua Majestade Fidelíssima, referida abaixo.
As ordens são para o neto do Rei, Dom José I, Príncipe da Beira ao nascer, e Príncipe do Brasil, quando a mãe, a Rainha Dona Maria I, subiu ao trono em 1777.
Muito interessantes, porque mostram o tipo de educação se prestava às crianças de ‘sangue real’, assim como se explicavam os acontecimentos da ‘História de Portugal’. Mas também, como se pensava a governação.
Interessante, também, é a informação que dá sobre aquilo que chama a provocação da ‘Junta dos Três Estados’, onde pontificava a grande nobreza do reino, no início do Reinado de Dom José I.
INSTRUÇÕES DADAS POR S. M. O SENHOR REI D. JOSÉ I DE BOA MEMÓRIA PARA A EDUCAÇÃO DE SEU AUGUSTO NETO O SERENÍSSIMO PRÍNCIPE D. JOSÉ
Tenho resoluto que o príncipe meu sobre todos muito amado e prezado neto seja servido em quarto separado desde o dia de Nossa Senhora da Conceição em diante.
Será servido em cada semana por um dos gentis homens da minha câmara, que tenho nomeado para este importante exercício, por um dos moços da câmara da minha guarda roupa dos que acabo também de nomear, por um reposteiro daqueles de meu particular serviço, que ao mesmo tempo nomeei; e por um varredor dos que determinei para a limpeza do referido quarto.
A ele não subirão pessoas algumas, que não sejam reais, de qualquer estado, e condição que possam ser, além das acima nomeadas sem especial ordem minha. O que porém não se entenderá compreender os ministros que têm assento, no meu real Conselho de Estado; o confessor do mesmo príncipe Frei Manuel do Cenáculo; e o instrutor de ler, e escrever António Domingues do Passo; os quais terão sempre entrada livre no sobredito quarto.
Além dos referidos será chamado o cabeleireiro Carlos de Sousa quando for necessário para executar o que pertence ao seu oficio. Logo porém que houver feito o serviço para que for chamado, será imediatamente despedido sem que se lhe permita fazer mais dilação.
A dignidade, a decência, e o costume das cortes fazem necessário que as conversações com o príncipe sejam reduzidas somente aos gentis homens da câmara, moços da guarda roupa, que o servem e aos ministros do meu Conselho de Estado, sem que se possa permitir que os reposteiros, varredores, cabeleireiros, ou quaisquer outras pessoas destas, e semelhantes foros tenham com o mesmo príncipe a menor prática Antes pelo contrário deverão sair do quarto, logo que houverem feito o serviço que necessário for. O que porém se não entenderá com o reposteiro, que deve ficar em cada noite para executar prontamente o que lhe for ordenado no serviço do príncipe; ou seja pelo gentil-homem da câmara; ou pelo moço da guarda-roupa, que dormir no referido quarto.
A tenra idade, e a compleição do príncipe não permitem, que sua atenção, e a memória sejam gravadas com todos os documentos religiosos, e políticos que só em mais adiantados anos se farão oportunas.
É contudo necessário que o príncipe se costume desde logo a repartir as horas, para viver com método, que em tão altas pessoas se faz indispensável.
Sem que de repente seja obrigado o mesmo príncipe a levantar-se cedo com desvelo prejudicial à sua preciosa saúde; é preciso contudo que com cinco, dez, e quinze minutos de antecipação em cada dois, três ou quatro dias, se vá reduzindo gradual, e periodicamente ao estado de poder despertar sem prejuízo a horas competentes para cumprir com as suas obrigações de cristão, de filho, e de príncipe: vindo beijar as mãos de seus avós e pais pela parte do trânsito interior, de que o camarista da semana deve ter uma chave, logo que acabar a oração de levantar da cama: indo com a sua mãe à Russa, se couber no possível: e voltando imediatamente para o quarto via recta; sem que nunca se perca de vista na ida, e na volta, de sorte que seja divertido para conversações, que lhe tomem o tempo desnecessariamente.
As mais precisas conversações por ora dentro do referido quarto são as que devem verter sobre as coisas mais necessárias, e mais próprias da idade do príncipe.
Observando-se com exacta vigilância o seu comportamento com as pessoas, que forem obsequiá-lo: se lhe deve sugerir a propósito: Primo a compostura do corpo, e figura, em que estará enquanto lhe falarem, sem fazer gestos nem contorções contrárias à gravidade, e muito mais ao carácter da sua grande pessoa: secundo que quando falar com as ditas pessoas deve olhar para elas fixamente; sem por os olhos no chão, como envergonhado, ou noviço; e sem distrair a vista com demora para outros objectos: tercio que se deve propor sempre que falar aos vassalos a ideia, não só de lhes imprimir respeito com aquela modéstia, e compostura de acções; mas também de lhes ganhar o amor pela afabilidade, com que os receber: quarto que isto conseguem facilmente os príncipes sem outro algum trabalho, que não seja ou o de uma ou duas palavras obrigantes; ou ainda somente o de um certo arzinho, e afável, quando lhe têm feito algum serviço, ou ou lhe dizem coisa digna de reconhecimento, que não é impróprio nos príncipes; mas neles tão natural como o é a sua grandeza.
Passando às outras conversações mais interessantes, que o tempo irá sazonando cada dia mais oportunamente. E sendo necessário que o príncipe não veja, nem ouça coisa alguma que não seja ordenada a formar-lhe o espírito sobre as boas máximas, que eu desejo, e espero em Deus que louvavelmente governem todas as acções de sua vida. Advirto a este respeito o seguinte.
É muito próprio dos anos em que o príncipe se acha, gostar de ouvir contar histórias, e pedir que lhas contem para se divertir. E neste mesmo sentido se lhe devem sugerir, e fazer gostar com estilo de conto e com a suavidade de modo coisas tão importantes, e necessárias como as que vão abaixo indicadas.
Sendo da grandeza de Deus Nosso Senhor, dar obras da sua omnipotência na criação do Mundo; e da Religião Cristã, que professamos, as primeiras ideias, que se devem dar ao príncipe: Há para lhe fazer ver e imprimir a excelente história do Velho e Novo Testamento representado com figuras pelo insigne Theargo Sacy; porque cada figura é um útil registo para a recreação das primeiras idades; e nelas se imprimirem assim as úteis noções destes significados. Nenhuma prudência será porém demasiada a respeito desta necessária aplicação para eleger, e praticar o virtuoso meio entre as duas perigosas extremidades da irreligião, e do fanatismo: porque é certo que uma e outra têm levado a par de si as ruínas dos reinos, e impérios.
Porque porém a referida prudência neste ponto pertence mais principalmente ao cuidado do confessor; tudo o que resta fazer aos outros assistentes é desviar com desteride (*) o príncipe do que pode distrair-lhe o ânimo, e fazê-lo declinar, ou para a incredulidade; ou para a incontinência: sem contudo se lhe abaterem os espíritos e se lhe tirar o brio juvenil, o que se conseguirá permitindo-se-lhe com dissimulação, e sem ela (conforme o caso pedir) tudo o que nos limites da cristandade, e da nobreza costuma permitir-se aos príncipes pelos que são prudentes.
Não se devendo tão pouco criar um príncipe filósofo com aplicações abstractas, e com discursos metafísicos. É igualmente indispensável que as ditas conversações familiares que se tiverem no referido quarto, vertam sobre coisas nobres, úteis, práticas, e tais como as que vão indicadas nos exemplos seguintes.
Primeiro exemplo.
Pode introduzir-se por conversação na presença do príncipe uma disputa sobre a reputação. Perguntando um que coisa ela seja e respondendo outro: que é o calor natural que vivifica os corpos das monarquias: que por isso foi sempre a mais preciosa, e quando se chegar na Crónica de el-rei D. João 11 ao facto da execução feita na pessoa do Senhor Duque de Bragança Dom Femando, se deve estabelecer que a dita execução foi de uma necessidade indispensável. E isto se deve provar logo in continente tendo-se pronta a história de el-rei Dom Manuel pelo bispo Jerónimo Osório, referindo-se o que ele escreveu judiciosissimamente no principio do livro 1° sobre o referido facto.
Com este assunto se deve ponderar que nas cortes há sempre temerários, que pretendem abusar da benignidade dos príncipes, principalmente nos princípios dos seus reinados, tentando-lhes os ânimos com alguns actos de ousadia para verem se acham neles tolerância, que habilite para maiores indulgências os mesmos temerários:
• que assim sucedeu com El-Rei nosso Senhor nos primeiros tempos do seu governo: com os tribunais, e pessoas de maior graduação:
• que a Junta dos Três Estados fez diferentes consultas insultantes contra as secretarias de estado, que na realidade constitui o gabinete de el-rei para lhe deprimir a autoridade:
• que o Conselho do Ultramar fez outras consultas de igual temeridade para destruir o respeito das leis tomando por pretexto a de três de Dezembro de 1750, que aboliu a capitação:
• que os mesmos sediciosos e temerários fins se deram nas audiências, e fora delas diferentes papéis infames, e dois dos mais falsos, e negras calúnias contra o marquês de Pombal desde que viram, que Sua Majestade o honrava com a sua real confiança:
• que qualquer daquelas três maquinações, que sortisse os malignos efeitos, a que foi ordenada seria bastante para arruinar a monarquia:
• que porém porque foram repelidas pela inalterável constância, e invicto espírito de Sua Majestade estabeleceu assim a sua autoridade régia; desarmou as temeridades; e tem reedificado a sua monarquia desde a universal ruina até ao ponto do respeito; e da glória, em que hoje se acha:
• que no meio de todas aquelas facções, e temeridades apareceu o monstro da horrorosa conjuração de três de Setembro de 1758, formada pela união dos principais responsáveis de perturbação, entre os que haviam maquinado as sobreditas temeridades sediciosas, desde que viram que não podiam impunemente praticar os abomináveis vícios, com que no interregno da enfermidade do senhor rei Dom João V haviam oprimido, despojado, e apeado estes reinos.
• que lembrando-se porém Sua Majestade do exemplo do senhor rei Dom João V, e do que sobre ele ponderou o mesmo senhor Osório: e compreendendo que nenhuma podia ser tão grande que o de permitir que fizessem os seguintes vassalos nem ainda os menores resíduos dos autores de tantos, e tão perniciosos insultos; e de que este era entre todos o maior dos perigos, que se lhe representava em uma tão crítica conjuntura, e fazendo a todos superior o seu real, etéreo espírito: mandou por uma grande parte castigar os réus de t° classe da nobreza com ferro, e com fogo na manhã de treze de Janeiro do ano seguinte de 1759; e mandou pela outra parte extinguir, com a perseguição, e total expulsão dos seus reinos e domínios os jesuítas malvados conselheiros, e condutores de todas as sobreditas malignidades:
• que assim se assegurou Sua Majestade sobre o seu trono; assim preservou o reino e a felicidade da sua monarquia, e dos vassalos que Deus lhe confiou; assim fez a autoridade régia superior a todos os atrevimentos dos espíritos corrompidos. E assim tem feito, sem ser perturbado, os numerosos estabelecimentos; que hoje fazem Portugal invejado dos outros reinos da Europa, e que, conservando-o em paz alguns anos, o farão de sorte poderoso, que renovando os tempos dos ditos senhores reis Dom João 11, e Dom Manuel, o desejem todas as outras potências por amigo, e por aliado, e não se atreverão a empreender coisa alguma contra os seus legítimos interesses de reputação, ou de domínio, e comércio:
• que o contrário de tudo isto estamos actualmente vendo em França, onde os parlamentos conhecendo a debilidade [riscado no textos expressiva bondade de ânimo de el-rei Cristianíssimo: indo ganhando terreno pouco a pouco à sua autoridade régia; e indo passando das usurpações menores da mesma autoridade até à maiores; chegaram enfim ao ponto de absoluta, em que hoje se acham, não só disputando frente, a frente com o mesmo monarca, mas declarando a pública oposição das suas leis, com que as estão combatendo até ao ponto de ameaçarem muito próxima uma guerra civil naquela monarquia;
• que por este mesmo modo se acabou a de Inglaterra com a Casa Stuart, sem diferença alguma pela nímia tolerância dos bons príncipes daquela real casa até a expulsarem do trono, e fazerem assentar sobre ele no ano de 1688 outra família estranha, qual essa de Hanover.
E que tudo referido vem a resultar que em matéria de autoridade ao rei, e às suas leis nem se deve admitir providência de matéria, nem corra tão pequena que se não deva advertir, e obviar primeiro, enquanto é possível, com procedimentos ou indirectos, ou proporcionados na gravidade aos casos ocorrentes; e nas ousadias públicas, e maiores com os mais graves castigos, aplicados eficaz, e inflexivelmente; porque a causa pública, que assim o requer indispensavelmente; deve prevalecer a todas, e qualquer contemplação, ou comiseração, particulares, sendo aliás boa, e santa economia sacrificar estas poucas vítimas à justiça para salvar o trono, e o comum dos povos dos estragos da sedição, e da iniquidade: e mostrando aliás a História por uma sucessiva série de factos, que os homens, cujos corações foram uma vez corrompidos com o veneno da soberba temerária, da intriga sediciosa, e da facção, nunca jamais tiveram emenda, e nunca jamais deixaram de fazer mal senão enquanto foram impossibilitados a podê-lo fazer.[...?]
E recatada menina dos olhos dos maiores monarcas do mundo, porque viam que a reputação pode muito mais que os exércitos para a conservação das monarquias e porque sem ela não pode príncipe algum subsistir sobre o trono, do que se tirará ao mesmo tempo um eficaz motivo para desviar suavemente o príncipe de qualquer distracção, a que o possa inclinar a vontade, ponderando ele o zelo que deve ter do seu bom nome.
Segundo exemplo.
Em outra semelhante conversação se pode propor, se é possível que um reino desarmado possa ter segurança para se conservar somente pela razão do direito, com que lhe assistem os tratados públicos, ou os títulos hereditários? E resolvendo qualquer dos circunstantes, que é impossível que um tal reino se possa conservar: e se deve meter à história desta monarquia, excitando-lhe a curiosidade de a examinar, e reduzindo-a em substância às quatro épocas que naturalmente oferecem os fastos portugueses.
Na primeira das ditas épocas, se devem substanciar os exércitos, as guerras e as batalhas dos primeiros monarcas destes reinos, com que não só os defenderam dos mouros, e vizinhos, mas obrigaram uns, e outros a saírem do nosso continente: extraindo-se estas noções da colecção das crónicas compiladas pelo licenciado Duarte Nunes de Leão.
Na segunda época, se devem resumir os gloriosos progressos das poderosas armadas dos senhores reis D. João ll, e D. Manuel; extraídas das admiráveis décadas do insigne João de Barros; e da vida do Infante D. Henrique estampada no ano de 1753.
Na terceira época se devem substanciar os factos de duzentos anos, em que os intitulados jesuítas aniquilaram as armas e a milícia: mostrando que pela falta delas, foi Portugal sujeito a Castela, e perdeu com a liberdade a glória, a honra e a fama que tinha adquirido enquanto foi armado: provando-se tudo isto com o outro compêndio extraído da primeira parte de Dedução Cronológica e Analítica.
Na quarta, e última época se deve ponderar a restauração da glória e nome português, da sua navegação e do reflorente comércio nestes últimos dezoito anos, depois que as tropas, a marinha, as praças e as fortalezas do reino se puseram no respeitável estado, em que hoje se acham: extraindo-se para assim o mostrar a substância da divisão XV da dita Dedução.
Terceiro exemplo.
Em outras das sobreditas conversações se deve reflectir sobre a indispensável necessidade que os príncipes têm de se aplicarem ao estudo da Geometria: porque só com a ciência dela podem discorrer, e obrar sobre os princípios certos, e demonstrados: podem conhecer, e reprovar os sofismas, com que muitos homens por lisonja: por interesse próprio; e por falso zelo intentam enganá-los: fazendo-se compreender sobre isto ao príncipe, que por falta de conhecimento desta utilíssima arte deixavam muitos monarcas precipitar as suas reais pessoas, e os seus reinos nas maiores ruínas: e bastando para assim convencer a infaustíssima guerra, com que os denominados jesuítas levaram à África o infelicíssimo rei D. Sebastião para deixar como deixou, sepultadas naquelas infames terras com a sua real pessoa a honra, a fama, o cabedal, e a liberdade destes reinos, e seus domínios.
Quarto exemplo.
Em outras iguais conversações se pode tratar entre os circunstantes da geografia da Europa e da corografia dos diferentes reinos e estados que nela se contêm: questionando-se a situação de alguns dos ditos reinos; de sorte que o príncipe seja encaminhado a decidir a dúvida, que de propósito se deve conservar indecisa; e seja persuadido a demonstrar no globo a posição do país duvidado; visto que já se acha iniciado nas divisões da esfera: e que por isso lhe servem de divertimento a aplicação, e conhecimento das terras contidas no dito globo.
À imitação dos referidos exemplos se devem ir acrescentando outras oportunas conversações, e conferências sobre matérias próprias da instrução dos príncipes.
Não deve porém esta praticar-se (enquanto couber no possível) por modo de um estudo forçado e coactivo, que lhe faça criar aversão às lições que há-de receber. Muito pelo contrário se lhe irão estas introduzindo pelo referido modo de conversação, e conferência, porque este modo não só é o mais suave e agradável, mas também o que mais se aproveita.
As primeiras três horas próximas e seguintes ao jantar devem ser reservadas para os divertimentos do príncipe: proporcionando-se-lhe estas de sorte que se lhe façam gratas sem serem perigosas, ou menos decentes.
A sua vivacidade natural, e o hábito em que se acha de altercar razões, e sustentar porfias com as criadas dos quartos, onde até agora assistiu, podem fazer com que o mesmo príncipe em algumas ocasiões pretenda obstinar-se contra o que lhe é proposto em beneficio seu.
E nestes casos será preciso: Primo, dizer-lhe que repare em que tudo o que se lhe propõe são ordens minhas; as quais nem os criados que o servem podem deixar de executar, nem ele deixar de obedecer: Secundo que faça reflexão em que uma desobediência às ordens do seu avó, e de seu rei é coisa tão feia, e imprópria de um tão grande príncipe, que em qualquer vassalo ordinário causa horror, e escândalo. Tercio quando isto não baste ainda se lhe deve ponderar com ar de sentimento que ser teimoso, e inflexível é vicio de um ânimo baixo, e humilde, e não qualidade de um príncipe que deve ser o exemplar de todas as virtudes: Quarto, que por isso tenho dado ordem de se me participar o que suceder, quando ele príncipe se achar em tão inesperado caso: e com efeito ordeno, que assim se observe nos casos ocorrentes; antes que o príncipe possa contrair um hábito de inflexibilidade.
Palácio de Nossa Senhora da Ajuda em 7 de Dezembro de 1768.
REI
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